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O caso “Tio Paulo” e a prisão preventiva para a garantia da ordem pública

A indeterminação da garantia da ordem pública como fundamento para a decretação da prisão preventiva, sob a perspectiva do caso "Tio Paulo”.

6/5/2024

No último dia 16/4, a internet foi tomada pelo caso "Tio Paulo", que repercutiu muito e ainda é objeto de diversas matérias jornalísticas, diariamente.

Não sem razão: Os fatos impressionam a qualquer um, e parecem ter sido retirados das hipóteses utilizadas pela doutrina para exemplificar os institutos penais.

Para os leitores que não acompanharam, um resumo do caso: Erika Nunes foi presa em flagrante pela prática, em tese, dos crimes de furto mediante fraude e vilipêndio a cadáver, pois teria levado seu tio, Paulo Braga, a uma agência do Itaú em Bangu, no Rio de Janeiro, com a intenção de obter um empréstimo de dezessete mil reais em nome de seu tio. Paulo, entretanto, foi supostamente levado morto à agência, o que foi confirmado pelo médico da SAMU no local. A Polícia Militar foi chamada e Erika foi presa em flagrante, tendo sua prisão sido convertida em preventiva no último dia 18/4.

O presente texto, até mesmo em razão da ampla divulgação dos fatos, pretende se ocupar dos aspectos técnico-jurídicos da decisão que decretou a prisão preventiva de Erika.

Embora a decisão também tenha sido divulgada em diversos canais de informação1, diferentemente de outros pontos amplamente discutidos – como a gravidade dos fatos, a configuração da tentativa, crime impossível, o elemento subjetivo etc. –, pouco ou nada se falou sobre o uso da garantia da ordem pública como fundamento da decisão.

E é esse o objetivo do presente artigo: Verificar, à luz do que dispõe o CPP, em especial após as mudanças promovidas pela lei 13.964/19, se há elementos jurídicos aptos a embasar a concessão de tão grave medida.

Segundo a decisão, a necessidade da prisão preventiva de Erika foi fundamentada na presença do fumus commissi delicti e no periculum libertatis: O primeiro requisito decorreria da própria prisão em flagrante e das declarações prestadas na polícia; o segundo, na gravidade do crime, pois Erika teria subtraído o patrimônio da vítima.

Acresceu-se a esses fundamentos, conforme o entendimento da magistrada, diversos argumentos ligados ao mérito da causa, como, por exemplo, que a questão principal seria definir se a vítima tinha condições de expressar sua vontade, e não o momento exato da morte; além disso, na visão da magistrada, as circunstâncias do caso indicavam que a vontade de realizar o empréstimo era exclusiva de Erika, a qual não teria se preocupado com o estado de saúde de Paulo.

As cautelares diversas da prisão foram afastadas ao argumento de que não eram suficientes ou adequadas. A substituição por prisão domiciliar requerida pela defesa também foi negada, pois "o fato de a custodiada possuir filha com deficiência não pode servir como salvo conduto para a prática de crimes".

Ao final, se concluiu que a prisão preventiva era necessária para a garantia da ordem pública "[...] porque crimes como esse comprometem a segurança da cidade do Rio de Janeiro", o que exigiria a atuação do poder Judiciário para restabelecer a paz social violada, em tese, pela conduta de Erika.

A decisão suscita a discussão sobre dois problemas antigos: A indeterminação do conteúdo da "garantia da ordem pública"; e o afastamento das medidas cautelares diversas da prisão por meio de motivação genérica.

A "garantia da ordem pública" sempre foi objeto de críticas contundentes pela doutrina2.

Há aqueles que defendem a sua inconstitucionalidade, pois a sua imprecisão acaba por viabilizar prisões para a antecipação da pena, ou mesmo para atender ao clamor social, frequente em casos de grande repercussão midiática, como o de Erika.

Por outro lado, resumidamente, os defensores da constitucionalidade sustentam que a garantia da ordem pública é amplamente prevista na legislação comparada, e que a prisão decretada sob este fundamento é legítima e constitucional, desde que a expressão "garantia da ordem pública" seja interpretada para evitar o risco de reiteração delitiva.

O ponto comum entre as correntes: Nenhuma admite a prisão preventiva como punição ou para atender a anseios sociais.

A lei 13.964/19 reforçou essa interpretação, privilegiando a presunção de inocência, ao vedar expressamente o uso da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de pena. Também não é possível a decretação da prisão quando for cabível a sua substituição por outra medida cautelar.

Tudo isso sem esquecer do modelo decisório também reafirmado pela lei 13.964/19: A decisão deve ser fundamentada em dados objetivos dos autos e demonstrar o perigo gerado pelo estado de liberdade do cidadão, além de explicitar a relação entre os conceitos e dispositivos invocados com a causa. Não valem as decisões genéricas e pré-formatadas.

No caso de Erika, aparentemente, a garantia da ordem pública, exatamente por sua indeterminação, justificou uma prisão que não possui finalidades instrumentais, isto é, a prisão não foi decretada para tutelar interesses processuais, como a conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal.

A primeira evidência disso é o uso de expressões vagas, como o comprometimento à segurança pública da cidade do Rio de Janeiro e a violação da paz social, que são passíveis de aplicação a qualquer caso e revelam a fragilidade na motivação da decisão.

Além disso, os pré-juízos, ligados ao mérito da causa – como a afirmação de que Erika teria subtraído o patrimônio da vítima, e o fato de que possuir filha com deficiência não poderia ser utilizado como escudo para a prática de crimes –, revelam o emprego de argumentação incompatível com o momento processual3.

O caso de Erika é apenas um entre os milhares de exemplos dos perigos ocasionados pela imprecisão do conteúdo da garantia da ordem pública, pois deixam ao magistrado um amplo espaço de discricionariedade, que pode ser facilmente utilizado para justificar prisões que não estão alinhadas a interesses instrumentais, como a proteção de testemunhas, por exemplo4.

O risco é a banalização da prisão, como muitos defendem já ocorrer no Brasil, sujeitando qualquer pessoa a uma prisão que jamais deveria ser decretada, como ocorre nos casos em que a prisão preventiva se perpetua em investigações de crimes que, ao final, somente admitiriam a fixação de regimes mais brandos.

Soma-se a esse quadro o afastamento imotivado das cautelares diversas e da prisão domiciliar, o que acaba por encerrar o conjunto de fatores que indicam que a prisão, ao que parece, não serviu a interesses processuais – ou até mesmo para evitar o risco de reiteração delitiva, o que seria, por si só, dificilmente demonstrável –, mas atendeu à comoção pública e à tutela da credibilidade do poder Judiciário.

As medidas cautelares diversas da prisão foram inseridas na legislação pela lei 12.403/11, com a promessa de oferecer ao magistrado uma solução intermediária, em substituição ao "tudo ou nada", isto é, previu-se a possibilidade de se decretar medidas proporcionais aos fatos, sem que fosse necessário recorrer diretamente à prisão preventiva.

Passados mais de dez anos desde a promulgação da lei 12.403/11, decisões como esta ainda são comuns; e, apesar dos avanços, o problema adquire novos contornos: Na prática, as cautelares diversas são decretadas como decorrência automática da revogação da prisão preventiva, ou são afastadas sem que tenha havido a demonstração efetiva de que não são suficientes ou adequadas.

Enfim, o fundamento da garantia da ordem pública protagoniza, diariamente, um dos maiores contrassensos do processo penal: a indeterminação de seu conteúdo acaba por esvaziar a natureza instrumental da prisão preventiva, cedendo espaço à inconstitucional prisão por clamor social.

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1 A decisão foi publicada pelo Migalhas, disponível em: 97818456B6DAFF_prisaoerikatjrjtiopaulobanco.pdf (migalhas.com.br)

2 Cf. sobre o tema: BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. – 10ª edição, rev., atual. e ampl. –. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. p. 1212-1216; FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. – 5ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 329; NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. – 18ª ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 827-829; ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal estratégico: de acordo com a teoria dos jogos e MCDA-C – 1ª ed. – Florianópolis [SC]: Emais, 2021. p. 590.

3 O Min. Gilmar Mendes, ao conceder medida liminar no HC 189.537/RJ, decidiu que: “É preciso reafirmar o entendimento de que a prisão cautelar e mérito da ação penal demandam fundamentos fáticos e espaços axiológicos de apreciação distintos. Tanto o substrato empírico (plano descritivo) quanto a valoração desse substrato (plano normativo) não devem se embaralhar no âmbito desses diferentes momentos processuais. A carga de desvalor que o ilícito-típico representa para o mérito não deve contaminar o juízo cautelar”.

4 “Essa tarefa é sobremaneira dificultada, sem dúvida, pelo emprego de expressões muito abertas pelo legislador, vg., ordem pública e ordem econômica, cujo conteúdo fortemente emotivo pode propiciar a ruptura dos padrões de legalidade e certeza jurídica, fundamentais na matéria examinada, autorizando os juízes a formular definições puramente persuasivas, que encobrem juízos de valor”. (GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. – 2ª ed. rev. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 188.

Matheus Alves Capra
Advogado, pós-graduando em Direito Processual Penal pela Escola Paulista da Magistratura, associado ao IBCCRIM e à AASP.

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