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Dimensão transnacional da democracia e sua defesa

Após a Segunda Guerra, a valorização dos direitos políticos cresceu, embora a democracia ainda não seja universalmente consagrada pelo Direito Internacional. Organizações como a ONU reconhecem sua importância para os direitos humanos, destacando a necessidade de governos democráticos participativos.

5/6/2024

Após a Segunda Guerra mundial, a humanidade despertou para os perigos globais de governos autoritários. Tal constatação levou à valorização dos direitos políticos e à sua consagração como direito humano, no art. 21 da Declaração dos Direitos Humanos1. Apesar de esses direitos serem de mais fácil concretização em regimes democráticos, em respeito à autodeterminação dos povos, a democracia não foi consagrada como um valor universal do Direito Internacional. Na verdade, essa falta de aclamação do caráter universal da democracia se deveu não só à autodeterminação dos povos, mas à própria dificuldade em conceituar o regime democrático2.

Pouco a pouco, porém, organizações internacionais foram declarando a importância da democracia para a defesa dos direitos humanos, como, por exemplo, observa-se com a Declaração do Milênio que reconheceu que a melhor forma para garantir direitos de liberdade é “através de governos de democracia participativa baseados na vontade popular.”3 Algumas cartas, mais recentemente, como a Carta Democrática Americana, declararam que “os povos da América têm direito à democracia”4. A União Europeia, em várias de suas normas, refere-se à democracia, e a utiliza como critério de alargamento da própria União5 e bem como de norteamento das relações internacionais6. A ONU, apesar de não ter norma semelhante, exatamente em respeito à autodeterminação dos povos, vem continuamente celebrando a democracia, como demonstra na Declaração do Milênio já antes referida e em ações como a instituição do Dia Internacional da Democracia, a realização do Fórum sobre direitos humanos, democracia e Estado de Direito, estabelecido pela Resolução 28/14, aprovada pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU em 28/14 de 2015.

Apesar desse avanço do reconhecimento da importância da democracia no plano internacional, o regime democrático vem enfrentando crescentes desafios nos últimos anos, com indicativo de declínio7.

A mudança na dinâmica global e na forma de fazer política com fortes interferências transfronteiriças certamente têm impacto no regime democrático. A liberdade é elemento reconhecido como essencial à democracia desde seu modelo ateniense, e vem sofrendo significativo abalo diante da forma como a comunicação política se realiza nos últimos anos no ambiente digital. Isso é percebido, por exemplo, em situações como as de notícias propagadas em um país, as quais não necessariamente são ali produzidas, e como a de dados que são manipulados para interferir na vontade do cidadão-internauta.  Não à toa, em 2020, a União Europeia instituiu o Plano de ação para a democracia europeia8, e mais recentemente, em dezembro de 2023, o Pacote Defesa da Democracia9. Ao mesmo tempo, e esse é talvez o ponto a que mais se pretende dar destaque no presente texto, os movimentos extremistas que costumam estar sujeitos a controle/revisão no plano interno de cada país podem terminar escapando a esse controle no plano internacional, caso não haja uma organização global para defesa da democracia.

De fato, o declínio democrático nos últimos anos deve levar a uma reflexão sobre a necessidade de sua defesa organizada no plano internacional, com ênfase na proteção dos direitos humanos. A União Europeia, de certa forma, vem fazendo esse esforço em relação aos países que a integram, com a aplicação do critério de Copenhague e com o uso da democracia como critério nas relações exteriores. Mas essa ação não é suficiente para proteger todas as democracias e talvez não esteja devidamente articulada. Basta ver o avanço de movimentos extremistas, como indicam as eleições europeias desse ano. De todo modo, é necessário que cada país possa contribuir com sua visão sobre a vivência democrática, para que, a pretexto de defender a democracia no plano internacional por países de democracias já consolidadas, não se termine construindo um modelo estereotipado, que não leva em consideração as necessidades dos países com desafios políticos diversos, e não se tenha também uma ambivalência democrática10.

Se a "proposta democrática" é vista como irrealizável utopia, também tem revelado sua possibilidade exequível de esperança de justiça e de convívio em paz e bem-estar. A propósito, é a hora exata de lembrar, e relembrar, as ambivalências e os dilemas - desde práticos a éticos - que também encerra. Quatro pontos, muitas vezes contrapontos, são pilares: (i) a premissa educacional imprescindível para a qualidade eleitoral, (ii) a estabilidade ética e política dos que alcançam o poder, (iii) a realidade, inevitável, de que cada coletivo humano - de municípios a nações - tem seu próprio estágio como aprendiz de democracia e sua própria velocidade de conquista e (iv) a tentação, bem conhecida, de que as hegemonias utilizem a democracia como pretexto para ignorar a auto determinação, que se defendendo, em vice versa, pode tender às tiranias. Dos quatro, todos historicamente reais e problemáticos, certamente esse último é o desafio, por enquanto, aparentemente incontornável. Daí a necessidade imperativa de políticas globais que possam honrar os fundamentos, sem torná-los, por trai-los, mais fracassos e lamentos. O momento demanda semear! Até que as sementes encontrem seus terrenos apropriados, e a esperança mais floresça.

Na conjuntura atual, será muito difícil aos países sozinhos protegerem suas democracias sem uma organização internacional mais ampla e sem um resgate histórico da importância do modelo democrático. Se mesmo os movimentos extremistas se organizam para propagar seus ideais11, é necessário que aqueles que percebem a importância de pautas democráticas a serem vividas e defendidas num cenário globalizado também se unam, para que a contra-onda democrática de viés internacional encontre uma onda democrática ainda mais forte. É preciso impedir que a maré autoritária avance sobre o campo dos direitos humanos, causando devastações em áreas conquistadas a tão duras penas.

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1 Artigo 21° 1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direção dos negócios públicos do seu país, quer diretamente, quer por intermédio de representantes livremente escolhidos. 2. Toda a pessoa tem direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do seu país. 3. A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos: e deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto.

2 UNESCO. Democracy in a world of tensions: a Symposium prepared by UNESCO. Org. McKEON, Richard Peter, ROKKAN, Stein. Paris: Unesco, 1951, p. 7. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000133513. Acessado em 01/06/2024.

3 Disponível em: https://www.oas.org/dil/port/2000%20Declara%C3%A7%C3%A3o%20do%20Milenio.pdf

Disponível em: https://www.oas.org/pt/democratic-charter/pdf/demcharter_pt.pdf

Disponível em: https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/enlargement/

6 art. 21 do Tratado da União Europeia

7 Disponível em: https://www.poder360.com.br/internacional/democracia-atinge-nivel-mais-baixo-desde-2006-diz-economist/ e https://www.economist.com/graphic-detail/2024/02/14/four-lessons-from-the-2023-democracy-index

Disponível em: https://ec.europa.eu/info/law/better-regulation/have-your-say/initiatives/12506-Protecting-European-democracy-from-interference-and-manipulation-European-Democracy-Action-Plan_en

Disponível em: https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/priorities-2019-2024/new-push-european-democracy/protecting-democracy_pt

10 NEVES, Marcelo. Do Transconstitucionalismo à Transdemocracia em BUENO, Roberto (org) Democracia: da crise à ruptura. São Paulo: Editora Max Limonad, 2017, cap. 30. NEVES, M. From transconstitutionalism to transdemocracy. European Law Journal, v. 23, p. 380-394, 2017.

11 European Parliament. Parliamentary question – E-000554/2024. The far-right and neo-Nazi gathering in Budapest known as the ‘Day of Honour’ Disponível em https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/E-9-2024-000554_EN.html

Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil. Integra o Observatório de Violência Política contra a Mulher.

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