Apesar da lei Maria da Penha estar em vigor desde 2006, há quase 20 anos, e da igualdade de gênero consistir em um dos objetivos de desenvolvimento sustentável no Brasil, assuntos relacionados a violência doméstica e familiar contra a mulher ainda precisam ser amplamente discutidos e estão longe de alcançar a garantia adequada e necessária.
Não é à toa que o tema é tratado com recorrência nos informativos do STJ, o que consideramos positivo e oportuno para a devida aplicação dos importantes institutos jurídicos previstos nesta lei.
Para termos melhor perspectiva da situação, nos quatro primeiros meses de 2024 o tema foi objeto de informativos do STJ por 6 vezes, oportunidades em que o assunto foi abordado sob diversas perspectivas. Dentre elas, destacamos as seguintes:
- Inexistência de prazo de vigência de medidas protetivas, que devem vigorar enquanto persistir a situação de risco;
- Presunção de vulnerabilidade e hipossuficiência da mulher, inclusive em relação entre irmão e irmã;
- Aplicabilidade da lei às mulheres trans em situação de violência doméstica;
- Não incidência do princípio da insignificância nos crimes praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas;
- Natureza de ação penal pública incondicionada aos crimes de lesão corporal leve cometidos em detrimento da mulher, no âmbito doméstico e familiar.
Ocorre que, para a nossa surpresa, as pessoas para as quais a lei foi elaborada, ou seja, aquelas mulheres vítimas de violência doméstica que revelam o principal propósito da norma, parecem não ter conhecimento claro e integral dos recursos e instrumentos disponibilizados para a garantia de seus direitos e principalmente para sua proteção e de sua família.
O que notamos, na realidade, é que muitas das vítimas, apesar de saberem sobre a existência dessa lei, não compreendem seu conteúdo, impedindo, desta forma, o acesso aos direitos garantidos pela legislação.
Aparentemente, o conhecimento comum limita-se ao fato de "o homem que bate pode ser preso". Entretanto, a lei é muito mais abrangente, as peculiaridades e amplitude das garantias e proteção precisam chegar ao conhecimento das vítimas com urgência. Na realidade, em 2006, quando a lei entrou em vigor, a percepção de seu conteúdo já era urgente. Hoje, cerca de 18 anos depois, é inadiável, mesmo depois de todas as suas alterações, que as vítimas sejam efetivamente protegidas.
Neste ponto, não só as ofendidas, mas todo o corpo social precisa saber que a lei Maria da Penha ultrapassa a proteção contra a prática de violência física e alcança, também, a proteção contra a prática de violência psicológica, sexual, patrimonial e/ou moral.
Isso significa que não somente empurrões, tapas ou chutes, agressões físicas, possibilitam a concessão de medidas protetivas. Condutas que causem danos emocionais e diminuição da autoestima, prejudiquem o desenvolvimento ou controlem as ações da mulher, por exemplo, são consideradas como práticas que configuram violência psicológica.
Da mesma forma, a destruição de objetos e o controle do dinheiro da mulher, configura violência patrimonial e a prática de calúnia, difamação ou injuria configuram violência moral. A violência sexual, por sua vez, geralmente discreta, resta configurada por meio do constrangimento à pratica de qualquer ato sexual não desejado, ainda mais grave se realizado por meio de ameaça ou uso de força.
Todas essas violências, que não se esgotam nos exemplos mencionados, ensejam a concessão de medidas protetivas, que podem ser requeridas antes mesmo da prática das agressões, desde que demonstrada sua iminência.
Seja qual for o cenário, o assunto precisa ultrapassar as cercas do judiciário para alcançar as camadas sociais de forma mais abrangente com o fim de produzir os efeitos esperados, dentre eles a efetiva proteção da mulher, historicamente vulnerável na sociedade marcada pelo machismo estrutural.
O que nos resta é seguir na missão conscientizadora e cobrar das autoridades públicas a promoção de políticas de conscientização e informação.