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Aprovado o tratado da OMPI sobre patentes, recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados

Tratado da OMPI sobre patentes e recursos genéticos muda biotecnologia global. Exige revelação de origens em pedidos de patentes.

29/5/2024

A biotecnologia global sofreu uma mudança profunda (e necessária) com a aprovação do Tratado da Organização Mundial da Propriedade Intelectual sobre Patentes, Recursos Genéticos e Conhecimentos Tradicionais Associados.

Após 25 anos de negociações, os países se reuniram em Conferência Diplomática, no período compreendido entre 13/5 e 24/5/24 e aprovaram o Tratado.

É uma mudança brutal e paradigmática, pois, a partir do momento em que o Tratado entrar em vigor, os depositantes de patentes se obrigarão a revelar a origem dos recursos genéticos e/ou detentor do conhecimento tradicional associado que constam no pedido de patente.

É a conexão entre um dos direitos mais relevantes da propriedade industrial, que é o direito de patentes, com os países de origem dos recursos genéticos1 e dos povos e comunidades tradicionais.

Este é um pleito bastante antigo dos países megadiversos (como é o caso do Brasil) e dos povos originários, que são detentores de conhecimentos tradicionais associados.

Como mencionamos, em maiores detalhes, no artigo denominado “Propriedade Industrial e Povos Originários” 2, é histórica a invisibilidade dos povos originários e a construção dos tratados e legislação locais envolvendo propriedade intelectual (ou industrial). O resultado é que são diversas as patentes concedidas nos últimos anos, nos mais diversos segmentos, fazendo uso de recursos genéticos e/ou conhecimentos tradicionais associados, sem que haja consentimento prévio informado ou, quiçá, alguma repartição de benefícios com os países de origem e/ou detentores dos conhecimentos tradicionais associados.

Objetivos

A discussão em Genebra3, para se chegar a um consenso, foi intensa e muito dura, com bloco de países desenvolvidos, de um lado, justificando que a ciência, o desenvolvimento, a inovação e as patentes poderiam ser seriamente afetadas, a depender do rigor em relação às novas regras sobre divulgação de informações de origem e, do outro lado, países megadiversos, em conjunto com povos originários, sustentando a necessidade de que as patentes fossem analisadas, apontando a origem dos recursos genéticos e/ou conhecimento tradicional associado, a fim de fortalecer o direito dos países de origem dos recursos genéticos utilizados (ou ainda a fim de evitar a apropriação indevida de conhecimentos tradicionais associados já divulgados anteriormente).

Neste sentido é que o artigo primeiro definiu os objetivos do Tratado:

  1. aumentar a eficácia, transparência e qualidade do sistema de patentes com relação aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados aos recursos genéticos;
  2. impedir que patentes sejam concedidas erroneamente para invenções que não sejam novas ou inventivo no que diz respeito aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados a recursos genéticos.

Entrada em vigor

Embora o Tratado já possua um número significativo de signatários desde a sua aprovação (24/5/24), entrará em vigor três meses após 15 países-membros depositarem seus instrumentos de ratificação ou adesão junto ao secretariado da OMPI.

Trigger

A partir deste momento, quando a reinvindicação4 de uma patente depositada for “baseada em” recursos genéticos ou conhecimentos tradicionais associados, os depositantes terão a obrigação de divulgar o país de origem dos recursos genéticos ou os povos indígenas e/ou comunidades tradicionais, quando se tratar de conhecimentos tradicionais associados.

O grifo na expressão “baseada em” foi proposital, no sentido de demonstrar que este é o trigger do Tratado. Em razão disso, após profundo debate, os países definiram o conceito de “baseada em” 5:

“Baseada em” significa que os recursos genéticos e/ou conhecimentos tradicionais associados com recursos genéticos devem ser necessários para a reivindicação contida na invenção, e que a reinvindicação dependa das propriedades específicas do patrimônio genético e/ou no conhecimento tradicional associado contendo recursos genéticos. (tradução livre).

O Tratado define que se o depositante não tiver conhecimento das informações necessárias, no momento do requerimento da patente, deverá fazer uma declaração, neste sentido.

Papel do INPI

O INPI deverá estabelecer os meios necessários para que os depositantes possam cumprir as novas obrigações (certamente através de nova Resolução), inclusive elaborando um guia contendo a forma para a correção de eventual equívoco cometido pelo depositante.

Outro aspecto que, certamente, ficará sob a liderança do INPI é a elaboração de um banco de dados com informações sobre recursos genéticos e/ou conhecimentos tradicionais associados aos recursos genéticos, para fins de buscas.

Esta construção deverá ser feita em conjunto com os povos indígenas e/ou povos e comunidades tradicionais, além de outros atores que sejam relevantes neste contexto.

Nos parece que a Câmara Temática das Guardiãs e dos Guardiões da Biodiversidade, ligada ao CGEN pode e deve se aproximar do INPI, no sentido de construírem, em conjunto, o referido banco de dados previsto pelo novo Tratado de PI, recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados.

Como não houve definição clara no Tratado se o futuro banco de dados será sigiloso ou aberto, nos parece que há margem discricionária, no sentido de cada país-membro definir como será o seu.

Aqui repousa um dos maiores dilemas na proteção dos conhecimentos tradicionais associados, de titularidade dos povos indígenas e/ou povos e comunidades tradicionais, pois, quanto maior a divulgação, mais fácil seria combater a apropriação indevida (seja por depósito de patentes ou uso desautorizado) - no entanto, a divulgação maciça também possui como resultado a fragilidade na vigilância dos povos originários – principalmente em tempos de divulgação acelerada de conteúdo digital e inteligência artificial.

Importante lembrar que a Convenção 169 da OIT, a Convenção sobre Diversidade Biológica, o Tratado de Nagoia e a legislação interna do Brasil de acesso e repartição de benefícios, determinam que seja formalizado o consentimento prévio informado dos povos e conhecimentos tradicionais, para utilização dos seus saberes.

Sanções

Um dos pontos mais controversos e que foram intensamente debatidos entre os países na Conferência Diplomática, que resultou no Tratado, foi o estabelecimento de sanções.

Ao final, o Tratado disciplinou que cada parte estabelecerá medidas jurídicas/administrativas adequadas, eficazes e proporcionais e/ou políticas pelo eventual descumprimento do Tratado, ou seja, pela eventual ausência de revelação do país de origem dos recursos genéticos e/ou provedores dos conhecimentos tradicionais associados.

No entanto, o cancelamento/nulidade da patente concedida, apenas será possível quando houver a comprovação de má-fé do depositante.

Retroatividade

O Tratado não será retroativo, ou seja, não terá efeitos em relação as patentes já depositadas, contudo, a cláusula de não retroatividade deixou expresso que esta conclusão não afeta as leis nacionais já existentes que disciplinam a matéria.

Este aspecto é relevante para salvaguardar o que já está definido pela legislação brasileira de acesso ao patrimônio genético e repartição de benefícios (lei 13.123/15 cc Decreto 8.772/16) que obriga o depositante de uma patente, contendo recursos genéticos brasileiros, a realizar um cadastro eletrônico prévio ao depósito da patente, sob pena de sofrer autuação.

Esta obrigação resultou inclusive na resolução 69/13 editada pelo INPI, normalizando os procedimentos relativos ao requerimento de pedidos de patentes de invenção, cujo objeto tenha sido obtido em decorrência de um acesso a amostra de componente do patrimônio genético nacional.

Conexão com outros Acordos Internacionais

O artigo sétimo define que o Tratado será implementado de forma cooperativa com outros acordos internacionais, que sejam para ele relevantes.

Nos parece que aqui há conexão com diversos tratados, inclusive com o PCT - Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes, o protocolo de Nagoia e a Convenção Sobre Diversidade Biológica.

O objetivo maior do presente Tratado de Propriedade Intelectual, Recursos Genéticos e Conhecimentos Tradicionais Associados, como já exposto, é aumentar a transparência e qualidade do sistema de patentes, inclusive impedindo que haja concessão de direitos de propriedade industrial de forma equivocada.

Há, no entanto, um objetivo subliminar que é o reforço nas obrigações de acesso e repartição de benefícios, já previstas na Convenção sobre Diversidade Biológica e no protocolo de Nagoia.

Com uma nova obrigação de indicação de origem, conectada ao mais relevante direito de propriedade industrial (patentes), tudo indica que haverá um reflexo no aumento de repartição de benefícios, tanto para os países provedores, como para os provedores de conhecimentos tradicionais associados.

Conclusões

Com a efetiva entrada em vigor, o Tratado aqui discutido pode representar um avanço significativo na conexão entre a biotecnologia, patentes e direitos dos países de origem de recursos genéticos e/ou provedores de conhecimentos tradicionais associados.

Nunca é demais lembrar que, desde o advento da Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992, os países definiram que o racional para manter a floresta em pé é que a repartição de benefícios seja revertida para os povos indígenas e/ou povos e comunidades tradicionais, a fim de que fiquem mais fortalecidos e empoderados, isto porque existem muitos indicadores que associam uma maior preservação da floresta onde os povos originários se mantém ativos.

O sistema de propriedade intelectual, notadamente de patentes, torna-se decisivo para estimular o sistema de acesso e repartição de benefícios e este parece ser o objetivo subliminar do novo Tratado, aqui em debate.

A aprovação do Tratado foi o primeiro passo, no entanto haverá ainda um longo caminho que inclui as ratificações e a criação de mecanismos internos de divulgação da origem, em cada um dos países. Neste ponto, fica um alerta bastante importante, para que na construção dos mecanismos se evite a burocracia, que poderia resultar no pernicioso atraso na análise e concessão de patentes.

O equilíbrio entre o direito dos povos originários (inclusive com a repartição de benefícios), o desenvolvimento de biotecnologia e o depósito de patentes (que asseguram ao inventor o retorno da sua pesquisa) pode representar um novo campo, não apenas de grandes oportunidades, mas também de distribuição de renda mais justa.

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1 País que possui recursos genéticos em condições “in situ”.

2 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/405504/propriedade-industrial-e-povos-originarios

3 Luiz Ricardo Marinello fez parte da delegação brasileira, como observador, representando a ABPI - Associação Brasileira da Propriedade Intelectual.

4 Este foi outro ponto bastante controverso na Conferência. Um bloco de países sustentava que seria necessário que a obrigação de divulgação da origem dos recursos genéticos e/ou conhecimentos tradicionais associados deveria ser mais abrangente e não apenas no claim (reivindicação), no entanto, esta proposta foi superada e o Tratado restringiu a obrigação à reinvindicação.

5 “Based on” means that the genetic resources and/or traditional knowledge associated with genetic resources must have been necessary for the claimed invention, and that the claimed invention must depend on the specific properties of the genetic resources and/or on the traditional knowledge associated with genetic resources. (article 2).

Luiz Ricardo Marinello
Mestre em Direito pela PUC/SP, coordenador da Comissão de Estudos de Bioeconomia e Sustentabilidade da ABPI (Associação Brasileira da Propriedade Intelectual) e sócio de Marinello Advogados.

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