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De frye para fog: A evolução no tratamento da prova científica

O ensaio discute a condenação de Roman Sterlingov por lavagem de dinheiro, destacando o uso de prova científica, como o Reactor da ChainAnalysis.

2/5/2024

O presente ensaio apresenta breves reflexões sobre a decisão recentemente proferida pela US District Court, District of Columbia, Criminal Action 21-399 (RDM), também localizada como United States v. Sterlingov.

O caso em que teve a condenação de Roman Sterlingov, como responsável pela prática de crimes de lavagem de dinheiro, operação de envio de dinheiro sem licença competente pela operação de um bitcoin mixer como Bitcoin Fog, teve especial importância pelo uso de prova científica, com revisitação do clássico caso Daubert da Suprema Corte Norte-Americana, tendo sido afirmada, na oportunidade, a fiabilidade da ferramenta Reactor, da empresa ChainAnalysis para seu uso como meio de produção de prova perante o Judiciário.

Essas notas trazem uma comparação com o tratamento dado pelo Judiciário norte-americano, nomeadamente, pelos clássicos Frye e Daubert, esse último nomeadamente utilizado na como paradigma para a validação da prova científica usada nesse caso.

Como premissa e explicação inicial, o julgado traz que “embora as transações de bitcoin sejam anônimas no sentido de que cada transação é identificada apenas por longos conjuntos de números e letras que representam o(s) endereço(s) de envio, o(s) endereço(s) de recebimento e os ID(s) da transação, elas são, ao mesmo tempo, tempo, públicas no sentido de que o valor, o momento, o(s) endereço(s) de envio e o(s) endereço(s) de recebimento de cada transação são registrados no blockchain, que é um livro-razão público descentralizado, imutável e disponível para qualquer pessoa com interesse em procurar” (tradução livre).

Como resultado, as transações de bitcoin são, de uma maneira peculiar, anônimas e públicas. Afirma-se, ainda, que “o livro-razão público permite que as autoridades e outros não apenas rastreiem o movimento da bitcoin através de transações específicas, mas também agrupem endereços de bitcoin de uma maneira que forneça uma janela para atividades que de outra forma seriam anônimas”.

“O meio mais amplamente aceito de clustering baseia-se em um conceito conhecido como “co-gasto” (co-spend), que ocorre quando o usuário no lado remetente da transação utiliza bitcoin mantido em vários endereços. É possível associar esses múltiplos endereços de envio a um único remetente, uma vez que o remetente precisaria da “chave privada”, semelhante a uma senha, para cada um dos endereços de envio para efetuar a transferência. Quando o processo de identificação de transações de co-gasto é repetido para múltiplas transações, é possível construir um cluster cada vez maior associado ao usuário ou entidade em questão.

Pelo número de transações registradas no blockchain, o julgado ainda destaca o uso pelos investigadores de softwares, como, no caso, o Chainalysis Reactor, para agrupar transações de bitcoin usando co-gasto. Muito deste trabalho poderia ser feito manualmente com tempo suficiente e, conforme explicado abaixo, é possível corroborar (ou contestar) os resultados gerados pelo software para clusters específicos com os dados públicos da blockchain, um bloco de papel, um lápis, e horas de trabalho.

O reactor também usa outras heurísticas (regras gerais de tomada de decisão) baseadas em "identificadores exclusivos que a Chainalysis associou a serviços específicos que o fizeram no passado ou que atualmente transacionam no blockchain” (tradução livre).

Durante a instrução foi questionado pela defesa o uso de testemunhos de peritos (expert witnesses), apontando que a confiabilidade da ferramenta Reactor não passaria pelo teste de Daubert, precedente essencial no tema da prova científica.

Pode-se dizer que o tema da prova científica tem ao menos um século de dedicação da Suprema Corte norte-americana, quando se vê a atenção dispensada ao caso Frye (1923). Na oportunidade, o debate não se deu pela legalidade do uso de prova, mas sobre a aptidão probatória em si, relativamente a prova técnico-cientifica.

No caso Frye [Frye v. United States, 293 F. 1013 (D.C. Cir. 1923)], na década de 20 do século passado, a Suprema Corte Americana rejeitou como meio de prova o resultado da aferição de aparelho que grosseiramente poderia ser tomado como um precursor do polígrafo, ante a falta de fiabilidade dos resultados. A materialização do resultado seria por das chamadas expert witnesses, que, no julgamento em questão, tiveram a consideração de que a opinião baseada em uma técnica científica exigiria aceitação geral e ser tomada como confiável em relevante dimensão da comunidade científica.

No caso Daubert, já na década de 90, o entendimento foi atualizado, tanto por força das Federal Rules of Evidence, particularmente, a rule 702, relativa às expert witnesses, no que toca aos parâmetros de fiabilidade da prova compreendida como cientifica.

Por esse julgado, as premissas de aceitabilidade da prova pericial, com a tarefa de o julgador agir como gatekeeper da prova, ou seja, com o poder de admitir ou não as provas, são extraídas da existência de publicação aceita pela comunidade cientifica, sujeita a revisão por pares (peer review), além de ter de se considerar a taxa de erro do método científico adotado e a aceitação geral da técnica.

Nesse caso clássico, a alegação dos pais de filhos menores foi a de que graves defeitos congênitos das crianças foram causados pela ingestão pré-natal de um dado medicamento pelas mães. A Corte Distrital concedeu julgamento sumário em favor da parte demandada com base na conclusão da declaração de um especialista bem credenciado, após a revisão da extensa publicação literatura científica sobre o assunto, que o uso materno da medicação demonstrou ser um risco fator para defeitos congênitos humanos.

A despeito de os demandantes terem respondido com o testemunho de outros oito especialistas bem credenciados, que basearam sua conclusão de que o medicamento pode causar defeitos congênitos em estudos em animais, análises de estrutura química e a “reanálise” não publicada de artigos publicados anteriormente estudos estatísticos humanos, o tribunal determinou que esta evidência não atendia aos “requisitos gerais” aplicáveis à aceitação” padrão para admissão como “expert testimony”.

Afirmou-se ainda que não o caso Frye, mas a rule 702 é que estabelece os parâmetros de aceitação como uma prova científica. De acordo com a referida regra: “Uma testemunha qualificada como perito por conhecimento, habilidade, experiência, treinamento ou educação pode testemunhar na forma de uma opinião ou de outra forma, se o proponente demonstrar ao tribunal que é mais provável que: (a) os conhecimentos científicos, técnicos ou outros conhecimentos especializados do perito ajudarão o julgador a compreender as provas ou a determinar um facto em questão; (b) o depoimento se baseia em fatos ou dados suficientes; (c) o testemunho é produto de princípios e métodos confiáveis; e  (d) a opinião do perito reflete uma aplicação confiável dos princípios e métodos aos fatos do caso."

No caso analisado, entendeu-se que as premissas de Daubert foram testadas e compreendidas como atendidas. Afastou-se o argumento de que Reactor seria “junk science,” não submetida à revisão de pares ou sem conhecimento da taxa de erro. A corte entendeu que embora a defesa esteja correta ao afirmar que nem todas as heurísticas usadas no caso tenho sido submetidas à “peer review” e que mesmo que a Chainalysis não colete e registre taxas de erro em um local central, os elementos concretos permitem a alegação de que “o software é altamente confiável – e, no mínimo, conservador – no agrupamento (e depois na atribuição) de endereços Bitcoin”, compreendendo-se que o standard “mais provável do que não” que as provas e o testemunho em questão ajudem o júri a compreender as provas, que se baseiem em factos ou dados suficientes e em princípios e métodos fiáveis, e que as expert witnesses aplicaram de forma confiável esses princípios e métodos (tradução livre).

Ao longo do enfrentamento das alegações da defesa, foram analisadas as diferentes heurísticas das ferramentas, tendo a Corte apontado que Scholl e Bisbee (as expert witnesses em questão) “usaram o software para avaliar a magnitude geral das transações envolvendo Bitcoin Fog e vários sites darknet, como AlphaBay, Evolution, Agora e Pandora. Isto não quer dizer que Daubert não tenha lugar na análise do Tribunal sobre esse agrupamento; certamente acontece. Mas a questão de saber se o software agrupa de forma confiável centenas de milhares de endereços para avaliar a magnitude da atividade ilícita é muito diferente da questão de saber se identificou corretamente um único endereço (ou um punhado de endereços). Pelo menos nesse contexto, alguns erros (se houver) entre centenas de milhares de endereços são provavelmente irrelevantes” (tradução livre).

Mais do que isso, a Corte fez o teste de Daubert, resumidamente: entendeu-se que as ferramentas de análise de blockchain podem ser testadas; no segundo teste, a ferramenta em si não foi objeto de revisão por pares pelo limitado escopo, o que é um fato de mitigação da exigência, nomeadamente, como no caso, quando a heurística por ela adotada é dotada de larga aprovação no meio acadêmico.

Com relação ao terceiro fator de Daubert, conhecimento do método ou potencial taca de erro, a despeito da falta de compilação, a corte se baseou no persuasivo depoimento de Scholl (uma das expert witness) para reconhecer a falta de falsos positivos.

No que diz respeito ao quarto fator, a aceitação da teoria ou técnica em relevante comunidade científica foi pontuado que o rastreio e análise do Blockchain têm sido amplamente utilizados pelas autoridades policiais nos Estados Unidos, pelas autoridades policiais em todo o mundo, pelo setor privado, pelas instituições financeiras, pelas empresas de consultoria, pelas empresas de resposta a incidentes, pelos reguladores, sendo tomada como ferramenta de referência standard para muitas agências de law enforcement.

Tem-se, assim que a ferramenta reactor passou por esse teste, sem ressalvar a possibilidade de contestação e confronto no júri, a prova foi admitida como relevante e válida. Pontos importantes que merecem alguma reflexão adicional são os de que o tribunal endereçou o tema com grande dialeticidade em relação aos argumentos defensivos e que, mesmo se Daubert ou suas premissas sejam fluídas ou questionáveis, é digna de elogio a analítica fundamentação, a ponto de permitir a sua controlabilidade.

Especificamente com relação ao caso e à prova produzida, diferentemente de outros casos verificados, entende-se que o caráter estático das informações prévias do blockchain permitiria à defesa trazer questionamentos específicos a respeito das transações em debate, permitiriam a indicação de erros. Em outras palavras, o afastamento das premissas técnicas é possível, mas o questionamento estrito do método talvez tivesse melhores condições de ser desafiado (se há espaço para isso), através da análise das transações em si. É de ser lembrado que, como bem anotado desde o início da decisão, que o trabalho feito acelera e busca a retirada de erros em atividades de rastreio que poderiam ser feitas com “papel e caneta” ou ainda com as tradicionais planilhas e o uso manual do “control + find”.

O caso está sob recurso, mas não deixa de sinalizar uma grande contribuição na consolidação do tratamento da prova científica, com uma relevante aferição em concreto das premissas fixadas em Daubert que ultrapassaram Frye e se projetam no presente.

Marcelo Ribeiro de Oliveira
Sócio da prática de Penal Empresarial do Lefosse. Pós-doutor pela Universidade de Salamanca. Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa. Mestre em Direito e Estado e Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília.

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