A lei 13.869/19 prescreve os diversos crimes de abuso de autoridade, tendo revogada a Lei 4.898/65. Essa atualização era necessária e urgente, uma vez que a lei/65 estava anacrônica, ou seja, não mais condizente com os tempos atuais, tanto em relação a tipos penais quanto em penalidades. Não obstante, o motivo da edição da novel legislação foi outro, para isso basta analisar o contexto de sua criação - operações contra corrupção praticadas em face de autoridades públicas do mais alto escalão do Estado -, sem abono das arbitrariedades praticadas pelos agentes estatais subvertendo a lógica, com os fins justificando os meios, em nome do combate à criminalidade. Portanto, os motivos primordiais não foram públicos.
O fundamento constitucional de tal legislação se encontra no art. 5º, XXXIV, “a”, asseverando que são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas, o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder. Além de que a credibilidade e honestidade dos agentes públicos vinculam os cidadãos, de modo que estes têm maior ou menor confiança na própria noção de Estado a partir do atuar daqueles, refletindo direto a noção de eficiência da máquina pública e norte para a coletividade.
Deste modo, a lei de abuso de autoridade tutela tanto direitos e garantias fundamentais, tais como liberdade de locomoção e a intimidade ou a vida privada, como o regular funcionamento da Administração pública, mantendo incólume seus alicerces: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, caput, da CR/88).
O abuso de poder ocorre pelo excesso ou desvio. No primeiro, o agente público vai além de suas competências, por exemplo, o policial que ao promover busca pessoal num transeunte constrange além do necessário, sendo violento, misógino, racista, classista e grosseiro. No segundo, a autoridade pública age oblíquo à lei, por exemplo, um membro do Parquet que denuncia por improbidade administrativa um chefe do executivo municipal por retaliação.
Essas condutas podem ser no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abrangendo férias ou licença, exceto aposentadoria, por cessação de vínculo formal com o Poder Público (art. 1º, caput). O sujeito ativo para fins legais é qualquer agente público, servidor ou não, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, da Administração Pública (art. 2º).
As condutas são criminalizadas a título de dolo, inexistindo modalidade culposa, com adição de um especial fim de agir descrito no injusto penal, o qual será um dentre os que se seguem: prejudicar outrem; beneficiar a si mesmo ou a terceiro; ou por mero capricho ou satisfação pessoal (§ 1º, art. 1º). Esse elemento subjetivo especial do tipo abrange todos os delitos da lei em apreço, ou seja, cada figura típica da lei de abuso de autoridade vai conter ao menos um desse especial fim de agir, tendo tal norma caráter geral, excluindo-se sua aplicabilidade quando houver previsão diversa, como o art. 29, onde expressamente há o fim específico de prejudicar interesse do investigado.
Quanto ao dolo, entendemos perfeitamente cabível tanto o dolo direto como o dolo eventual, sem prejuízo dos tipos que exclua este expressamente, tal qual o art. 25, parágrafo único, segundo o qual incorre na mesma pena (refere-se ao caput) quem faz uso de prova, em desfavor do investigado ou fiscalizado, com prévio conhecimento de sua ilicitude.
O especial fim de agir prejudicar outrem não deve ser abarcado pelo exercício normal e regular da atividade do agente público. O prejuízo, nesse caso, está para além da legalidade. A título de exemplo, imagine-se um juiz e um procurador da república combinarem provas, na espécie e tempo de apresentação, em desfavor do acusado.
Outro especial fim de agir é beneficiar a si mesmo ou a terceiro, sendo indiferente se patrimonial ou não, por exemplo, um juiz combinar com um candidato a presidente da República se tornar ministro da Justiça dele e concomitantemente estar julgando o principal rival na corrida eleitoral, inclusive vazando seletivamente dados do processo, assumindo, posterior e publicamente, este como inimigo.
Ainda como especial fim de agir por mero capricho ou satisfação pessoal. O primeiro se perfaz pela irrelevância de motivo, se houver um. O segundo contempla uma autossatisfação, por exemplo, ideologia ou afinidade político-partidária. Ambos englobam interesse pessoal e interno do agente.
Vive-se tempos estranhos, o óbvio deve ser dito sempre e sempre. Atento a isso, o legislador ordinário prescreveu que a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade (art. 1º, § 2º). Está-se diante do crime de hermenêutica. Nas palavras de Renato Brasileiro de Lima:
O objetivo do dispositivo sob análise foi o de coibir aquilo que Rui Barbosa chamava de crime de hermenêutica, assim compreendido como toda e qualquer figura delituosa que procure criminalizar a interpretação jurídica, fática ou probatória, que o agente público dê aos fatos que lhe são trazidos para sua apreciação.
Portanto, não se pode criminalizar um agente público quando legitimamente interpreta lei ou avalia fatos e provas. Ao legislativo cabe dispor do máximo possível de critérios objetivos para tanto, não obstante sempre tenha certa carga subjetiva imanente sua condição de ser humano.
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LIMA, Renato Brasileiro de. Nova Lei de Abuso de Autoridade. – Salvador: Editora JusPodivm, 2020, p. 27-41
HABIB, Gabriel. Leis Penais Especiais – Volume único. – ed., ver., atual e ampl. – São Paulo: Editora JusPodivm, 2022, p. 19-20