Um dos fundamentos da República é a harmonia entre os Poderes, contemplada no art. 2° da Constituição Federal. Apesar de independentes, o que é conferido pelo mesmo comando constitucional, os Poderes não podem rivalizar um com o outro, no sentido de elegerem suas diferenças como algo superior aos interesses da República.
É certo que, para nós, brasileiros, a Câmara dos Deputados é assim denominada porque representa o povo em sua inteireza, unindo, em um só espaço físico, por um ideal comum, qual seja, o da representação, eleitos pelo povo de todas as unidades federativas. Por outro lado, no Congresso Nacional também está o Senado, que é denominado Federal por representar os Estados da Federação em si, e não simplesmente o povo.
Posto isso, e sendo o Congresso Nacional o Poder mais heterogêneo e complexo da conjuntura brasileira atual, trataremos de falar, neste texto, sobre a importância do diálogo institucional para que haja o cumprimento daquilo que dispõe o art. 2° da Constituição Federal (a harmonia entre os Poderes). Trataremos também do que chamamos diálogos institucionais informais, travados a partir do STF.
O diálogo institucional mostra-se cada dia mais necessário para que a República flua, como flui um curso de um rio. Ora, é dificílimo, que dirá impossível, um funcionamento estatal minimamente razoável se os três Poderes Constituídos tornam a “bater cabeça” diuturnamente.
A prova da necessidade da cooperação e harmonia se fixa, sobretudo, na própria Constituição de 1988. Em seu art. 37, caput, inserido pela Emenda Constitucional 19/98, o texto menciona, expressamente, a palavra “eficiência”. Percebamos aqui que essa eficiência que a Carta Magna faz menção é referente à Administração Pública em sentido amplo, devendo todos cooperarem para que ela se torne uma realidade.
A importância do diálogo institucional vem à tona em um momento peculiar do regime democrático. É até dado ponto uma obviedade que, no arcabouço político, há um jogo próprio e característico (e não é negativo que isso aconteça), mas nos dias de hoje, entendemos ocorrer um certo desvirtuamento desse jogo.
O desvirtuamento, ao nosso entender, seria a demasiada judicialização, perante o STF, de medidas tomadas quer pelo Legislativo, quer pelo Executivo, usando como instrumento as ações de controle concentrado de constitucionalidade. Não é de hoje que a máxima entre juristas e, até mesmo, entre componentes da Suprema Corte, que o diálogo, e a não judicialização, é o ponto mais elevado e refinado das relações quer entre entes públicos, quer entre particulares.
As ações diretas, mormente as movidas pelo Executivo, terminam, pelo seu próprio objeto, afetando e atraindo a atenção de diversos setores econômicos, sociais ou políticos. Ao fim e ao cabo, as ações de controle vêm servindo (não em todos os casos) como uma “arma” de um Poder contra outro Poder, desnecessária, portanto, quando se há a verdadeira “arma” legitimamente democrática, que é o diálogo institucional.
Notadamente, a prevalência do diálogo constitucional, nesses casos, faz com que se corrobore a máxima que o caminho do avanço civilizatório no que concerne a promoção de uma desjudicialização é um caminho seguro a ser seguido.
Institutos como os diálogos institucionais, ao abrirem a jurisdição constitucional a atores diversos, inovam na prática do judicial review e, com isso, permitem que certos experimentalismos possam revestir essa esfera de poder de elementos outros àqueles que lhe são tradicionalmente reconhecidos, como o déficit democrático combinado com o caráter contramajoritário.
Saul Tourinho Leal1 lembra que quem mais francamente discorreu sobre o diálogo institucional, a partir do Supremo, foi o saudoso ministro Teori Zavascki, na ADI 4.650, que questionava as formas de financiamento privado de campanhas. O ministro rejeitou o pedido do Conselho Federal da OAB, que requeria a promoção de um diálogo interinstitucional entre o STF e o Congresso.
A justificativa do ministro Teori Zavascki foi longa, mas definitiva: “Cumpre desde logo registrar que o ‘diálogo interinstitucional’ proposto constituiria, na verdade, apenas um monólogo unidirecional: o STF ‘exortaria’ o Congresso a legislar em determinado sentido, num certo prazo, sob pena de, não o fazendo, ficar essa incumbência transferida ao TSE. É, como se percebe, uma proposta inovadora, estranha e, no meu entender, incompatível com os modelos constitucionais de solução de omissão ou insuficiência da atividade legislativa, especialmente no âmbito de ação direta de inconstitucionalidade. Mesmo nas hipóteses especiais de procedência de ação de mandado de injunção ou de inconstitucionalidade por omissão, não haveria base constitucional para o Judiciário avançar sobre atribuições típicas do Poder Legislativo, nos moldes pretendidos, especialmente para delegá-las ao TSE”.
O voto do ministro Teori Zavascki mostra que os diálogos institucionais têm suas limitações. Isso, contudo, inspira uma investigação científica para além dos instrumentos formais de diálogo institucional, como a fórmula do apelo ao legislador, e também do constitucionalismo dialógico integrado pelas audiências públicas e os amici curiae.
É que no Brasil, como adverte Saul Tourinho Leal,2 não há apenas os institutos formais de diálogos institucionais, mas inúmeros “diálogos institucionais informais” desempenhados diariamente pelo STF, ora para reconstruir laços de poder esgarçados, ora para interagir com os grupos vulneráveis afetados por suas decisões, ora para arbitrar conflitos submetidos à sua jurisdição com chances de conciliação.
Quando a ministra Cármen Lúcia, presidindo o STF, afirma que, após ter recebido uma petição assinada conjuntamente por dois governadores que duelavam judicialmente, pedindo que o julgamento de um grupo de ações sobre guerra fiscal de ICMS fosse adiado, para que pudesse, o Poder Legislativo, regrar a matéria e, a então presidente Cármen Lúcia, aquiesceu, permitindo que a LC 160/17 viesse à tona, o que Sua Excelência fez foi dialogar com esferas outras que não o próprio Judiciário. Isso, evitando fricções institucionais e atritos entre a política e a justiça. Não seria esse mais um exemplo de um diálogo institucional informal, que, apesar de público, não encontra nome, nem forma, nem procedimento?3
Mesmo no episódio no qual a presidente Cármen Lúcia recebeu o presidente do Senado Federal, senador Eunício Oliveira (PMDB-CE), para buscar uma solução para o impasse envolvendo o então afastamento do senador Aécio Neves (ADI 5.526), estamos tratando de um diálogo institucional informal de inegável valor. A chefe de um Poder se encontra com o chefe de outro Poder para, pelo diálogo, encontrar uma solução para um impasse institucional. Segundo o jornal O Estado de São Paulo: “Na iminência de ver o Senado derrubar a decisão do STF e abrir uma crise entre os dois Poderes, Cármen e Eunício decidiram apostar no ‘diálogo’ para evitar o impasse” (Beatriz Bulla, 2.10.2017).
Reclamando sempre uma maior e melhor procedimentalização, parece que, de fato, a inclinação que temos de evitar conflitos desnecessários e, sempre que possível, tentar fazer duas pessoas que brigam darem às mãos uma à outra, termina sendo levado à Suprema Corte. Num país dado a conversas e a informalidades, os diálogos, mesmo os institucionais, nem sempre ocorrem como modalidades processuais ou formas explícitas de decisão, mas como realidade de um tipo de diplomacia doméstica exercida pelo STF.
1 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/conversa-constitucional/267896/roberto-gargarella-no-brasil-e-os-dialogos-institucionais
2 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/conversa-constitucional/267896/roberto-gargarella-no-brasil-e-os-dialogos-institucionais
3 A afirmação foi feita pela presidente dia 30/3/2017, na sessão do pleno do STF que apreciou o RE 718.874 (Rel. p/acórdão min. Alexandre de Moraes).