A lei 14.063/20, dispõe sobre o uso de assinaturas eletrônicas em interações com entes públicos, em atos de pessoas jurídicas e em questões de saúde e sobre as licenças de softwares desenvolvidos por entes públicos. De acordo com a citada lei, as assinaturas eletrônicas são classificadas em simples, avançada e qualificada, sendo a assinatura avançada, expressamente, prevista para o registro de atos perante as juntas comerciais (vide arts. 4º e 5º, § 1º, inciso II, alínea “c” da lei 14.063/20).
Contudo, é importante fazer alguns esclarecimentos. De acordo com a supracitada lei, são formas de interação: i) interação interna dos órgãos e entidades da administração direta, autárquica e fundacional dos Poderes e órgãos constitucionalmente autônomos dos entes federativos; ii) interação entre pessoas naturais ou pessoas jurídicas de direito privado e os entes públicos de que trata o item anterior; e iii) interação entre os entes públicos.
No âmbito do registro público de empresas, podemos observar dois tipos de interações distintas, sendo a primeira delas, a interação entre particulares, pessoas físicas e/ou jurídicas que compõem determinada sociedade (instrumento de constituição, alteração ou extinção, ato particular das partes). E, a segunda, interação do empresário ou da pessoa jurídica com o ente público, no caso a junta comercial (requerimento com pedido de registro).
Sobre a primeira forma de interação, instrumentos entre particulares, não há a aplicação da lei 14.063, por força do art. 2º, parágrafo único, inciso II, alínea “a”1. Por outro lado, a partir do momento que o documento firmado entre as partes é apresentado para registro, passa a existir a segunda interação, que é a do particular com a junta comercial, sendo esta interação sujeita às disposições da lei 14.063.
Frisamos que, no que diz respeito a elaboração do instrumento e contratação entre as partes, deve vigorar as disposições da lei da liberdade econômica (lei 13.874/19), que reforça as normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e disposições sobre a atuação do Estado, como agente normativo e regulador. Impende aduzir que, no âmbito do direito privado, ainda que não tivesse sido editada a lei 14.063/20, a possibilidade de utilização de assinaturas eletrônicas distintas da assinatura qualificada, já era plenamente admitida, visto que os atos empresariais, a exemplo do contrato social, são documentos particulares regidos pelo direito privado, devendo prevalecer a vontade das partes. Assim, eventual limitação a determinado tipo de assinatura eletrônica ou portal de assinatura vai de encontro com a liberdade contratual e com a política de transformação digital.
Nesse sentido, reforçamos que os instrumentos societários estão na esfera da autonomia privada das partes, não sendo razoável existir limitação quanto a forma de sua assinatura, até porque não há a obrigatoriedade de que os documentos empresariais sejam assinados apenas no momento do registro. Pelo contrário, da leitura do art. 36 da lei 8.934/94, tem-se que os documentos podem ser apresentados a qualquer momento, sendo que quando apresentados dentro do no prazo de 30 dias, contados da data da assinatura, os efeitos perante terceiros retroagem à data da assinatura do instrumento. Caso o registro seja posterior aos 30 dias da assinatura, a eficácia perante terceiros passa a ser a partir da data de deferimento do ato.
Outro dispositivo que reforça a desnecessidade da assinatura das partes no momento do registro é o art. 37, inciso I da lei 8.934, que prevê que “instruirá obrigatoriamente os pedidos de arquivamento, o instrumento original de constituição, modificação ou extinção de empresas mercantis, assinado pelo titular, pelos administradores, sócios ou seus procuradores”. Ou seja, antes da solicitação do registro, há um documento assinado pelas partes.
No que diz respeito as atas de reunião ou assembleia, o art. 8º da seção IV “Dos Atos Praticados por Particulares perante Entes Públicos” da lei 14.063, trouxe expressamente que as assinaturas eletrônicas qualificadas contidas em atas deliberativas de assembleias, de convenções e de reuniões das pessoas jurídicas de direito privado constantes do art. 44 do CC, devem ser aceitas pelas pessoas jurídicas de direito público e pela administração pública direta e indireta pertencentes aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Ou seja, é indevida qualquer tipo de exigência para que essas atas sejam assinadas, exclusivamente, em portal da junta comercial.
Então, se não é por meio do instrumento constitutivo ou modificativo que há interação do particular com a Junta Comercial, qual seria o documento que formaliza essa interação? Respondemos esse questionamento com o texto do art. 33 do decreto 1.800/96, que regulamentou a lei 8.934: “Os documentos referidos no inciso II do art. 32 deverão ser apresentados a arquivamento na Junta Comercial, mediante requerimento dirigido ao seu Presidente, dentro de trinta dias contados de sua assinatura, a cuja data retroagirão os efeitos do arquivamento.”
Além disso, podemos chegar a mesma conclusão a partir da leitura do art. 1.153 do CC, que prevê: “Cumpre à autoridade competente, antes de efetivar o registro, verificar a autenticidade e a legitimidade do signatário do requerimento, bem como fiscalizar a observância das prescrições legais concernentes ao ato ou aos documentos apresentados.”. De igual modo prevê o art. 36, inciso IV da IN DREI 81: “o requerimento eletrônico deverá ser assinado eletronicamente pelo requerente, no portal da junta comercial.”
Note-se que a interação do empresário ou da pessoa jurídica com a junta comercial se materializa através do requerimento (“capa do processo”) que o interessado solicita o registro do documento, sendo esta assinatura objeto da verificação da autenticidade e legitimidade do signatário.
Sobre o assunto, o ilustre doutrinador Alfredo de Assis Gonçalves Neto leciona2:
No que se relaciona com o objeto do registro, há uma análise formal do cumprimento das prescrições legais que ele deve preencher. Nesse mister, as atribuições vão desde a mais simples verificação da estrutura de um documento, até outras, bem mais complexas, referentes ao seu próprio conteúdo.
Cumpre, por exemplo, à Junta Comercial ou ao Ofício de Registro de Pessoas Jurídicas, ao qual é apresentada por uma procuração outorgada por uma sociedade nele inscrita, verificar, apenas, se o signatário dela tem poderes para representar a sociedade; em se tratando de ato constitutivo da sociedade, no entanto, a análise envereda em seu conteúdo para conferir se estão presentes as cláusulas essenciais (CC, art. 977), se tal instrumento atende às exigências do tipo escolhido, se se trata, em razão do objeto da atividade, de sociedade que deve ser nele inscrita, se estão presentes as assinaturas de todos os sócios, se está previsto que todos os sócios irão participar dos lucros e perdas etc. Não se compreende nessa análise a apreciação de aspectos que digam respeito ao interesse das partes ou situados no âmbito de seu livre poder de disposição, por mais estranhos que possam parecer ao analista.
Já quanto ao requerimento, a atuação do órgão registrador limita-se a verificar se aquele que o assina enquadra-se entre as pessoas que a lei autoriza pleitear o registro, quais sejam: o próprio empresário individual, no que se relaciona com atos ou fatos de interesse se sua empresa, o administrador da sociedade ou, na sua falta, o sócio ou aquele que possua interesse direto no ato (CC, art. 1.151). Nisso esgota-se a tarefa de aferir a legitimidade do requerente.
(...)
A norma objeto destes comentários alude, também em redação infeliz, à obrigação de ser conferida a autenticidade daquele que requer o registro. É evidente que não se insere nas atribuições dos órgãos registradores verificar se a assinatura da pessoa que formula o requerimento é autêntica, porque tal função exige conhecimento técnico especializado. Não se trata, portanto, de reconhecer a firma do signatário do documento (...), mas de conferir, formalmente, se a assinatura lançada no requerimento aparenta ser da pessoa que ali está indicada como sua autora. (Grifamos)
Dessa forma, cabe à Junta Comercial a análise das formalidades legais para o registro dos atos societários, bem como a verificação se aquele que assina o requerimento enquadra-se entre as pessoas que a lei autoriza pleitear o registro, bem como observar a data da assinatura, para fins de efeitos perante terceiros daquele ato.
Salientamos que, o instrumento em si pode ser assinado, produzir efeitos perante as partes e, somente, após alguns meses ou anos ser levado a registro, e partir do deferimento produzir efeitos perante terceiros. Observamos que, quando se tratar de ato constitutivo, enquanto não efetuado o registro, a sociedade observará o regramento da sociedade em comum, ou seja, de uma sociedade não personificada (vide arts. 968 a 990 do CC).
Aqui, cumpre destacar que o registro visa dar garantia, publicidade, autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos das sociedades empresárias (art. 1º, inciso I da lei 8.934/94). De acordo com a especialista Paola Jacob3, por garantia entende-se oferecer as informações necessárias para identificar o exercente da atividade empresarial. A publicidade permite que qualquer pessoa tenha acesso as informações das empresas. Por sua vez, a segurança possibilita que a junta comercial, a partir das informações contidas no órgão registral, estabeleça uma segurança parcial para aqueles que irão contratar com as empresas ali registradas. Já a eficácia conferida após o registro, significa que os atos passam a produzir efeitos perante terceiros.
Nesse sentido, o doutrinador Américo Luís4 explica que “o registro é um ato meramente material de expediente, que não dá validade ao ato registrado; ele só se presta a dar solenidade ao ato e autenticação do contrato.”
Adicionalmente, ao se falar de atos sujeitos ao registro público de empresas, não há como não mencionar o DREI - Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração, órgão que regulamenta todo o processo de registro de empresas. Acerca do assunto, o DREI desde a publicação da IN 75/20, autoriza a utilização de qualquer tipo de assinatura eletrônica, desde que passível de comprovação da autoria e integridade dos documentos em forma eletrônica.
Contudo, há quem defenda que o art. 5º, caput, da lei 14.063/20, quando trata da “Da aceitação e da utilização de assinaturas eletrônicas pelos entes públicos”, prevê que o titular do Poder ou do órgão constitucionalmente autônomo de cada ente federativo estabelecerá o(s) tipo(s) de assinatura(s) eletrônica(s) que irá(ão) ser exigida(s), ou seja, que haveria autonomia estatal para definir a assinatura tanto dos instrumentos societários, quanto do requerimento com o pedido de arquivamento. Porém, conforme já exposto, a autonomia dos entes federativos deve se restringir aos documentos de interação do empresário ou sociedade com o órgão de registro, ou seja, o requerimento que encaminha o ato a ser arquivado.
Em que pese a necessidade de a autonomia privada prevalecer para fins de escolha da forma de assinatura, há a necessidade de se resguardar a segurança jurídica dos atos que são arquivados, pois, há grande demanda de falsificação de instrumentos. Com o objetivo de contribuir para o ambiente de negócios, recentemente foi publicada a IN DREI 1/24, que alterou o texto da IN DREI 81/20, e trouxe mecanismos para que as Juntas Comerciais5 realizem a validação das assinaturas eletrônicas com segurança (utilização de seu próprio portal ou através de declaração de autenticidade)6 e, não limitem a assinatura a um determinado formato ou portal.
Cumpre citar que a declaração de autenticidade, que pode ser produzida por advogados e/ou profissionais contábeis, prevista no art. 28 da IN DREI 81, diz respeito à possibilidade de autenticação de cópias de documentos. Essa declaração foi introduzida na lei 8.934/94, pela lei da liberdade econômica, que permitiu que esses profissionais realizassem a autenticação de documentos apresentados a registro, substituindo o reconhecimento de firma.
Ao trazer essa declaração para o ambiente eletrônico, o DREI objetivou garantir maior segurança para o arquivamento, pois, conforme defendido, o ato principal pode ser assinado de acordo com a vontade das partes. Não sendo possível a validação dos signatários, mas sendo apresentado de forma conjunta, a declaração de autenticidade e o documento pessoal do profissional perante a junta comercial, o DREI reforça a segurança jurídica do ato, pois, há um profissional identificado que está, com base na lei e sob pena de responsabilidade, declarando que o documento apresentado é autêntico.
Acerca da declaração de autenticidade, José Cerezoli7 destaca:
O que realmente importa neste ponto é que o agente que realiza o pedido de registro digital deve estar consciente das responsabilidades advindas dessa declaração na esfera criminal. Conforme o disposto nos §§ 1º e 2º do art. 40, do decreto 1.800/96, em caso de suspeita de falsificação nos atos societários, a Junta Comercial poderá suspender os efeitos de seu registro ou até mesmo desarquivá-lo, se comprovada a falsificação, garantindo aos envolvidos a ampla defesa e o contraditório.
(...)
Caso haja uma falsificação dos documentos ou assinaturas, a Junta Comercial informará o corrido ao Ministério Público e às autoridades fazendárias. Neste caso, os agentes fraudadores poderão responder pelos crimes de falsificação de documento particular e uso de documento falso, (...).
Já o agente que declarou a veracidade dobre os documentos eivados de falsificação poderá responder pelo crime de falsidade ideológica, (...).
À título de conhecimento, através da IN DREI 1, houve uma diferenciação da forma de apresentação e assinatura dos instrumentos constitutivos, modificativos e extintivos de outros documentos que instruem os pedidos de arquivamento. De acordo com o art. 35-A, os instrumentos constitutivos, modificativos e extintivos deverão ser assinados digitalmente pelos seus signatários, através de assinatura avançada ou qualificada, salvo poucas exceções. Já no art. 36, que apresenta o rol de documentos que devem instruir os pedidos de registro, não há limitação para a assinatura eletrônica, podendo, inclusive o documento ter assinatura manual e devendo ser acompanhado de declaração de "veracidade" pelo próprio requerente, na medida em que nem sempre é o sócio ou administrador que realiza o protocolo. A declaração de veracidade deve ser utilizada apenas para atos acessórios, onde o requerente declara que o documento digitalizado confere com o documento original e físico.
Diante de todo o exposto, são válidos os documentos societários assinados de forma eletrônica, sejam através de assinaturas avançadas ou qualificadas, não sendo razoável existir limitação quanto a escolha da assinatura que irá ser utilizada, visto que são documentos particulares, devendo prevalecer as diretrizes da lei da liberdade econômica. À Junta Comercial cabe a análise das formalidades legais e, observada a autonomia privada, dar garantia, publicidade, autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos das empresas, submetidos a registro na forma da lei e, conforme regulamentação do DREI.
1 Art. 2º Este Capítulo estabelece regras e procedimentos sobre o uso de assinaturas eletrônicas no âmbito da:
(...)
Parágrafo único. O disposto neste Capítulo não se aplica: (...) II - à interação: a) entre pessoas naturais ou entre pessoas jurídicas de direito privado;
2 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de Empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 11 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023. Págs. 847 e 848.
3 JACOB, Paola Domingues. Controle dos atos societários pelas juntas comerciais: uma visão histórica, estrutural e procedimental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. Pág. 56.
4 DA SILVA, Américo Luís. Registro Pública da Atividade Empresarial: registro público das empresas mercantis e atividades afins, registro da propriedade intelectual. Rio de Janeiro: Forense, 2002. Pág. 21.
5 Compete as Juntas Comerciais a verificação da autenticidade e legitimidade do signatário do requerimento, conforme previsão do art. 1.153 do Código Civil.
6 Art. 35. Conforme previsão do art. 5º da Lei nº 14.063, de 2020, ato do titular do Poder ou do órgão constitucionalmente autônomo de cada ente federativo estabelecerá o(s) tipo(s) de assinatura(s) eletrônica(s) que irá(ão) ser exigida(s), porém é recomendável a uniformização entre as Juntas Comerciais e a aceitação das assinaturas avançada e qualificada.
§ 1º A assinatura eletrônica, nos termos da Lei nº 14.063, de 2020, poderá ser avançada, inclusive mediante a disponível no portal “gov.br”, ou qualificada.
§ 2º A assinatura eletrônica que for realizada fora do portal da junta comercial será aceita para os documentos sujeitos a arquivamento, desde que seja:
I - possível verificar sua associação ao signatário de maneira unívoca (validar a assinatura), via sistema da junta comercial; ou
II - apresentada declaração de autenticidade eletrônica, na forma do art. 28, inciso II, alínea “b”, e §§ 1º a 3º desta instrução normativa.
7 CEREZOLI, José. Manual de registro público de empresas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023. Pág. 114.