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Seletividade nos crimes cibernéticos

O novo advogado criminalista precisa conhecer o que é uma rede LAN, WAN, sniffer, ransonware, código hash, espelhamento, congelamento de dados, extração de provas digitais, entre outros.

25/5/2024

As ondas de criminalidade alcançaram cifras estratosféricas nos últimos tempos, pela ampliação do número de possíveis vítimas, a desterritorialidade dos crimes, a dificuldade de investigação, bem como o não acompanhamento tecnológico do Estado. 

É a era dos crimes cibernéticos, os quais passaram pelas seguintes fases: em primeiro lugar a criminalidade especializada pela Arpanet; depois o aumento vertiginoso propiciado pela disseminação da linguagem HTML e expansão da rede para uma rede mundial (a Word Wide Web – a famosa sigla www); em seguida o advento das redes sociais, lugar onde pululam crimes contra a honra e contra o patrimônio e, por fim, a quarta onda de criminalidade cibernética resultante da inteligência artificial. 

 Tal fato causa o efeito de transformar o sistema de combate aos crimes informáticos tanto no aspecto investigativo, quanto no aspecto processual. O novo advogado criminalista precisa conhecer o que é uma rede LAN, WAN, sniffer, ransonware, código hash, espelhamento, congelamento de dados, extração de provas digitais, dentre outros. 

 O reflexo na colheita de provas não é diferente. Como aduz MOURA1 emergem novos métodos investigativos como: hipnose investigativa, identificação de IP, infiltração virtual, provas advindas de dispositivos informáticos (smart speakers, IOT, smartwatch e outros), detecção e reconhecimento facial, busca de IMEI ou IMSI, EXIF metadados, inteligência artificial, banco de dados, biometria, cooperação internacional, quebra de sigilo, inteligência aberta, registros de acesso e conexão, dados cadastrais, MAC addresses, cookies, interceptação e outros. 

 Sem desconsiderar a importância e peculiaridades de cada um destes métodos, nosso foco será a detecção e reconhecimento facial. 

MOURA3 define a “detecção facial como a simples identificação do que existe em um rosto em uma determinada imagem, que demanda bons algorítimos que identificam diversos elementos como idade, cor de cabelo, gênero, entre outros aspectos”. Já o reconhecimento facial “é uma tecnologia utilizada para reconhecimento de rostos humanos, sendo que hoje várias empresas possuem um enorme banco de dados com bilhões de fotos armazenadas, principalmente, aquelas disponibilizadas voluntariamente pelo usuário de redes sociais e outros aplicativos”. 

 Como categoria de segurança biométrica e método investigativo, o reconhecimento facial pode ser uma ótima ferramenta no combate à criminalidade. Todavia, o que se nota é que, às vezes, há uma margem de erro muito grande na detecção, bem como uma seletividade pré determinada pelo algorítimo. 

Estudos demonstram que, a par do crescimento do uso desta metodologia , asiáticos e negros são alvo de erros crassos neste tipo de identificação, ora pelas semelhanças físicas, ora pela seletividade algorítmica normalmente desenvolvida pela branquitude tecnológica. 

Os algoritmos de inteligência artificial identificaram falsamente rostos afro-americanos e asiáticos 10 a 100 vezes mais do que rostos brancos, de acordo com um estudo de 2019 do Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia  , ou seja, estamos diante de uma seletividade cibernética, demonstrando que a tecnologia aumenta o fosso da desigualdade social, bem como perpetua o uso do direito penal como manutenção do status quo social capitalista. 

O que deveria vir para suprir falhas humanas e corrigir as distorções da criminalização primária, acaba por gerar efeito reverso, pela sua capilaridade, capacidade expansiva e aumento da teia do sistema penal. 

 Portanto, urge fazermos uma reflexão: o uso destas novas tecnologias reforça ou não o preconceito já evidenciado na sociedade e no Poder Judiciário. Mais uma vez a maior vítima será o invisível social e marginalizados. 

O sistema americano COMPAS “perfil de gerenciamento de infratores correcionais para sanções alternativas” revelou que o robô algorítmico reproduz o preconceito e o racismo já existente no sistema judiciário. Há uma clara discriminação oculta , por raça. Estudos apontam que a precisão das previsões do COMPAS é de 68%. Na sugestão de penas eram mais rigorosas para indivíduos de procedência africana e mais condescende com os europeus. 

Outra questão importante e que incomoda é quem “abastece” os programas? E se houver condições de manipulação dos dados inseridos no sistema para a análise através da inteligência artificial? Há uma seletividade prévia nessa alimentação dos sistemas? Baseada em quais premissas?  Logo, cada vez mais é imprescindível um conhecimento amplo de todas as novas ferramentas, que logo serão superadas e substituídas por outras, sem se esquecer da premissa do personalismo axiológico, no qual no direito penal parte da essencialidade da presença do homem. 

Os erros crassos, em regra, são seletivos e reforçam o odiento preconceito que já impera. O grande desafio será a ponderação entre o uso de todas as ferramentas que possibilitem uma justiça mais operante e rápida, sem abrir mão do rigor que deve reger qualquer hipótese de restrição de liberdade. 

O processo democrático não pode abrir mão das novas tecnologias, pois o excesso de processos leva a uma demora que também acarreta injustiça, mas, ao fim e ao cabo, é melhor uma justiça que tarda do que uma injustiça fruto do não controle seguro da tecnologia que tenta substituir o homem. 

Como diria Victor Hugo: “o futuro tem muitos nomes. Para os fracos é o inalcançável. Para os temerosos, o desconhecido. Para os valentes é a oportunidade”. 

Que sejamos valentes no combate à seletividade cibernética, sem perder a oportunidade de tornar o processo penal inovador, democrático e tecnológico. 

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  1. MOURA, Grégore Moreira de. Curso de Direito Penal Informático. 1 ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2021. p. 339.
  2. “Um levantamento feito pela revista eletrônica Consultor Jurídico nas secretarias estaduais de Segurança mostra que quatro estados brasileiros já prenderam mais de 1,7 mil pessoas utilizando o reconhecimento facial, ainda que não exista uma regulamentação para esse mecanismo”. Disponível em https://www.conjur.com.br/2024-mai-17/sem-regulacaoestados-prendem-centenas-utilizando-reconhecimento-facial/. Acesso em 22.05.2024.
  3. https://www.foxnews.com/us/ai-facial-recognition-failures-three-times-crime-solving-intelligence-got-it-wrong. Acesso em 22.05.2024. 

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay
Bacharel em Direito pela UnB. Advogado criminalista, sócio do escritório Almeida Castro Advogados.

Grégore Moreira de Moura
Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 6º Região. Mestre e Doutor em Direito. Professor de Direito Penal Informático e Criminologia.

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