No regime colonial português, a praia era bem de uso comum do povo, enquadrada juridicamente como bens da Coroa. Tratava-se de direito real com origem na necessidade de serventia e uso das pessoas associada ao controle de acesso por mar. Esse típico dever de afetação se converte paulatinamente em poder de exploração do potencial econômico imobiliário, o que termina por criar o conceito legal de terreno de marinha e transformá-lo substancialmente em bem dominical, como hoje é enquadrado.
A lei 7.661/88 conceitua praia como bem de uso comum do povo, o que esvazia a natureza dominical dos terrenos de marinha, resgatando a função social e ambiental das praias. E mais do que isso: impõe a perda da finalidade do terreno de marinha e acrescidos, enquanto regime dominical.
A Coroa Portuguesa classificava os direitos reais em regalias grandes (poder de legislar, Justiça, guerra, tributos, domínio eminente, etc) e regalias pequenas (os bens patrimoniais de domínio legal ou não). A praia era enquadrada como regalia menor, assim como os portos do mar, ilhas adjacentes, os rios perenes, lezírias, os álveos, estradas, pescarias.
A diferença principal entre regalias grandes (direitos majestáticos) e as regalias pequenas era a possibilidade de transferência a particulares, a partir de título régio.
O Rei sempre explorou o potencial econômico dos bens que estavam no seu patrimônio por direito real. As marinhas de sal consistiam em áreas mais adequadas à obtenção do sal com ajuda da variação das marés e era concedida mediante taxa específica. As lezírias, pauís, mouchões e insuas que são ilhas, acrescidos, pântanos ou lamaçais criados nos rios também eram arrendadas. A praia também era concedida em alguns casos. Em 1530, carta de aforamento foi passada de “três esteiros que estão no salgado, termo da vila Nova de portimão”1, em Portugal. Em outro documento de 1514, consta o aforamento de “uns penedos no salgado detrás das casas de mancebia”, na vila de Lago, Algarve2.
A palavra salgado era mais usual até o século XVIII para designar terrenos na zona de influência da praia.
O transplante da ordem jurídica de Portugal para o Brasil foi induzido no seu início por dois fatos legais: a gratuidade do regime sesmarial, o que atraiu colonos; e a transferência de alguns direitos reais especiais aos donatários. O direito real de explorar ou conceder marinhas de sal, por exemplo, passou a integrar o poder do donatário. As ilhas até certa distância da costa também foram transferidas ao poder do donatário para doação em regime de sesmaria.
Nos primeiros séculos do Brasil colonial, várias sesmarias (doações) de áreas no salgado (praia) foram outorgadas em regime gratuito. Alguns exemplos!
No ano de 1609, foi concedido a André Lopes Ulhoa “todos os mangues, lamarões, esteiros e ilhotas que confrontam com os engenhos Santiago e São Tomé”, no rio Paraguassu, na Baía de Todos os Santos.
No ano de 1612, o cais da igreja da Conceição da Praia, na cidade do Salvador, foi construído integralmente no regime de concessão de sesmaria no “salgado”.
No ano de 1633, o Mosteiro de São Francisco, em Sergipe do Conde, atual município de São Francisco do Conde, no Estado da Bahia, requereu ao Governador e obteve por sesmaria “o salgado da dita terra ao redor donde está o dito Mosteiro”, com uma condição: “não impedirão os caminhos e serventias do povo a ele necessários”3.
No ano de 1620, Anna dos Reis, na cidade do Salvador, requereu ao Governador e obteve a confirmação de terreno que tinha com testada para o mar “como é uso e costume fazerem-se aquela paragem, os que tem semelhantes propriedades, estendendo-se pelas suas fronteiras para o mar, quanto querem, contanto que no fim da obra, deixem cais e trincheira e que se possa guarnecer com infantaria quando a necessidade o pedir...”4.
Esse método de conceder sesmaria no “salgado” para a construção de cais se tornou meio normal de expansão dos aterros em áreas portuárias nos primeiros séculos.
Esse modelo de financiamento da construção, ainda foi empregado na cidade do Salvador, no ano de 1705, para a expansão do cais do Pilar, o que atendia, inclusive, a planejamento militar, e sempre atento à construção de cais na frente da casa para serventia do povo. Várias escrituras provam a concessão gratuita de áreas no salgado atrelado a certo benefício coletivo.
No início do século XVIII, a disputa pelo uso do salgado adquire certo dinamismo, talvez associado ao crescimento urbano. As câmaras começam a tentar obter rendas com o aforamento das áreas, algo que está documentado em Salvador, Vitória e Rio de Janeiro.
No ano de 1722, o Governador escreveu para os oficiais da Câmara da Vila de Vitório da Capitania do Espírito Santo chamando a atenção que sem mercê especial de Sua Majestade ninguém poderia tomar posse das “praias e salgado” porque eram destinados ao “uso e servidão do povo”5.
No Rio de Janeiro, essa tendência de expansão para o mar com a liderança da câmara adquire dinâmica conflituosa. Em 1710, a Ordem Régia de 21 de outubro manda notificar e demolir as casas que tinham sido aforadas na marinha. Novas ordens régias são editadas na mesma direção nos anos de 1725, 1736 e 1732, em linhas gerais reservando a praia para uso do povo e serviço público.
Parece claro que a intervenção do rei no Rio de Janeiro tem relação direta com a expansão desordenada na ocupação e apropriação da praia com o patrocínio da Câmara. Nesse mesmo período, estava sendo construída em frente, na ilha das Cobras, a fortaleza que deu origem ao atual conjunto do Arsenal da Marinha.
Em 7 de dezembro de 1725, o Governador proibiu o cultivo das terras que estavam fora das muralhas da Fortaleza e assim conclui: “o que só se permite 15 braças fora da estacada coberta, fundando-se essa ordem para dificultar aos inimigos o poder-se cobrir com facilidade, achando a terra movida e porque a ilha das Cobras se acha reduzida a fortaleza...”.
Parece razoável supor que a inspiração para a adoção da regra de 15 braças aplicável ao terreno de marinha foi militar a partir do campo livre necessário em torno das fortalezas, o que assegurava melhor controle visual. Essa medida de 15 braças foi fixada em ato do ano de 1818, com a seguinte explicação: “e que da linha de água para dentro sempre são reservadas 15 braças pela borda do mar para serviço público...”.
Atos jurídicos seguintes fixaram a preamar (maré alta) como linha de limite entre o mar e a praia, o que está compatível com a tradição do Direito Romano que estabelecia a praia com limite inicial na linha de alcance das maiores ondas do mar.
O Digesto define o significado da palavra “litoral” como o “espaço até onde chegam as maiores ondas do mar”6. Essa definição está repetida na Instituta7 com pequena variação: “mas é costa do mar até onde chega as maiores ondas do inverno”.
A partir do século XIX, o terreno de marinha se consolida como bens patrimoniais da Coroa, do Império e da União (República), surgindo ampla regulamentação, o que coincide com o crescimento urbano.
Nesse contexto, sempre existiu certa confusão ou mistura no regime jurídico: a) ora, o que existe é dever de zelar pela afetação, o que configura uso comum do povo; b) ora, o que existe é poder de usar e dispor da coisa, o que é próprio da propriedade.
Em certa medida, a função patrimonial termina por dominar a função social e ambiental (uso comum do povo) tendo como gancho ou oportunidade o aforamento ou ocupação das áreas que não eram praia no sentido físico. O critério militar que inspirou as 15 braças de largura do terreno de marinha viabilizou ou incentivou a exploração patrimonial da praia.
Essa situação ambígua que mistura afetação comum de bens com propriedade é interrompida com o conceito legal de praia, estabelecido na lei 7.661/88.
Essa lei define que praias “são bens públicos de uso comum do povo” e seu limite é o início da vegetação natural. O terreno de marinha alcançando parte significativa da praia, na sua maior frequência estando inteiramente contido na praia, perde a sua função de afetação e mais do que isso: a praia deixa de ser bem dominical, algo que, de certa forma, nunca fez sentido, salvo pela mistura imprópria entre direitos reais e patrimônio real e bens de uso comum do povo.
Nesse ponto, surge a importante questão, pouco valorizada ou destacada, do conflito entre os conceitos legais de “praia e “terreno de marinha”.
No plano lógico, pode-se afirmar que o terreno de marinha contém a praia ou, ao contrário, a praia contém o terreno de marinha. A alternativa correta depende do exame do lugar. Essa situação está representada na Figura 1.
Figura 1. Relação física entre praia e terreno de marinha: possibilidades
Aparentemente, a alternativa 1 é dominante nas áreas com elevação abrupta do solo, o que equivale às costas marítimas elevadas com ondas na maré alta que arrebentam diretamente na escarpa. A alternativa 2 é dominante em faixas marítimas com praias que acumulam areia.
Esse conflito de normas exige solução. A praia é bem de uso comum do povo e afetado à livre circulação. Isso emerge e se impõe como realidade. Como tal, não pode ser terreno de marinha apropriável e submetido a regime dominical. A solução passa pela proteção ao uso comum da praia até o limite da vegetação, tal como definido com muita precisão no conceito legal utilizando a noção de ecossistemas.
Terreno de marinha e acrescidos representam 75,54% dos cadastros imobiliários do Patrimônio da União e ocupam área correspondente à 1,10% do total do domínio da União (Tabela 1). O ônus desse tipo de domínio para a Sociedade é muito grande. Os números dispensam comentários.
Tabela 1. Terreno de marinha e acrescidos. Participações no domínio da União
Fonte: https://clusterqap2.economia.gov.br/extensions/SPU-Transparencia_Ativa/SPU-Transparencia_Ativa.html
Em conclusão, a existência do terreno de marinha e seus acrescidos perderam a finalidade. O Congresso Nacional poderia prestar grande serviço à Sociedade extinguindo esse tipo de domínio e determinando a eliminação dos cadastros com a regulamentação cabível das situações que interessam ao bem comum.
1 https://digitarq.arquivos.pt/details?id=7784675
2 https://digitarq.arquivos.pt/details?id=3865669
3 Documentos Históricos, Biblioteca Nacional. 1930, Edição 16, páginas 149 a 152
4 Documentos Históricos, Biblioteca Nacional. 1930, Edição 19, páginas 41 a 44
5 Documentos Históricos, Biblioteca Nacional. 1946, Edição 71, página 174
6 Digesto, Livro L, Título XVI (Do Significado das Palavras, Verbete 96.
7 Instituta, Livro II, Título I (da Divisão das Coisas), Parágrafo Terceiro.