Migalhas de Peso

A herança no mundo digital

A crescente digitalização traz bens virtuais valiosos, como criptoativos e milhas aéreas. Com o falecimento do titular, surge a questão: o que acontece com esses ativos?

2/5/2024

Introdução

A população mundial encontra-se cada vez mais inserida em um contexto tecnológico, no qual muitas das operações e atividades anteriormente realizadas exclusivamente de forma presencial, agora são realizadas de forma online.

Seguindo o embalo dessas mudanças e reformas, foram criados diversos criptoativos (moedas virtuais), sendo a mais famosa delas o Bitcoin, que já é utilizado em diversas operações empresariais, cabendo destacar que, em 2021, o governo de El Salvador aprovou uma lei tornando a referida moeda como oficial do país, junto ao dólar norte-americano, e em abril de 2022, a República Centro-Africana, no mesmo sentido, também adotou o Bitcoin como moeda legal ao lado do franco CFA.

Além dos criptoativos, há outros diversos bens digitais que possuem um valor financeiro. Como exemplo, cita-se as milhas aéreas, ebooks (livros digitais) e redes sociais dos influenciadores digitais, com milhões de seguidores, por meio da qual é possível faturar uma alta quantia diária com publicidades.

Outro interessante exemplo trata-se do jogo Counter-Strike: Global Offensive, no qual um visual especial da metralhadora AK-47 – apenas contextualizando, o referido jogo é de tiro – foi vendido por U$400.000,001.

Todavia, não é sempre que esses bens digitais possuem um valor econômico. As contas de redes sociais de pessoas não famosas, com poucos seguidores, em que pese conter diversas fotografias e recordações – que, com certeza, possuem um valor ao seu titular – não possuem valor econômico.

Nesse cenário, uma pergunta que atualmente é muito feita: o que acontece com estes bens digitais quando há o falecimento de seu titular?

Cabe ao Direito acompanhar essas evoluções e tentar dar uma resposta aos problemas que vão surgindo.

Direito sucessório

O Direito sucessório trata-se de um complexo de princípios e regras jurídicas que disciplinam a transferência do patrimônio de uma pessoa natural, sejam ativos ou passivos, para depois da morte, em virtude da lei ou testamento.

Oliveira e Amorim (2018, p. 37), definem que “Sucessão é o ato ou o efeito de suceder. Tem o sentido de substituição de pessoas ou coisas, transmissão de direitos, encargos ou bens, numa relação jurídica de continuidade”.

Dentro da sucessão, há a figura da sucessão legítima, que se refere à transferência causa mortis concedida às pessoas designadas na legislação como herdeiros necessários do autor da herança, identificados por meio da denominada ordem de vocação hereditária ou por regras específicas de indicação de sucessores. São esses indivíduos que serão convocados para adquirir a herança, seja na ausência uns dos outros ou em situações de concorrência entre eles.

O Código Civil Brasileiro adota como critério os laços familiares, consanguíneos (filiação biológica) ou cíveis (adoção), e o vínculo decorrente do casamento ou da união estável.

A sucessão legítima pode compreender a totalidade do acervo hereditário, ou restringir à parte não compreendida pelo testamento. Pode a pessoa natural, durante a sua vida, apenas dispor da parte disponível de seus bens, correspondentes a 50% do total de seu patrimônio (percentual este que será auferido apenas quando de sua morte). Nesse interim, Maria Berenice Dias ensina (2021, p. 153-154):

O titular do patrimônio não pode dispor livremente de todos os seus bens, nem durante sua vida, nem para depois de sua morte. Só pode doar o que pode dispor por testamento (CC 549). Assim, ainda que seja plenamente capaz, não é absoluta a liberdade de quem tem herdeiros necessários. A lei escolhe determinadas pessoas que necessariamente irão receber parte do patrimônio: descentes, ascendentes e cônjuge. São os chamados herdeiros necessários. A eles é destinada a metade da herança. A sucessão legítima impõe a transferência de metade do patrimônio a quem a lei elege como herdeiro. Somente a outra metade é disponível, tendo o seu titular a liberdade de destiná-la a seu bel-prazer. Pode doar enquanto for vivo ou, por meio de testamento, pode deixar a quem lhe aprouver toda a metade disponível, uma fração dela, ou bens determinados (CC 1.786). Os herdeiros testamentários recebem uma cota-parte da herança e os legatários, bens identificados.

A figura do testamento também se trata de uma última manifestação de vontade de uma pessoa, na qual o falecido dispõe, para depois da morte, em todo ou uma parte de seus bens para terceiros.

Há diversos requisitos e formalidades legais para a elaboração de um testamento, que devem ser estritamente respeitados para ser considerado válido, sob pena de nulidade.

O Código Civil Brasileiro prevê três formas ordinárias de testamento:

  1. Público: deve ser escrito por tabelião ou por seu substituto legal em seu livro de notas, de acordo com as declarações do testador. Após lavrado o instrumento, esse deve ser lido em voz alta pelo tabelião ao testador e duas testemunhas, a um só tempo; ou pelo testador, se o quiser, na presença destas e do oficial e assinado por todos;
  2. Cerrado: deve ser escrito pelo testador, ou por outra pessoa, a seu rogo, e por aquele assinado, deverá ser validado pelo tabelião ou seu substituto legal, devendo o testador o entregar ao tabelião em presença de duas testemunhas, declarar que aquele é o seu testamento e quer que seja aprovado e o tabelião deverá lavrar, desde logo, o auto de aprovação, na presença das testemunhas, e o ler, em seguida, ao testador e testemunhas. Após isso, o auto de aprovação deve ser assinado por todos.
  3. Particular: pode ser escrito de próprio punho ou mediante processo mecânico, sendo que, se escrito de próprio punho, deve ser lido e assinado por quem o escreveu, na presença de pelo menos três testemunhas, que o devem subscrever. Se elaborado de forma mecânica, não pode conter rasuras ou espaços em branco, devendo ser assinado pelo testador, depois de o ter lido na presença de pelo menos três testemunhas, que o subscreverão. Na morte do testador, publicar-se-á em juízo o testamento, com citação dos herdeiros legítimos.

Frisa-se que o STJ possui o entendimento que o autor da herança tem o direito de organizar e estruturar a sucessão, de forma que a parte indisponível do patrimônio, que cabe aos herdeiros necessários, pode constar em testamento, desde que isso não implique privação ou redução da parcela a eles destinada por lei, que, nos termos do art. 1.789 do Código Civil, deve ser ao menos de metade do patrimônio.

Desse modo, percebe-se que a sucessão não se trata somente de uma transferência da propriedade, mas também uma continuidade das relações humanas, que sobrevivem e seguem através do direito de herdeiros.

Herança digital

Feitas tais considerações sobre o direito sucessório no capítulo anterior, percebe-se que os bens digitais, por serem parte do patrimônio de uma pessoa natural, também abrangem acervo patrimonial a ser partilhado e devem ser transferidos para seus herdeiros no momento da sucessão.

Conforme bem pontuado pelo professor e doutrinador, Bruno Zampier na obra “Bens Digitais” (2017, p. 124):

“A solução mais acertada, em respeito aos direitos fundamentais e aos cânones do direito sucessório, é permitir que haja transmissão de seu patrimônio digital aos herdeiros, seja pela via testamentária ou legítima. Para tanto, há que se ter o cuidado de arrolar tais bens nos inventários que forem abertos, permitindo-se que o Estado chancele tal transmissibilidade”.

No entanto, autorizar a transferência desses bens digitais quando possuem informações pessoais, como as redes sociais, incluindo aspectos da vida privada de seu titular, pode implicar na violação dos direitos da personalidade. Esses direitos são protegidos constitucionalmente, tanto para o titular desses bens quanto para terceiros.

Para suprir essa lacuna legislativa existente não apenas no Brasil, mas, também, no exterior, as plataformas digitais têm inserido, em seus termos de uso, o caminho a ser trilhado na hipótese de falecimento de seus usuários, oferecendo a possibilidade de tais usuários, previamente, determinar o destino de sua conta em caso de morte.2

Entretanto, tais regulamentos são passíveis de questionamento e têm alcance limitado. Como exemplo, o programa de milhas aéreas da Gol Linhas Aéreas e Smiles, veda, expressamente, em seu termo de uso, a sucessão por herança. Todavia, essa cláusula é incompatível com o CDC, por implicar a extinção de um ativo digital de caráter patrimonial, violando, portanto, o princípio da boa-fé objetiva3.

Para além desses regulamentos, conforme lição de Natália Chaves:

“o próprio titular dos bens digitais sobre os quais pairam a dúvida da transmissibilidade poderá deixar, em vida, a sua manifestação de vontade acerca da destinação de tais bens, hipótese em que sua vontade deverá ser respeitada, observados os parâmetros legais. Uma vez fixados os contornos dos bens digitais passíveis de transmissão causa mortis, constituindo a chamada herança digital, ainda há desafios adicionais, ligados à avaliação desses bens e à consequente tributação em caso de morte.”

Diante da ausência de legislação específica e diversas peculiaridades que envolvem o acervo hereditário digital, é importante a análise caso a caso, e, principalmente, se houver declaração de vontade, ainda em vida, do titular do bem digital.

Legislação internacional e comparativa

Como dito, a questão da herança digital não é exclusiva de um único país, mas sim um desafio global que requer abordagens legais abrangentes e adaptáveis. Em todo o mundo, legisladores e especialistas jurídicos estão buscando maneiras de lidar com a transferência de bens digitais após o falecimento do titular.

Em países como os Estados Unidos e alguns países europeus, como o Reino Unido e a França, foram propostas e, em alguns casos, implementadas legislações específicas para abordar a herança digital. Essas leis visam definir claramente os direitos dos herdeiros em relação aos bens digitais e estabelecer procedimentos para sua transferência e gestão adequadas4.

Por exemplo, nos Estados Unidos, alguns estados promulgaram leis que permitem que os usuários designem um "executor digital" em seus testamentos para lidar com suas contas online após a morte. Esses executores têm autoridade legal para acessar e gerenciar as contas digitais do falecido de acordo com suas instruções.

No entanto, apesar dos avanços em alguns países, ainda há uma falta de harmonização e consistência nas leis de herança digital em todo o mundo. Isso pode criar desafios para indivíduos e famílias com bens digitais em jurisdições diferentes.

Além disso, em muitos países em desenvolvimento e emergentes, a legislação específica sobre herança digital ainda está em estágios iniciais de desenvolvimento. Isso pode resultar em incerteza jurídica e dificuldades práticas para os herdeiros ao lidar com bens digitais em casos de sucessão.

Diante disso, é essencial que os legisladores continuem a monitorar e responder às mudanças no ambiente digital, desenvolvendo leis e regulamentos atualizados e adaptáveis que protejam os direitos dos indivíduos e garantam uma transição suave e justa dos bens digitais após o falecimento do titular. Uma cooperação internacional e compartilhamento de melhores práticas também são fundamentais para enfrentar os desafios globais apresentados pela herança digital.

Conclusão

Por tudo aqui exposto, todo bem digital de caráter exclusivamente patrimonial deve ser transferido para os sucessores após o falecimento de seu titular. No caso dos bens digitais não patrimoniais, esses não devem ser transferidos para os seus familiares no momento da morte, com exceção de expressa manifestação do titular ainda em vida.

Todavia, excepcionalmente, deve ser possível o acesso a estes bens, quando houver uma justa causa, que deve ser avaliado individualmente pelo Poder Judiciário, para tentar, da melhor forma possível, conciliar os interesses em jogo5.

Além das questões legais e procedimentais envolvendo a herança digital, é importante considerar os aspectos éticos e humanos relacionados aos bens digitais. Como mencionado, os bens digitais podem conter não apenas valor patrimonial, mas também memórias, relacionamentos e identidade pessoal do falecido. Portanto, ao lidar com a transferência e gestão desses ativos, é fundamental garantir que os interesses e desejos do titular sejam respeitados. A possibilidade de acesso a bens digitais não patrimoniais, sob circunstâncias excepcionais e mediante avaliação judicial, visa equilibrar os direitos dos herdeiros com o respeito à privacidade e dignidade do falecido, através do acesso sensível, reconhecendo não apenas seu valor financeiro, mas também seu significado emocional e pessoal para aqueles que deixamos para trás.

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1 GUGELMIAN, Felipe. Skin de Counter-Strike: Global Offensive é vendida por US$ 400 mil. Adrenaline, 2023. Disponível em:  https://www.adrenaline.com.br/games/skin-de-counter-strike-global-offensive-e-vendida-por-us-400-mil/. Acesso em: 15 jan. 2024

2 CHAVES, Natália. Herança digital no Brasil: desafios jurídicos e perspectivas. In: CANSIAN, Adriana; MIELE, Aluísio; CINTRA, Caio; COLOMBO, Cristiano; CABELLA, Daniela; ARAÚJO, Débora; MONTE-SERRAT, DIONÉIA; PIMENTA, Eduardo; CANO, Flávia; JALLAIS, Gabriel; LIMA, Gabriel; FERRARI, Giovanni; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz (org.); CAMARGO, Júlia (org.); ROCHA, Lucas; SOUZA, Maique; MATTIUZZO, Marcela; MILAGRES, Marcelo; CHAVES, Natália; LIMA, Pedro Henrique; QUINELATO, Pietra; QUEIROZ, Renata; CALAZA, Tales; HAYASHI, Victor; MARQUES, Vivian; ENGELMANN, Wilson; CARVALHO, CARAVALHO, Anne Isabelle; NOGUEIRA, Michele (org.); PARENTONI, Leonardo (org.). DIREITO, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO vol. 5 Internet das Coisas (IoT). 1. ed. Centro de Pesquisa em Direito, Tecnologia e Inovação – Centro DTIBR. 2023. p. 337

3 ZAMPIER, Bruno. Bens Digitais – cybercultura, redes sociais, e-mails, músicas, livros, milhas aéreas, moedas virtuais. 1. ed. Indaiatuba. Editora Foco Jurídico. 2017. p.124-125.

4 CHAVES, Natália. Herança digital no Brasil: desafios jurídicos e perspectivas. In: CANSIAN, Adriana; MIELE, Aluísio; CINTRA, Caio; COLOMBO, Cristiano; CABELLA, Daniela; ARAÚJO, Débora; MONTE-SERRAT, DIONÉIA; PIMENTA, Eduardo; CANO, Flávia; JALLAIS, Gabriel; LIMA, Gabriel; FERRARI, Giovanni; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz (org.); CAMARGO, Júlia (org.); ROCHA, Lucas; SOUZA, Maique; MATTIUZZO, Marcela; MILAGRES, Marcelo; CHAVES, Natália; LIMA, Pedro Henrique; QUINELATO, Pietra; QUEIROZ, Renata; CALAZA, Tales; HAYASHI, Victor; MARQUES, Vivian; ENGELMANN, Wilson; CARVALHO, CARAVALHO, Anne Isabelle; NOGUEIRA, Michele (org.); PARENTONI, Leonardo (org.). DIREITO, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO vol. 5 Internet das Coisas (IoT). 1. ed. Centro de Pesquisa em Direito, Tecnologia e Inovação – Centro DTIBR. 2023.

5 ZAMPIER, Bruno. Bens Digitais – cybercultura, redes sociais, e-mails, músicas, livros, milhas aéreas, moedas virtuais. 1. ed. Indaiatuba. Editora Foco Jurídico. 2017. p.128

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OLIVEIRA, Euclides; Amorim, Sebastião. Inventário e Partilha: teoria e prática. 25. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. 7. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Editora JusPodivm, 2021.

CANSIAN, Adriana; MIELE, Aluísio; CINTRA, Caio; COLOMBO, Cristiano; CABELLA, Daniela; ARAÚJO, Débora; MONTE-SERRAT, DIONÉIA; PIMENTA, Eduardo; CANO, Flávia; JALLAIS, Gabriel; LIMA, Gabriel; FERRARI, Giovanni; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz (org.); CAMARGO, Júlia (org.); ROCHA, Lucas; SOUZA, Maique; MATTIUZZO, Marcela; MILAGRES, Marcelo; CHAVES, Natália; LIMA, Pedro Henrique; QUINELATO, Pietra; QUEIROZ, Renata; CALAZA, Tales; HAYASHI, Victor; MARQUES, Vivian; ENGELMANN, Wilson; CARVALHO, CARAVALHO, Anne Isabelle; NOGUEIRA, Michele (org.); PARENTONI, Leonardo (org.). DIREITO, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO vol. 5 Internet das Coisas (IoT). 1. ed. Belo Horizonte. Centro de Pesquisa em Direito, Tecnologia e Inovação – Centro DTIBR. 2023.

ZAMPIER, Bruno. Bens Digitais – cybercultura, redes sociais, e-mails, músicas, livros, milhas aéreas, moedas virtuais. 1. ed. Indaiatuba. Editora Foco Jurídico. 2017.

Henrique Bouças Paes
Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG), cursando LL.M. em Direito Empresarial no IBMEC, inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil Seção de Minas Gerais, advogado do escritório Melo e Barbosa, atua na advocacia contenciosa e consultiva nas áreas do Direito Empresarial e Cível, membro do Conselho Estadual de Direito Comercial da FEDERAMINAS.

Bárbara Rita Escapin
Graduada em Direito pelas Faculdades Integradas Rio Branco - Fundação de Rotarianos de São Paulo. Formação em Educação Executiva/Compliance pela Fundação Getúlio Vargas (2022) e Pós-graduanda em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas, inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil Seção São Paulo (OAB/SP), advogada do escritório Theon de Moraes, Toledo Piza & Associados, atua na advocacia consultiva nas áreas do Direito Empresarial e Cível. Autora de artigos.

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