Nos dias 8 a 10 de junho de 2016, em Maceió, realizou-se o XXXIX Encontro do Fórum Nacional de Juizados Especiais (Fonaje). No referido Encontro XXXIX restou aprovado o Enunciado Cível 166 do Fonaje, que possui o seguinte teor:
“Enunciado nº 166. Nos Juizados Especiais Cíveis, o juízo prévio de admissibilidade do recurso será feito em primeiro grau.”
No livro “Os enunciados cíveis do Fonaje e seus fundamentos”, de autoria dos magistrados Erick Linhares, Guilherme Ribeiro Baldan e da magistrada Maria do Carmo Honório, consta que esses foram os fundamentos para a edição do enunciado acima transcrito:
“O enunciado se justifica diante do disposto no § 1º, do art. 42, da Lei 9.099/95, que preceitua: ‘O preparo será feito, independentemente de intimação, nas quarenta e oito horas seguintes à interposição, sob pena de deserção’, o que significa que, a ausência de comprovação do preparo, no próprio juízo, nas quarenta e oito horas seguintes à interposição, leva à rejeição de plano do recurso, que sequer será remetido ao Colégio Recursal.
E isso já diferenciava o procedimento daquele previsto no Código de Processo Civil/73 (art. 542, § 1º), no qual a competência para o juízo de admissibilidade era do órgão “ad quem”, podendo o juízo ‘a quo’, entretanto, em homenagem ao princípio da economia processual, num primeiro momento, decidir provisoriamente sobre a admissibilidade do recurso, mas podendo essa decisão ser modificada pelo tribunal de admissibilidade recursal.
E maior razão trouxe ao Enunciado, o advento do Código de Processo Civil de 2015, que no seu artigo 1.010, § 3º, afastou de vez o juízo de admissibilidade do recurso de apelação no órgão “a quo”, determinando que, após as formalidades previstas nos §§ 1º e 2º, os autos deverão ser remetidos ao tribunal pelo juiz, independentemente de juízo de admissibilidade.
Assim, diante da previsão expressa do § 1º, do art. 42, da lei 9.099/95, acima mencionado, e dos critérios informativos do Sistema dos Juizados, quais sejam, da celeridade e economia processual, previstos no art. 2º, da lei 9.099/95, que tornam peculiar seu procedimento, não se justifica vedar a apreciação da admissibilidade do recurso pelo juízo ‘a quo’, o que trouxe a necessidade do Enunciado 1661.”
No presente artigo, demonstrar-se-á que o Enunciado Cível 166 do Fonaje foi editado com base em premissas equivocadas, senão vejamos.
Para uma melhor compreensão do que irá ser defendido abaixo, prudente se faz transcrever o teor do § 1º do art. 42 da lei 9.099/95:
“Art. 42. O recurso será interposto no prazo de dez dias, contados da ciência da sentença, por petição escrita, da qual constarão as razões e o pedido do recorrente.
§ 1º O preparo será feito, independentemente de intimação, nas quarenta e oito horas seguintes à interposição, sob pena de deserção.”
Da leitura do dispositivo acima transcrito, constata-se que, em nenhum momento, consta que a deserção deverá ser declarada pelo Juízo a quo. Essa é, portanto, a primeira premissa equivocada que levou a edição do Enunciado Cível 166 do Fonaje.
Na verdade, entende-se que o dispositivo da lei 9.099/95 que poderia gerar alguma dúvida sobre o tema é o seguinte:
“Art. 43. O recurso terá somente efeito devolutivo, podendo o Juiz dar-lhe efeito suspensivo, para evitar dano irreparável para a parte.”
Contudo, o referido dispositivo não dispõe que o efeito suspensivo ao recurso inominado será concedido pelo Juízo a quo.
Registre-se, por pertinente, que o fato de a segunda instância dos Juizados Especiais ser composta por magistrados(as) de primeiro grau dá amparo a tese de que o art. 43 da lei 9.099/95 pode estar se referindo ao Relator do recurso inominado e não ao Juízo que proferiu a sentença.
Com efeito, entende-se que se aplica aos Juizados Especiais o § 3º do art. 1.010 do CPC/15, que possui o seguinte teor:
“Art. 1.010. A apelação, interposta por petição dirigida ao juízo de primeiro grau, conterá:
(...)
§ 3º Após as formalidades previstas nos §§ 1º e 2º, os autos serão remetidos ao tribunal pelo juiz, independentemente de juízo de admissibilidade.”
Sobre o dispositivo acima transcrito, é pertinente transcrever o seguinte trecho do parecer definitivo do ainda projeto do novo CPC na Câmara dos Deputados, apresentado pelo deputado Paulo Teixeira, no qual se elenca as principais modificações constantes do Projeto de Lei do Senado nº 166, de 2010 (renumerado na Câmara dos Deputados como PL nº 8.046, de 2010):
“13) ocorreu a transferência do juízo de admissibilidade do recurso de apelação para o Tribunal (art. 966). Hoje ele é feito, num primeiro momento, em primeiro grau e, depois, novamente, pelo Tribunal (art. 518 do CPC). É o fim do juízo de admissibilidade bipartido da apelação e, consequentemente, de mais um foco de recorribilidade2;”
Ainda no mencionado parecer definitivo do ainda projeto do novo CPC na Câmara dos Deputados, apresentado pelo deputado Paulo Teixeira, também merece menção a seguinte manifestação do Professor José Manoel de Arruda Alvim Netto acerca do juízo de admissibilidade do recurso de apelação, que ocorreu na audiência pública realizada em 30/11/2011:
“Um ato hoje claramente inútil é exigir do juiz um juízo de admissibilidade dos recursos, especialmente o recurso de apelação. Esse ato é sempre dependente de uma confirmação no tribunal. Portanto, a admissão do recurso pelo juiz de 1º grau deixa de existir. Ele apenas processará o recurso e o enviará ao tribunal, que então o admitirá uma vez e definitivamente. Portanto, isso também responde ao princípio da instrumentalidade e da economia processual3.”
Da análise do parecer definitivo do ainda projeto do novo CPC na Câmara dos Deputados, apresentado pelo deputado Paulo Teixeira, constata-se que o segundo fundamento que levou a edição do Enunciado Cível 166 do Fonaje, qual seja, o de que admissibilidade do recurso inominado pelo Juízo de primeiro grau estaria de acordo com os princípios da celeridade e economia processual, não se sustenta.
Aliás, a retirada do juízo de admissibilidade do recurso de apelação pelo Juízo singular teve como objetivo justamente a celeridade processual, porquanto “eliminou-se o agravo de instrumento contra a decisão proferida pelo Juízo a quo que não admitia o recurso de apelação4”.
Outro argumento que reforça que a tese de que a previsão contida no art. 43 da lei 9.099/95 é destinada ao Relator do Recurso Inominado e não ao Juízo a quo é o fato de que o art. 14 da lei 7.347/85 (que disciplina a ação civil pública) também prevê que “o juiz poderá conferir efeito suspensivo aos recursos, para evitar dano irreparável à parte” e não se vê nenhum questionamento de que a análise do efeito suspensivo ao recurso de apelação interposto na ação civil pública cabe ao Relator do Tribunal ad quem.
Com efeito, restou demonstrado que o Enunciado Cível 166 do Fonaje foi editado com base em premissas equivocadas, razão pela qual se defende o seu cancelamento.
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1 Os enunciados cíveis e seus fundamentos. HONÓRIO, Maria do Carmo; LINHARES, Erick; BALDAN, Guilherme Ribeiro (Organizadores). 1. ed. Porto Velho, RO, 2019, p. 88/89.
2 Parecer do Deputado Paulo Teixeira, p. 60. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/54a-legislatura/8046-10-codigo-de-processocivil/proposicao/pareceres-e-relatorios/parecer-do-relator-geral-paulo-teixeira-08-05-2013, p. 13. Acesso em 15/5/2024.
3 Parecer do Deputado Paulo Teixeira, p. 60. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/comissoes/comissoestemporarias/especiais/54a-legislatura/8046-10-codigo-de-processocivil/proposicao/pareceres-e-relatorios/parecer-do relator-geral-paulo-teixeira-08-05-2013, p. 132. Acesso em 15/5/2024.
4 DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil: o processo civil nos tribunais, recursos, ações de competência originária de tribunal e querela nullitatis, incidentes de competência originária de tribunal - 21 ed. – São Paulo: Ed. JusPodivm, 2024, p. 256.