O anteprojeto do novo Código Civil, entregue ao Senado em abril de 2024, apresenta propostas significativas para a reformulação da posição do cônjuge na sucessão hereditária. Atualmente, conforme o art. 1.845 do Código Civil de 20021, os herdeiros necessários, que têm direito a 50% do patrimônio do falecido, são os descendentes, ascendentes e o cônjuge sobrevivente.
A proposta busca reavaliar o papel do cônjuge na sucessão legítima, considerando a suposta crescente igualdade de gênero, embasada pela maior participação feminina no mercado de trabalho e o aumento das famílias recompostas. No entanto, com todas as vênias, a reforma parece não abordar adequadamente a questão da desigualdade de gênero.
Uma das mudanças sugeridas é a exclusão do cônjuge do rol de herdeiros necessários, relegando-o à terceira classe de herdeiros. Isso implica que o cônjuge não concorreria com descendentes e ascendentes, podendo apenas solicitar o usufruto dos bens da herança para garantir sua sobrevivência, caso comprovada a insuficiência de recursos.2 Tal medida, entretanto, mostra-se insuficiente frente à desigualdade econômica que ainda afeta as mulheres, especialmente no que se refere aos trabalhos de cuidado não remunerado que, majoritariamente, recaem sobre elas.
Historicamente, o papel da família é uma construção do patriarcado, que pressupõe papéis específicos para cada gênero, desconsiderando as diversidades e autonomia de parcela da sociedade. A tradicional visão da família está ancorada na formação do núcleo familiar convencional, como evidenciado pelas problemáticas da coparentalidade. Silvana Maria Carbonera, em "Aspectos históricos e antropológicos da família brasileira: Passagem da família tradicional para a família instrumental e solidarista", afirma que a família legítima sempre foi vista como "matrimonializada, patriarcal, hierarquizada, patrimonializada e transpessoal, fundada em um vínculo matrimonial indissolúvel, com papéis familiares inflexíveis e destaque à proteção da consanguinidade na filiação". De forma semelhante, Orlando Gomes destaca que o Brasil manteve uma postura conservadora no âmbito das famílias e sucessões, refletindo a herança patriarcal do Código Civil.
Embora, de lá para cá tenha havido avanços significativos na equiparação de gênero, esses progressos ainda são insuficientes. A previsão de 131 anos para a eliminação das desigualdades de gênero evidencia a persistência desse problema.3
Ademais, o anteprojeto prevê a possibilidade de renúncia mútua à herança entre cônjuges, preservando a autonomia privada das partes4, além de equiparar as condições de herdeiro do cônjuge às do companheiro.
Por fim, entende-se que essas mudanças poderiam rebaixar significativamente a posição do cônjuge na sucessão, demandando uma análise cuidadosa da proposta. É essencial considerar que a igualdade de gênero ainda enfrenta grandes desafios e que tais reformas precisam ser abordadas com cautela para não perpetuar desigualdades existentes.
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1 Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.
2 Inclusão do §1º no art. 1.850 do Código Civil
3 World Economic Forum. A igualdade de gênero está estagnada: 131 anos para eliminar as desigualdades. Disponível em: https://www3.weforum.org/docs/WEF_GGGR23_news_realease_PT.pdf.
4 Inclusão dos §§ 5º e 6º no art. 1.808 do Código Civil