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Lucros cessantes presumidos em hipóteses de resolução contratual: o AgInt no RESp 1881482-SP

Se a entrega do imóvel atrasou, e o credor requereu a resolução contratual, terá direito à restituição integral dos valores pagos, mas não à presunção dos lucros cessantes, situação diversa se a ação for de obrigação de fazer.

17/5/2024

Em 2018, o STJ, no Tema 996, firmou o entendimento de que “no caso de descumprimento do prazo para a entrega do imóvel, incluído o período de tolerância, o prejuízo do comprador é presumido, consistente na injusta privação do uso do bem, a ensejar o pagamento de indenização, na forma de aluguel mensal, com base no valor locatício de imóvel assemelhado, com termo final na data da disponibilização da posse direta ao adquirente da unidade autônoma”.

Até então, a Corte vinha aplicando a tese acima, possibilitando ao comprador prejudicado pelo atraso na entrega do imóvel o ajuizamento de ação de obrigação de fazer cumulada com danos materiais e morais ou ainda resolução contratual para se ver restituído de todos os valores pagos. Quanto ao direito a lucros cessantes, o STJ não fazia distinção entre os dois tipos de pretensão passíveis de opção pelo adquirente, o que ensejava o acúmulo da condenação à devolução integral dos valores pagos com os lucros cessantes presumidos pela privação do bem.

Nesse sentido, independentemente das diferenças entre ambas as ações descritas acima, era reconhecido o direito ao comprador, além da restituição dos valores (Súmula 543 do STJ) – integral ou parcial, a depender da culpa de uma das partes – também a presunção desses lucros cessantes1.

Recentemente, todavia, a Quarta Turma do STJ realizou uma distinção necessária a depender da opção pelo ajuizamento de uma das seguintes ações: se houver ação de obrigação de fazer, caberá o ressarcimento de lucros cessantes presumidos. Situação diversa ocorrerá se houver o ajuizamento de ação resolutória; não cabendo, neste último caso, tais danos.

A explicação para a distinção decorre da aplicação prática de conceitos doutrinários já consagrados na doutrina, que explicitam bem os critérios para se apurar a extensão da responsabilidade e o tipo de indenização: a tutela do interesse contratual negativo e positivo, terminologias estas inicialmente estudadas por Rudolf Jhering2, apreciadas por Paulo Mota Pinto em Portugal3e bem explicadas por Renata Carlos Steiner no Brasil4. A teoria tampouco escapa ao sistema de common law, que apresenta os conceitos similares de restitution interest, reliance interest e expectation interest5.

Nesse sentido, enquanto o interesse negativo seria a situação patrimonial em que o devedor estaria se nem sequer houvesse cogitado do contrato, o interesse positivo seria a situação patrimonial na qual o lesado estaria se o contrato houvesse sido adequadamente cumprido6. A distinção é relevante não apenas por possibilitar a coerência lógica do sistema, mas também por explicitar, com mais concretude e especificidade, aspectos indenizatórios que estariam apenas delimitados de forma genérica, nos termos dos arts. 403 e 944, ambos do Código Civil.

Com base nessas distinções, e na premissa de que os efeitos resolutórios do contrato levam ao retorno das partes ao status quo ante (art. 182 do CC), e como Pontes de Miranda bem mencionava, “como se o contrato jamais se tivesse constituído”7 – e considerando também as controvérsias doutrinárias a respeito do tema -,  é possível concluir que, de fato, se o credor optar pela resolução do contrato, só poderá pedir de forma cumulada a indenização relacionada aos danos que sofreu pela alteração da sua posição contratual, ou seja, será ressarcido no valor necessário para inseri-lo na mesma situação que estaria se o contrato não tivesse sido celebrado (interesse contratual negativo)8, pela própria incompatibilidade lógica entre a teoria do interesse contratual positivo e a eficácia extintiva do remédio resolutório9.

Este foi o entendimento adotado recentemente pelo STJ no AgInt no RESp 1881482-SP, concluindo que não poderia o credor ser restituído de todos os valores despendidos pela compra do imóvel e ainda receber uma indenização (lucros cessantes presumidos) cuja função seria a de substituir o próprio cumprimento do contrato. Por outro lado, se o comprador exigir o cumprimento da obrigação, poderá cumular o seu pedido com o de indenização, sendo que esta estará ligada ao interesse contratual positivo.

A fundamentação do voto condutor do acórdão dá aplicação à teoria doutrinária: não são devidos os lucros cessantes presumidos que somente poderiam ser alcançados com a execução completa do contrato em hipóteses de resolução contratual, dado que um dos efeitos desta situação é exatamente retornar ao status quo ante, no qual as partes estavam (art. 182 do CC), ou seja, ao final, é como se a parte nunca tivesse adquirido o bem imóvel em questão. Assim, possibilitar a cobrança de aluguéis por um bem que nunca pertenceu e nem pertencerá ao promissário comprador, seria incongruente por si só.

Em semelhante lógica, tampouco terá direito à valorização do bem (aquele que se incorporaria ao patrimônio do adquirente, acaso preservado o contrato), pois conforme bem menciona Antônio Junqueira de Azevedo, “O que razoavelmente deixou de lucrar não é, naturalmente, o que obteria com o contrato, e, sim, o que obteria se as negociações não fossem realizadas”10.

Tal situação, contudo, não significa que a parte credora não possa requerer indenização por eventuais prejuízos sofridos, mas estes, se devidos, além de abarcar tão somente o interesse contratual negativo (nos termos do disposto no art. 475 do Código Civil), devem ser especificamente alegados e comprovados, mas não presumidos.

Isso porque a resolução extingue tão somente a relação contratual entre as partes, mas não propriamente o contrato11. Extinta a relação obrigacional, então surgirá uma nova relação de liquidação para restituir as partes ao status quo ante (restituição) e, eventualmente, indenizar pelos danos sofridos.

Estes prejuízos a serem demonstrados podem abarcar, por exemplo, o surgimento de outras boas ocasiões de negociações durante o prazo de adimplemento contratual pela parte promitente-vendedora, que, contudo, não foram finalizadas em decorrência do atraso na entrega do imóvel, a configurar, eventualmente a consagração da perda de uma chance12.

A discussão se torna mais relevante quando se vislumbra contratos inadimplidos de lotes não edificados. Nessas situações, não há inicialmente uma expectativa de lucratividade, tendo em vista a necessidade de que haja um aporte financeiro pelo comprador para que o bem se torne residencial ou comercial, e, assim, economicamente utilizável.

Por se tratar de possível e futura construção, os prejuízos causados seriam mera conjectura. Daí a inviabilidade de se deferir a resolução contratual cumulada com lucros cessantes presumidos, com base em percentual mensal do valor do lote atualizado, em um lote onde que sequer há construção disponível13.

Por outro lado, e da mesma forma que se tutela o interesse contratual negativo para as hipóteses de resolução de contrato cujo objeto sejam lotes edificados, também deve ocorrer com os lotes não edificados, merecedores, contudo, de maior cuidado. Por exemplo, se houve a comprovação de que, durante o período planejado para a entrega do lote, a parte compradora havia firmado um contrato do tipo built to suit – aquele em que o locador adquire imóvel e previamente procede à construção ou substancial reforma para aluguel posterior14 - então pode haver a configuração da perda de uma chance de uma negociação apta a viabilizar a cobertura pelo interesse contratual negativo.

Por isso, o julgamento no AgInt no RESp 1881482-SP, a despeito de inviabilizar a presunção para os lucros cessantes a título de aluguéis que a parte deixou de receber em hipóteses de resolução contratual, não impossibilitou a parte de, demonstrando cabalmente os prejuízos decorrentes, ser tutelada pelo interesse contratual negativo, que poderia abarcar tão somente os danos não advindos do próprio imóvel. Isso porque, em consonância com os efeitos resolutórios do contrato – fundado em uma abstração “como se” o contrato não tivesse existido -, se o imóvel nunca pertenceu a ela, não seria possível deferir os aluguéis decorrentes dessa mesma situação hipotética.

A distinção feita no julgamento é relevante – não apenas por efetuar o diálogo entre a doutrina abstrata e a jurisprudência formada a partir da grande diversidade dos casos concretos ou apaziguar um pouco das controvérsias decorrentes da lei 13.786/18 – mas também por ser importante precedente para os demais julgados que venham a tratar dos critérios indenizatórios na resolução contratual e quiçá um prelúdio para novas reflexões casuísticas.

____________

1 Nesse sentido: AgInt no AREsp n. 1.205.804/AM, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 20/11/2023, DJe de 24/11/2023; AgInt no REsp n. 1.975.034/SP, relator Ministro Humberto Martins, Terceira Turma, julgado em 25/9/2023, DJe de 27/9/2023; AgInt no REsp n. 2.051.118/PA, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 28/8/2023, DJe de 31/8/2023.

Assim como outros julgados em hipótese de resolução contratual: AgInt no REsp n. 1.809.522/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 24/9/2019, DJe de 22/10/2019; AgInt no AREsp n. 2.178.302/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 4/9/2023, DJe de 6/9/2023.  

2 JHERING, Rudolf. Culpa in contrahendo ou indemnização em contratos nulos ou não chegados à perfeição. Tradução e nota introdutória de Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2008.

3 PINTO, Paulo Mota. Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo – Vol. II. Coimbra: Editora Coimbra, 2008.

4 STEINER, Renata Carlos. Interesse positivo e interesse negativo: a reparação de danos no Direito Privado Brasileiro (Tese de Doutorado), São Paulo, Universidade de São Paulo, 2016.

5 Sobre o tema, v. obra de referência: FULLER, L. L.; PERDUE, William R. The reliance Interest in Contract Damages. The Yale Law Journal, vol. 46, n. 1, nov., 1936, pp. 52-96.

6 MOTA PINTO, Paulo. Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo. Vol. 2. Coimbra: Editora Coimbra, 2008, pp. 850-864.

7 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de Direito Privado – Parte Especial – Tomo XXV – Direito das obrigações. Atualizado por: JUNIOR, Nelson Nery; NERY, Rosa Maria de Andrade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 393.

8 COSTA, Judith Martins. Responsabilidade Civil Contratual. Lucros Cessantes. Resolução. Interesse Positivo e Interesse negativo. Distinção entre Lucros Cessantes e Lucros Hipotéticos. Dever de Mitigar o Próprio Dano. Dano Moral e Pessoa Jurídica. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore; MARTINS, Fernando Rodrigues (Coord.). Temas relevantes do direito civil contemporâneo - reflexões sobre os 10 anos do código civil. São Paulo: Athas, 2012. p. 563.

9 Como bem descreve Araken de Assis, “Realmente, como situar o credor em posição equivalente à que resultaria do cumprimento, se o contrato foi destruído retroativamente?” - ASSIS, Araken de. Resolução do contrato por inadimplemento. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 125.

10 AZEVEDO, Antônio Junqueira. A boa fé na formação dos contratos. Revista de Direito do Consumidor. Vol. 3, jul.-set., 1992, pp. 78-87.

11 ASSIS, Araken de. Resolução do contrato por inadimplemento. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 478.

12 Cf. GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros cessantes: do bom-senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 147.

13 O STJ, contudo, vem replicando o entendimento também para os lotes não edificados: AgInt no REsp n. 2.053.900/SP, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 2/10/2023, DJe de 6/10/2023; AgInt no REsp n. 1.839.851/SP, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 12/12/2022, DJe de 14/12/2022.

14 GOMES, Orlando. Contratos. Atualizadores: BRITO, Edvaldo; BRITO, Reginalda Paranhos. 28ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 322.

Natasha Reis de Carvalho Cardoso
Mestra em Direito Civil (USP). Pós-Graduada em Direito Empresarial (FGV). Bacharela em Direito (USP). Extensão universitária pela Universität Zürich (UZH - Suíça). Assessora de ministra do STJ.

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