Migalhas de Peso

Concorrência interna no shopping center

Pelo acórdão do STJ, a produção de um estudo com tais explicações econômicas não foi feita pelo locador. Sem dúvida, a postura do novo-entrante não seria de “deferência” ou “adulação” do concorrente sênior, até porque o dever de cooperação entre concorrentes tende a zero.

5/6/2024

Em um interessante julgado1 do STJ, decidiu-se caso em que um restaurante japonês (Kotobuki) ex-locatário de um shopping (Rio Design Barra) imputou ao locador atos de inadimplemento (art. 389 do CC). Em específico, a causa principal em litígio dizia respeito à abertura de um segundo restaurante nipônico (Gurumê) em área vicinal ao primeiro.

No que é específico a modificação do contexto contratual; o acórdão descreve que, após mais de uma década exercendo suas atividades de locatário como único restaurante temático-asiático do shopping, por não haver mais cláusula de “preferência” (rectius, exclusividade) vigente, o locador permitiu o ingresso de um segundo ator do mesmo mercado relevante. Ou seja, após a caducidade do privilégio contratual de unicidade, o locador aceitou como novo locatário ator que afetou as estratégias comerciais e a própria situação mercantil do locatário sênior.

O TJ/RJ havia entendido que o locatário Kotobuki teria razão em seu pedido compensatório após o fechamento de sua operação, tendo em vista que o Shopping deixou de efetuar um estudo prévio sobre a viabilidade de convivência de dois restaurantes nipônicos e o Shopping, irresignado, pleiteou revisão pelo STJ.

O acórdão, decidido por maioria, teve como um dos dissensos o próprio conhecimento recursal, já que se espraiando sobre fatos disputados e em cláusulas contratuais controvérsias, duas súmulas do próprio STJ incidiriam (verbetes 05 e 07). De outro lado, entendeu a maioria que o acórdão originário do TJRJ teria fixado as balizas pertinentes, e que nenhum outro detalhe fático seria necessário para sua cognição em instância especial. A leitura dos fundamentos, entretanto, denota que os Órgãos jurisdicionais optaram por decidir o mérito do caso, à revelia da melhor técnica processual – talvez pela parca existência de precedentes tão específicos, ou quiçá pelo teor “raiz” de direito empresarial ser genuinamente interessante, tendo prevalecido o entendimento de que não haveria como se garantir exclusividade para além do prazo previsto no contrato, dando liberdade para o Shopping revisar o tenant mix2, com amparo na livre iniciativa.

No que diz respeito ao mérito, há três pontos que merecem reflexão: (a) a forma pela qual se interpreta uma cláusula de exclusividade/preferência, (b) a tendência à obsolescência dos fornecedores, e (c) o dever de cuidado do locador para com seus locatários no chamado “tenant mix”.

Em um sistema capitalista baseado no pluralismo, na tutela do consumidor, na livre iniciativa e no desenvolvimento respeitoso ao meio ambiente – a concorrência será sempre a regra, e a sua exclusão/limitação uma exceção3. Em termos imediatos, a concorrência tende a ser favorável ao destinatário (cliente ou freguês) – e não havendo demanda desproporcional à oferta, o mesmo fenômeno tende a ser incômodo aos postulantes à predileção consumista.

Isso não significa que a concorrência seja necessariamente destrutiva aos contendentes, já que os incentivos ao aprimoramento próprio, à inovação tecnológica e às transformações criativas podem gerar um jogo de ganha-ganha entre todos os atores (saindo da situação de marasmo4). De outra monta, também é possível que o ganho legítimo de um gere a perda honesta do outro, e que o derrotado se sinta injustiçado (coitadismo).

Logo, (a) se em um “centro de compras” é comum que haja uma pluralidade de lojas de indumentária concorrentes, restaurantes de todas as estilizações (lanches, comida italiana, churrascarias), nenhuma peculiaridade jurídica existe para servir de barreira à entrada na proposta nipônica. Nesse sentido, o art. 54 da lei de locações confere liberdade maior nas cláusulas de shopping center e os instrumentos de estruturação do Shopping habitualmente reforçam a liberdade de alteração e ampliação das atividades e dos lojistas, a critério do locador, sendo disposição típica o que, portanto, não foi tido como permissivo que colocaria o locatário em desvantagem excessiva. 

No caso concreto, o acórdão do STJ narra que havia uma interdição específica para restaurantes japoneses, e que apenas findo o termo nasceu a disputa setorial. Assim, a interdição era temporária e pontual, sendo a incidente batalha pela predileção concorrencial àquilo que está acorde aos valores constitucionais (art. 1, IV e 170, IV e V, da CRFB) regentes.

Outro ponto interessante do acórdão (b) dizia respeito aos atores competitivos – locatário sênior (Kotobuki) e locatário júnior (Gurumê). O novo entrante não era parte do processo, mas foi tido como coprotagonista do imputado inadimplemento. Sob óticas diferentes: (b.1) quando o Kotobuki ingressou no contrato de locação não-residencial de longo prazo com o Rio Design, não havia estabelecimento gastronômico daquela especialidade; (b.2) quando o Rio Design admitiu o ingresso do Gurumê em seu macro estabelecimento empresarial, também era locador do Kotobuki, tendo ciência de eventual aumento de abrasividade endógena; e (b.3) quando Gurumê foi admitido como locatário, sabia que precisaria diversificar a estratégia, pois haveria uma assimetria informacional dos frequentadores do shopping a seu desfavor (efeito conservador).

O que nenhum fornecedor pode contar é com a completa fidelidade5 dos destinatários, a estabilidade do aviamento6, pois consumidores podem ser “novidadeiros” e poligâmicos em termos gastronômicos. Fato é que clientes e fregueses não são propriedade do emissor concorrencial, mas eventuais destinatários, sujeitos de direito munidos da liberdade (inclusive a de exercer seu gosto duvidoso). Ainda, há certos setores de atuação empresarial em que poucos sobrevivem depois de alguns anos (discotecas, restaurantes), sendo raros os “Matusaléns” (Genesis 5:277) empresariais – alguns pela criação de uma “aura” retrô, outros pela velocidade com a qual modificam a própria organização.

Ou seja, segundo o STJ, a decadência de percepção econômica do locatário sênior não teve como nexo causal único, direto e imediato (art. 403 do CC) o ingresso do locatário júnior. Tal até condicionou as ocorrências competitivas, mas não determinou o resultado – já que a clientela não pode ser garantida a alguém.

Por fim, ao lado da questão processual polêmica sobre a própria cognoscibilidade recursal, (c) a posição majoritária no julgado do STJ acabou por tratar a situação jurídica do shopping-locador quase como a de um titular de direito potestativo, quanto a composição e modificação dos próprios locatários. Como ventilado no voto-vencido8, a atividade de gestão da parte mais forte da relação (shopping) exigia um estudo prévio sobre o impacto do ingresso de um locatário, no tocante a atuação de uma gastronomia temática como a nipônica. Tal ingresso seria simbiótico a ambos os atores? Haveria alguma chance de “fagocitação” de um pelo outro?

Pelo acórdão do STJ, a produção de um estudo com tais explicações econômicas não foi feita pelo locador. Sem dúvida, a postura do novo-entrante não seria de “deferência” ou “adulação” do concorrente sênior, até porque o dever de cooperação entre concorrentes tende a zero. De outro lado, entre parceiros comerciais (locador-locatário), há sim deveres de cuidado, no que parece ter sido o ponto frágil da fundamentação que se logrou vitoriosa no julgamento. Como se sabe, até na incompletude contratual o “real deal” ultrapassa o teor obrigacional do “paper deal”.

Feito o precedente do Tribunal da Cidadania, é possível extrair quatro consequências para negócios jurídicos de tal sorte: (i) cláusulas de preferência-exclusividade devem ser explícitas e ratificadas se tal for do desejo dos contraentes nas renovações contratuais, ou nos pedidos de ação renovatória; (ii) o silêncio ou a omissão do instrumento gera a presunção pro-competitiva; (iii) estabelecimentos comerciais podem se tornarem obsoletos pela predileção da clientela ou freguesia, e novos entrantes obterem a preferência cambiante dos interlocutores; e (iv) locadores acabam tendo enorme impacto no fluxo do aviamento9 dos locatários, em especial se não forem coactados a observar certos deveres de cuidado para com quem lhes paga o aluguel. Sem um controle mais rígido, a lógica darwiniana imperará.

--------------------------

1 STJ, 3ª Turma, Min. Relator Ricardo Villas Bôas Cueva, REsp 2.101.659/RJ, DJ 23.05.2024.

2 Do Voto divergente da Ministra Nancy Andrighi que, entendendo que o Shopping teria desrespeitado a boa-fé e que haveria impeditivo formal ao recebimento do recurso, definiu: “Compreendido o tenant mix como "a equilibrada combinação de lojas não concorrentes, junto com as atrações e utilidades oferecidas", esta Corte destacou que a concorrência não predatória é "um dos fatores primordiais, decisivos, que leva um lojista a optar por instalar-se num determinado shopping center" (REsp 764.901/RJ, Terceira Turma, DJ de 30/10/2006)”: Op. Cit.

3 BARBOSA, Denis Borges. Tratado da Propriedade Intelectual. Tomo 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 263.

4 FORGIONI, Paula A. Teoria Geral dos Contratos Empresariais. 2ª Edição. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2010, p. 112.

5 BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Curso de Concorrência Desleal. 2ª Edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024, p. 119.

6 ASCARELLI, Tullio. Teoria della concorrenza e dei Beni immateriali. 3a Edição, Milão: Editore Dott A. Giuffré, 1960, p. 24.

7 Bíblia Sagrada: “Matusalém viveu 969 anos e morreu”.

8 STJ, 3ª Turma, voto-vencido Min. Nancy Andrighi, REsp 2.101.659/RJ, DJ 23.05.2024.

9 BARRETO FILHO, Oscar. Teoria do Estabelecimento Comercial – fundo do comércio ou fazenda mercantil. 2ª Edição, São Paulo: Saraiva, 1988, p. 147.

Pedro Marcos Nunes Barbosa
Sócio de Denis Borges Barbosa Advogados. Cursou seu Estágio Pós-Doutoral junto ao Departamento de Direito Civil da USP. Doutor em Direito Comercial pela USP, Mestre em Direito Civil pela UERJ e Especialista em Propriedade Intelectual pela PUC-Rio.

Ana Beatriz Barbosa Ponte
Sócia de Perez & Barros Sociedade de Advogados, LLM pela NYU, Bacharel em Direito pela UERJ.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Coisa julgada, obiter dictum e boa-fé: Um diálogo indispensável

23/12/2024

Macunaíma, ministro do Brasil

23/12/2024

Inteligência artificial e direitos autorais: O que diz o PL 2.338/23 aprovado pelo Senado?

23/12/2024

"Se não têm pão, que comam brioche!"

23/12/2024

“Salve o Corinthians”

24/12/2024