Adilson Abreu Dallari*
I – Estabilidade das relações jurídicas, ou segurança jurídica
Trata-se do mais abominável terrorismo oficial, destinado a fazer com que os cidadãos, por medo, se submetam à violação de seus direitos constitucionalmente assegurados. A mencionada lei, conhecida como lei do desarmamento, contém um formidável repositório de inconstitucionalidades, mas o que será objeto de exame neste estudo é, especificamente, a questão da renovação do registro de arma de fogo.
Essa matéria tem como pano de fundo a questão da estabilidade das relações jurídicas ou da segurança jurídica. O direito tem como primeiro princípio, que justifica toda a ordem jurídica, dar segurança, tranqüilidade, previsibilidade às ações estatais.
Todo o arcabouço jurídico é delineado em função e tendo em vista a segurança jurídica, a estabilidade das relações jurídicas.
A desconstituição de situações jurídicas consolidadas somente pode ser admitida excepcionalmente. Além disso, no caso em exame, pretende-se subtrair direitos legalmente adquiridos por seus titulares com base em normas cuja constitucionalidade é, no mínimo, duvidosa, por estarem “sub judice”, conforme se abordará logo adiante.
Ou seja, em termos estritamente jurídicos, o governo federal pretende subverter totalmente aquele princípio primeiro e elementar, o principio da estabilidade das relações jurídicas, instaurando a insegurança jurídica, valendo-se, para isso, de uma ameaça, do constrangimento, da certeza de que o cidadão comum tem medo das instituições.
Cabe esclarecer que, nos termos da lei do desarmamento, não apenas as antigas licenças (regularmente expedidas com base na lei então vigente) terão que ser renovadas, mas, além disso, mesmo as novas licenças, expedidas com base na lei agora vigente, passarão a ter vigência temporária, de três anos, devendo, portanto, ser periodicamente renovadas.
II – A questão especificamente em exame
Neste passo, convém esclarecer que não se trata, aqui, de discutir a periodicidade da autorização para o porte de arma. Um a coisa é portar uma arma, trazê-la consigo, andar com ela na rua. Outra coisa muito distinta é a licença para adquirir uma arma, para mantê-la em seu domicílio. O registro de arma de fogo não autoriza o porte da mesma arma.
Para que o conteúdo jurídico do registro da arma seja perfeitamente entendido, é preciso explicar a sistemática de aquisição de uma arma de fogo. Quando alguém vai adquirir uma arma, precisa ter primeiro uma autorização de compra. Essa autorização é precaríssima. Alguém querendo adquirir uma arma tem de se dirigir a uma loja especializada, que lhe fornecerá o número da arma escolhida, identificando-a. Sem essa autorização precária a loja não pode vender arma alguma. Essa autorização precária serve apenas para que a loja venda a arma, emita a nota fiscal, mas não a entregue ao adquirente. Uma vez emitida a nota fiscal, o adquirente vai, então, solicitar o registro da arma (adquirida, mas não entregue, nem recebida) à autoridade policial competente. Sem aquela autorização precária , ele nem pode pedir a licença. Ele também não pode pedir licença para simplesmente comprar uma arma qualquer, indeterminada. Ele só pode pedir licença para comprar uma específica e determinada arma. Essa autorização precária de compra não serve para outra coisa a não ser identificar a arma que se pretende adquirir. De posse dessa autorização de compra é que se solicita o registro da arma.
Convém deixar bem claro que ninguém sai de uma loja de armas com uma arma se não estiver registrada. Nos termos do direito civil, não existe a tradição, a transferência do domínio da arma para o particular adquirente, sem que aquela específica e determinada arma esteja previamente registrada. O registro é condição de aquisição da arma. O art. 5º da Lei nº 10.826, de 22/12/03, deixa isso bem claro. Ele diz que o registro é condição de aquisição e permite manter a arma em domicílio.
Essa parte final, “manter a arma de fogo exclusivamente no interior de sua residência ou domicílio” é acaciana, é o próprio óbvio. Se alguém adquire uma arma de fogo, vai ter que mantê-la exatamente em seu domicílio, que é a sede do exercício dos seus direitos. Não existe possibilidade lógica de que alguém adquira uma arma para mantê-la no éter. Quem compra uma arma de fogo tem o direito elementar de mantê-la em seu domicílio. Na verdade, o que o art. 5º está dizendo é que a arma não pode sair do domicílio. Manter a arma em domicílio é uma decorrência lógica, jurídica e natural da aquisição.
A questão jurídica está exatamente na aquisição, na obtenção do direito de propriedade da arma. Quando o adquirente obtém o registro, ele preenche uma condição de aquisição da arma. Sem uma licença da autoridade competente, ninguém pode adquirir arma de fogo alguma. Essa licença, expedida sob a forma ou com a denominação de registro, habilita o interessado a adquirir uma específica e determinada arma de fogo.
O que se pretende demonstrar é o absurdo, do ponto de vista jurídico, da temporariedade ou da periodicidade de tal registro, pois o ato de aquisição ocorre apenas uma única vez e a manutenção da arma na posse do adquirente, em seu domicílio, é mera decorrência da aquisição lícita. Não tem cabimento, é um disparate, não faz sentido se falar em renovação da licença para aquisição da arma.
A melhor doutrina é meridianamente clara ao fazer a distinção entre licença e autorização. Merece transcrição o ensinamento do consagrado HELY LOPES MEIRELLES (Direito Administrativo Brasileiro. 29a. Edição. São Paulo: Malheiros, 2004. pp. 185-186):
“Licença é o ato administrativo vinculado e definitivo pelo qual o Poder Público, verificando que o interessado atendeu a todas as exigências legais, faculta-lhe o desempenho de atividades ou a realização de fatos materiais antes vedados ao particular, como, p. ex., o exercício de uma profissão, a construção de um edifício em terreno próprio. A licença resulta de um direito subjetivo do interessado, razão pela qual a Administração não pode negá-la quando o requerente satisfaz todos os requisitos legais para sua obtenção, e, uma vez expedida, traz presunção de definitividade”
“Autorização é o ato administrativo discricionário e precário pelo qual o Poder Público torna possível ao pretendente a realização de certa atividade, serviço ou utilização de determinados bens particulares ou públicos, de seu exclusivo ou predominante interesse, que a lei condiciona à aquiescência prévia da Administração, tais como o uso especial de bem público, o porte de arma, o trânsito por determinados locais etc”
(Hely Lopes Meirelles Direito Administrativo Brasileiro. 29a. Edição. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 186).
Outro consagradíssimo luminar do Direito Administrativo, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO (Curso de Direito Administrativo. 21a. Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 424), mostra que a licença para aquisição da arma, na verdade, se extingue no momento em que é utilizada para essa específica finalidade. O registro deve ser mantido apenas para comprovar a licitude da aquisição. Ao discorrer sobre as formas de extinção dos atos jurídicos, esse eminente autor, afirma que um ato jurídico eficaz extingue-se pelo cumprimento de seus efeitos, o que pode suceder pelas seguintes razões:
a) “esgotamento do conteúdo jurídico. É o que sucede com a fluência de seus efeitos ao longo do prazo previsto para ocorrerem. Por exemplo: o gozo de férias de um funcionário;
b) execução material. Tem lugar quando o ato se preordena a obter uma providência desta ordem e ela é cumprida. Por exemplo: a ordem, executada, de demolição de uma casa”.
Voltando ao texto, acima transcrito, do Prof. Hely Lopes Meirelles, convém destacar que ele faz uma distinção muito grande entre licença e autorização. Segundo ele, “licença é um ato administrativo vinculado e definitivo”. E completa: “Uma vez expedida a licença, ela traz a presunção de definitividade”. Por exemplo, quando alguém quer construir uma casa, precisa de uma licença para edificar. Uma vez edificada a casa, não há mais o que fazer. Da mesma forma, sendo o registro da arma uma licença para que alguém adquira uma arma, não tem sentido que seja temporária. A aquisição é definitiva. Não se pode confundir a licença para comprar a arma com a autorização do porte de arma. O Prof. Hely Lopes Meirelles destaca bem que “a autorização é ato administrativo discricionário e precário” e dá como exemplo exatamente o porte de arma. Esses dois diferentes atos jurídicos não podem ser confundidos. A licença é para adquirir. Quem tiver uma licença, pode adquirir uma específica e determinada arma de fogo, que passa a integrar definitivamente seu patrimônio; quem não tiver a licença , não pode adquirir arma de fogo alguma.
Quem adquire uma arma de fogo não pode porta-la, não pode andar com ela; pode apenas mantê-la em seu domicílio. Para sair com ela, precisa obter outro documento: a autorização para porte de arma, que é temporária. É uma autorização, um ato discricionário, precário, essencialmente temporário.
Registro e porte são coisas completamente diferentes, e não existe nisso novidade alguma, porque essa distinção já é feita pela legislação de controle de uso de Armas de fogo desde 1930. É algo absolutamente sedimentado no direito brasileiro. A Lei nº 10.826 é que contém uma novidade absurda, do ponto de vista jurídico.
Também merece ser repetida a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello quanto ao exaurimento da licença. A licença tem como finalidade possibilitar a aquisição da arma. Uma vez adquirida a arma, a licença se extingue. Não tem sentido algum falar em renovação da licença, porque ela morreu. Se a licença serve para possibilitar a aquisição de uma específica e determinada arma, no momento em que a aquisição se consuma esgota-se o seu conteúdo jurídico. Quem, com base na licença, adquiriu legalmente uma arma de fogo, tem o direito de mantê-la consigo, pois isso é inerente ao direito de propriedade; não é “efeito” do registro.
Não se pode confundir essa licença, para aquisição de arma de fogo, com, por exemplo, licenciamento de automóvel. O licenciamento de veículo é de uso e não de propriedade. Não há necessidade de licença para comprar o carro. Um menor de idade pode ser proprietário de um carro. Uma vez comprado o carro, para circular com ele é que se torna necessário ter uma licença. Sem essa licença, o veículo não pode circular, mas a propriedade é do adquirente.
No caso da arma, a licença confere a alguém o direito de ser proprietário de uma arma; o porte, por sua vez (e que somente pode ser concedido se a arma houver sido legalmente adquirida, tiver sido devidamente registrada) permite que o adquirente saia com a arma. Quem tiver a licença, e não tiver o porte, tem apenas o direito de ficar com a arma em seu domicílio.
O que não tem qualquer sentido é desconstituir a licença, pelo decurso de tempo. Cabe perguntar: quem foi a uma loja e comprou legalmente uma determinada arma, passados os três anos, o que deve fazer? “Descomprar” a arma ? O Direito não briga com o bom senso. Quando a lei agride o bom senso, é porque lhe foi dada uma interpretação equivocada ou tem alguma inconsistência ou incompatibilidade com a ordem jurídica. No caso em exame, há uma pluralidade de inconstitucionalidades.
III – Inconstitucionalidades
Não é difícil exemplificar uma forma de violação desse direito fundamental. . Quem já foi vítima de assalto, de seqüestro ou de estupro sabe o que é o vexame, sabe o que é o constrangimento, sabe o que é a destruição moral da pessoa. Quem não foi vítima, certamente já leu sobre isso e sabe que o estresse provocado por tal violência se equipara ao que é causado pela guerra.
Não se pretende, aqui, utilizar um argumento “ad terrorem”, mas citar apenas um exemplo de um lastimável tipo de ocorrência bastante freqüente, qual seja o assalto seguido de estupro de um membro da família diante dos demais. Como fica essa família? Não é possível entender que a Constituição determine que os cidadãos devam quedar-se inermes diante de um risco dessa natureza.
Se a Constituição afirma, garante, assegura o direito à dignidade, não pode a Administração Pública privar o cidadão de meios para assegurar a autodefesa, a proteção contra situações de risco ou de concreta violação de sua dignidade pessoal. Se a posse de uma arma em seu domicílio é suficiente ou eficiente para isso, essa é uma opção do titular do direito; não do Estado.
Talvez a relevância do direito à auto defesa fique mais clara se cotejada com a hipótese contrária. Basta imaginar, apenas “ad argumentandum”, a possibilidade da proibição absoluta da posse de armas de fogo <_st13a_personname w:st="on" productid="em domicílio. Nessa">em domicílio. Nessa hipótese, os assaltantes e seqüestradores teriam a garantia absoluta de que não correriam qualquer risco ao invadir uma residência. Ou seja, vedar ao particular o exercício da autodefesa, além de agredir a constituição é também um incentivo ao crime
Cabe ao cidadão – não ao Estado – decidir se quer ou não ter uma arma de fogo em seu domicílio. A liberdade de escolha é assegurada pelo “caput” do art 5º da Constituição Federal, artigo esse que abre o leque de direitos e garantias diretamente conferidos ao cidadão e que fazem parte do chamado cerne fixo da Constituição.
Diversos desses direito e garantias, elencados no art. 5º, estão sendo violados pela exigência de renovação da licença para aquisição de arma de fogo. Por se tratar de algo realmente fundamental, por ser uma violação da ordem jurídica muito mais grave do que a transgressão de uma lei isolada ou de algum regulamento, é importante que tais ofensas à Constituição sejam examinadas <_st13a_personname w:st="on" productid="em detalhe. Para">em detalhe. Para isso, de imediato, convém transcrever o “caput” do art. 5º , depois, ao longo do texto, os específicos incisos vulnerados.
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...)”:
O art. 5º assegura a inviolabilidade do direito à vida, o que compreende, também, a incolumidade pessoal, física, psíquica e moral. Ao garantir a vida e a incolumidade pessoal a Constituição confere ao cidadão o direito de se defender, que não afeta nem se contrapõe ao direito de contar com a segurança pública. De resto, nos termos do art. 144, o cidadão tem o dever de colaborar com a segurança pública e uma forma de cumprir essa obrigação é zelar pela própria defesa.
Mas o direito e dever de zelar pela própria defesa requer a disponibilidade de meios eficientes para isso. É certo, portanto, que a Constituição não autoriza o Poder Público a privar o cidadão de instrumentos de autodefesa, ou, de alguma forma, de maneira indireta, dificultar ou impedir que alguém cuide de sua defesa pessoal, de sua família e de seus bens.
Esse direito à autodefesa é assegurado igualmente a todos os cidadão, mas a exigência de renovação do registro ofende também o direito à igualdade, também expressamente previsto no “caput” do art. 5º da CF.
Com efeito, a obtenção do registro já é onerosa, mas a exigência de renovação periódica desse mesmo registro multiplica os custos dessa licença, criando uma inaceitável (e inconstitucional) diferença entre pobres e ricos. Convém esclarecer que para a renovação do registro o interessado deve pagar as taxas correspondentes, obter um sem número de certidões, apresentar um laudo profissional atestando sua aptidão psicológica para ter uma arma e, ainda, um documento oficial comprobatório de sua aptidão para o uso de arma de fogo. Tudo isso custa muito caro. Fazendo uso do deplorável jargão político atualmente em moda: as elites podem ter arma, o cidadão comum não pode.
“X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação";
A inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas significa, literalmente, que isso tudo não pode ser violado, ofendido ou afetado. Dado que os organismos da segurança pública não podem materialmente evitar universalmente tais violações, em toda e qualquer residência, é irrecusável a impossibilidade de impedir que o próprio morador se defenda, com meios próprios e suficientes para dissuadir qualquer eventual invasor.
Nunca é demais lembrar que uma enorme parte da população vive em locais ermos, nas zonas rurais, sem possibilidade de comunicação imediata com vizinhos e, muitíssimo menos, com as autoridades policiais.
Em situações desse tipo, um tiro de advertência tem um enorme poder dissuasório. Não é preciso que o detentor da arma seja um grande atirador, nem é desejável que acerte ou mate o invasor. Basta impedir a invasão.
“XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”;
No mesmo sentido e com a mesma amplitude da inviolabilidade acima assinalada, o inciso XI diz que a casa é asilo inviolável do indivíduo. Convém repetir, portanto, que isso significa que a casa não pode ser violada. Não significa apenas que, se alguém violar uma casa, esse invasor será punido. A garantia constitucional é muito mais ampla, significando que o morador tem direito impedir que sua casa seja violada, podendo dispor dos meios para isso necessários, exatamente porque a Constituição estabelece que a casa é asilo inviolável do indivíduo.
Essa declaração enfática feita pelo texto constitucional não é meramente romântica, não indica apenas um ideal desejável, mas, sim, é um mandamento jurídico, impondo deveres à Administração e conferindo direitos ao cidadão, o qual, em princípio, tem direito de possuir uma arma de fogo em seu domicílio. Ao outorgar a licença, sob a forma de registro, a Administração não está dando esse direito ao cidadão, mas, conforme os ensinamentos doutrinários acima referidos, apenas reconhecendo um direto que lhe é dado diretamente pela Constituição.
“XXII - é garantido o direito de propriedade”;
O direito de propriedade também está sendo afetado por essa temporariedade do registro. Conforme foi acima demonstrado, o registro é, juridicamente, uma licença para a aquisição de uma arma de fogo. Uma vez adquirida, a arma passa a integrar definitivamente o patrimônio da pessoa adquirente. Não faz sentido ter um direito de propriedade temporário, porque a propriedade só pode ser desconstituída mediante prévia e justa desapropriação, em dinheiro, por sentença judicial, se e quando houver necessidade ou utilidade pública em que aquele determinado bem passe a integrar o patrimônio público.
A Constituição não tolera a extinção do direito de propriedade por decurso de prazo. Nem se diga que a expiração do prazo do registro não estaria extinguindo a propriedade, pois se o proprietário não puder ficar com a arma de fogo em seu domicílio estará sendo subtraído o conteúdo essencial do direito de propriedade, que é o de ter, usar e dispor do bem. Também não se cometa o disparate de dizer que, se não renovar a licença, o proprietário da arma teria que proceder a uma venda compulsória, pois isso também ofenderia a essência do direito de propriedade.
“XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”;
O cidadão adquire o direito de ter uma arma em domicílio quando obtém a licença, e esse direito é protegido pela Constituição. Convém repetir, ainda outra vez, que esse direito lhe é dado pela lei (no caso, pela Constituição) e é apenas reconhecido pela autoridade administrativa competente. A outorga da licença é um ato jurídico perfeito e acabado, do qual resulta, para o adquirente, um direito adquirido e intangível.
“LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”;
Ninguém será privado dos seus bens sem o devido processo legal. Não se extingue o direito de propriedade, mesmo que existam fundamentos para isso, sem o devido processo legal, sem que o prejudicado possa exercitar seu direito de defesa, com os meios e recursos a isso inerentes. Entretanto, conforme foi acima demonstrado, a temporariedade da licença extingue o direito de propriedade sem qualquer processo, automaticamente, o que não é comportado pela ordem jurídica.
“LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”;
O efeito mais absurdo e mais perverso da temporariedade da licença é transformar alguém em criminoso “ex lege”, contrariando a garantia constitucional no sentido de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Com efeito, o art. 12 da Lei nº 10.826 tipifica como conduta criminosa a simples posse ilegal de arma de fogo. Quem, agora, adquirir legalmente uma arma de fogo, passados três anos, se não renovar a licença, se transformará, como num passe de mágica, em criminoso.
Muito pior é a situação daquelas pessoas que, ao longo do tempo, há muitos anos, adquiriram legalmente armas de fogo, procedendo ao devido registro nos órgãos estaduais então competentes. A Lei nº 10.826, pela exigência de renovação daquelas antigas licenças no prazo de três anos, junto aos órgãos federais, vai criar uma multidão de delinqüentes.
Conforme as estatísticas existentes, em princípio, no dia 23 de dezembro de 2006, teremos 6,8 milhões de brasileiros criminosos “ex lege”. Na melhor das hipóteses, isso vai inundar o Poder Judiciário de pedidos de “habeas corpus” e mandados de segurança.
Mas pode acontecer uma coisa bem pior, qual seja o incentivo à informalidade. A partir do dia 23 de dezembro, poderá acontecer uma verdadeira “epidemia” de furto de armas de fogo, ou seja, de lavratura de boletins de ocorrência, formalizando uma declaração de furto de arma. Diante desse constrangimento, dessa onerosidade, não é difícil acontecer que muita gente, para se livrar da condição de criminoso, se livre de sua arma anteriormente legal, colocando-a na informalidade.
Quem “legalizar” a arma legalmente adquirida vai ter, daí para diante, um enorme constrangimento, vai enfrentar uma formidável burocracia, vai ter despesas vultosas, sendo, portanto, muito mais conveniente manter a arma simplesmente escondida <_st13a_personname w:st="on" productid="em casa. A">em casa. A história é rica de exemplos em que a intenção do legislador é uma, e o resultado é outro. Não é preciso ir muito longe, basta lembrar da Lei Seca, nos Estados Unidos. Se não for possível manter uma arma lícita, não restará ao cidadão senão conformar-se com a ilicitude.
IV – Questão jurídica
A questão crucial, questão propriamente jurídica, é que a Lei nº 10.826, em seu art. 35, previa a proibição geral de comercialização de armas de fogo. Essa previsão expressa da lei, todavia, tinha sua eficácia dependente da realização de uma consulta popular, sob a modalidade de referendo. Tal referendo foi realizado, e o resultado foi totalmente contrário a essa proibição absoluta. A população brasileira, diretamente, não concedeu eficácia e retirou a validade do dispositivo que estabelecia o banimento geral das armas de fogo.
Porém, como a lei, no mencionado art. 35 estabelecia a proibição geral do comércio e posse de armas de fogo, isso era um pressuposto do tratamento dado à matéria e todo o contexto normativo foi feito todo em cima dessa proibição universal. Ou seja, toda a disciplina do controle de armas de fogo, estabelecida por essa lei, tem como fundamento, base ou ponto de partida a proibição geral da comercialização de armas, tendo como exceções apenas algumas hipótese, como é o caso das empresas de segurança, dos policiais e membros do Ministério Público e do Poder Judiciário.
Todo esse inferno burocrático é inconstitucional, evidentemente, pois a Constituição assegura o direito de cada cidadão, se assim o desejar, possuir uma arma de fogo para sua autodefesa. Como todo direito, esse também não é absoluto e seu exercício pode depender de condições estabelecidas em lei, mas, não, condições de tal complexidade e onerosidade que, na verdade, aniquilam o direito constitucionalmente assegurado.
As condições estabelecidas na Lei nº 10.826, de 22/12/03, na medida em que contrariam a Constituição Federal, inviabilizando o exercício de um direito por ela garantido, configuram patente desvio de poder no exercício da função legislativa, conforme a claríssima lição contida no voto do Ministro Relator, CELSO DE MELLO, em Acórdão do Supremo Tribunal Federal, na ADI 1.158-8 AM, o qual parcialmente se transcreve:
"Refiro-me, nesse específico contexto, à questão pertinente ao abuso da função legislativa.
Todos sabemos que a cláusula de devido processo legal – objeto de expressa proclamação pelo art. 5º., LIV, da Constituição – deve ser entendida, na abrangência de sua noção conceitual, não só sob o aspecto meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à atuação do Poder Público, mas, sobretudo, em sua dimensão material, que atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário ou irrazoável.
A essência do substantivo due process of law reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou, como no caso, destituída do necessário coeficiente de razoabilidade.
Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal.
Daí, a advertência de CAIO TÁCITO (in RDP 100/11-12) – que, ao relembrar a lição pioneira de SANTI ROMANO, destacou que a figura do desvio de poder legislativo impõe o reconhecimento de que, mesmo nas hipóteses de seu discricionário exercício, a atividade legislativa deve desenvolver-se em estrita relação de harmonia com o interesse público.”
Esse inferno burocrático, estabelecido pelo legislador ordinário, além de se chocar com todos os dispositivos constitucionais acima transcritos, contraria, também, os princípios constitucionais da eficiência, da razoabilidade, da proporcionalidade, da adequação. O Estado tem de atuar com a mínima onerosidade possível. O Poder Público não pode exigir do cidadão senão aquilo que for estritamente necessário para a satisfação do interesse público, nada mais.
A conjugação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade impede que a Administração faça exigências exageradas e, também, exigências inúteis. Com desagradável freqüência o cidadão se depara com exigências totalmente despropositadas, inúteis, ditadas simplesmente pelo propósito de arrecadar os emolumentos correspondentes ou como uma demonstração de poder e para exigir uma submissão do interessado, ou, ainda, como forma de dificultar ou mesmo impedir o exercício de direitos. Vale aqui lembrar que na Espanha, conforme demonstra TERESA NUÑES GOMEZ (Abuso en la exigencia documental y garantias formales de los administrados, Universidad de Oviedo, Atelier Libros Jurídicos, Espanha, 2005, p. ), o art. 35 da Lei do Regime Jurídico da Administração Pública e do Procedimento Administrativo Comum (Ley 30/1992, de 26 de noviembre) confere aos cidadãos o direito público subjetivo de não apresentar documentos inúteis, desnecessários, inexigíveis ou reiterativos. A Administração Pública não tem o direito de simplesmente aborrecer, perturbar ou molestar o cidadão. Não cabe à Administração Pública, nem mesmo com base na lei, criar dificuldades ao exercício de direitos constitucionalmente assegurados, pois isso atinge o cerne da cidadania, o âmago da liberdade, a própria dignidade da pessoa, configurando patente inconstitucionalidade.
Em obediência a essa orientação constitucional, no sentido de que o Poder Público não pode criar dificuldades artificiais ou exigências inúteis aos administrados, a lei geral de processo administrativo da União, Lei nº 9.784 de 29/1/99, em seu art. 3º, estabelece um rol de direitos do cidadão em sede administrativa, do qual merece destaque o disposto no primeiro inciso:
“Art. 3º . O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados:
I - ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que deverão facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações;”
Impedir ou dificultar o exercício de um direito é exatamente o contrário daquilo que estabelece a lei geral de processo administrativo, a qual, nesse particular, está apenas explicitando ou traduzindo em uma específica e expressa norma de direito positivo aquilo que já está implícito na Constituição Federal e que a doutrina enquadrou como inerente aos princípios da eficiência, da proporcionalidade e da razoabilidade, já fartamente aplicados pelos tribunais superiores.
V – Duplo desvio de foco
Saindo um pouco do aspecto estritamente técnico-jurídico, para fazer uma apreciação mais ampla, destinada a evidenciar o despropósito e a falta de razoabilidade do tratamento dado a essa matéria pela legislação em exame, é possível demonstrar a ocorrência de um duplo desvio de foco
Primeiramente, não é preciso muito esforço para demonstrar que o Brasil tem, atualmente, um seriíssimo problema de criminalidade. Além da criminalidade violenta comum, existe, ainda, o chamado crime organizado, com o crescimento, em volume e poder, das organizações criminosas.
Criminoso não compra arma em loja, nem, muito menos, usa armas roubadas de particulares, pois as armas de grande poder de fogo, usadas pela bandidagem, não são e nunca foram comercializadas no Brasil. O grande problema é o contrabando de armas, ligado ao tráfico internacional de drogas entorpecentes.
Porém, em vez de termos o foco centrado no crime, estamos usando a máquina administrativa para perseguir o cidadão de bem, a pessoa que quer defender seu lar e sua família. Estamos usando uma tremenda máquina burocrática, estamos comprometendo a estrutura administrativa, valiosos recursos pessoais e financeiros para perseguir o cidadão comum.
Em lugar de coibir o tráfico de armas ilegais, estamos concentrando esforços para infernizar os cidadãos que adquiriram legalmente armas de autodefesa, que registraram tais armas de acordo com a legislação então vigente e que não pretendem, de maneira alguma, esconder ou desviar essas mesmas armas, as quais efetivamente figuram nos cadastros dos organismos policiais estaduais competentes.
O segundo desvio de foco é tratar o adquirente da arma como um delinqüente presumido. Presume-se que quem vai adquirir uma arma está mal intencionado e, portanto, tem de ser cerceado, controlado, vigiado. Presume-se que ele está predestinado a ser um delinqüente. Isso é completamente contrário à dicção constitucional segundo a qual ninguém é considerado culpado a não ser mediante sentença criminal transitada em julgado.
Na verdade, incontestável, quem tem ou quer ter uma arma legal, registrada, é alguém movido por boas intenções, preocupado com sua autodefesa. Quem tiver más intenções não vai comprar uma arma legal, pois é muitíssimo mais fácil e mais barato comprar de traficantes. Como se sabe, como é público e notório, o comércio de produtos pirateados, ilegais, é espantosamente crescente e escancarado no Brasil.
Veja-se a situação de colecionadores e praticantes de tiro esportivo. O colecionador é alguém que quer preservar um acervo para a coletividade para a posterioridade, é, acima de tudo, um altruísta. O praticante de tiro esportivo é um esportista, alguém que pratica o tiro como atividade de lazer, valendo lembrar que a primeira medalha de ouro olímpica do Brasil foi obtida exatamente por um atirador esportivo. Qual o perigo ou ameaça que essas pessoas apresentam para a sociedade?
Está acontecendo com o cidadão que deseja possuir uma arma o mesmo fenômeno que afeta os contribuintes <_st13a_personname w:st="on" productid="em geral. Quem">em geral. Quem sonega não tem problema algum: sonega, não paga, e acabou; mas se tiver algum problema é só esperar por uma anistia. Já o contribuinte que efetivamente quer pagar os impostos devidos, tem que sofrer as penas do inferno com as obrigações acessórias, para as quais a legislação cria todos os empecilhos, dificuldades e problemas possíveis. Pagar o imposto exige uma série de providências altamente onerosas. Ou seja: punimos quem paga imposto.
O mesmo acontece no caso das armas. Quem está na informalidade está tranqüilo, não tem problema algum; quem quiser cumprir a lei vai sofrer o inferno burocrático e vai gastar muito dinheiro.
VI – Questão democrática – O resultado do referendo
Por último, não pode ficar sem registro o resultado do referendo sobre a proibição total do comércio e posse de armas pelas pessoas de bem. A população brasileira, apesar da enorme e massiva propaganda enganosa oficial, entendeu perfeitamente que se estava pretendendo desarmar as vítimas e, como decorrência inafastável, dar melhores condições de atuação, maior segurança, aos delinqüentes. O resultado foi acachapante: quase 70% dos eleitores repudiaram o já referido art. 35 da Lei nº 10.826?03.
O que se pretende agora, com a absurda exigência de renovação do registro é obter, com desvio de poder, aquilo que se perdeu nas urnas. O povo brasileiro se manifestou claramente num determinado sentido. A orientação geral da lei foi baseada no art. 35, que caiu, não existe mais; foi retirado da ordem jurídica em razão do resultado do referendo.
Quando a Constituição, no art. 1º, parágrafo único, diz que todo o poder emana do povo, que pode exercê-lo diretamente, como é o caso do referendo, isso somente pode significar que essa vontade deve ser respeitada. Atenta contra o princípio democrático a criação de meios e instrumentos para burlar a vontade manifestada nas urnas.
Nem se diga, num assomo de hipocrisia, que o que se está pretendendo é assegurar ao cidadão o controle de suas armas, dificultando a comercialização de armas roubadas. Para isso, não há necessidade alguma de re-cadastramento, bastando que os órgãos policiais estaduais repassem seus arquivos para a polícia federal. Se houvesse alguma honestidade de propósitos, bastaria que a polícia federal convidasse ou incentivasse os detentores de armas legais a procederem, até pela internet, uma simples comunicação à polícia federal, sem maiores empecilhos burocráticos, exigências absurdas e gastos vultosos.
Na verdade, o Governo Federal está claramente tentando aterrorizar as pessoas de bem, para que estas, zelando por sua dignidade pessoal, temerosas de serem consideradas criminosas, se submetam à vulneração de seus direitos constitucionais. O Governo sabe como é difícil e caro recorrer ao Poder Judiciário e, além disso, conta com a complacência do Ministério Público.
Com efeito, a exigência de renovação de registro ofende direitos de toda uma coletividade. Deixando de lado a discussão sobre se esse caso configura a existência de direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos, é certo que, em qualquer dessas hipóteses, o Ministério Público deveria agir em defesa da massa de cidadãos honestos, cumpridores da lei, que estão sendo ameaçados, conforme ensina a Eminente Desembargadora Federal, CONSUELO YATSUDA MOROMIZATO YOSHIDA, “Tutela dos interesses difusos e coletivos”, Editora Juarez de Oliveira, 2006, p. 21:
“A legitimidade ad causam ativa e o interesse processual do Ministério Público na tutela jurisdicional coletiva dos direitos individuais homogêneos decorre da relevância social dos interesses materiais envolvidos de forma mediata, e não apenas do número elevado de beneficiários da tutela jurisdicional invocada: a tutela do Estado Democrático de Direito em face da violação em massa da ordem jurídica (bem difuso); a tutela da cidadania e da dignidade da pessoa humana em face da lesão em massa, individualmente experimentada e aferível; do direito (difuso) à habitação, transporte coletivo, educação e ensino, saúde, previdência e assistência sociais.
No plano processual, a relevância social dos interesses em jogo a legitimar a atuação do órgão ministerial decorre das vantagens e conveniência da utilização de uma só ação (coletiva) para defesa de uma série de direitos e interesses individuais, sem o risco de decisões conflitantes sobre a mesma matéria, atendendo, ademais, aos propósitos de ampliação do acesso á justiça com desafogamento e agilização do Poder Judiciário, para garantia da maior efetividade da tutela jurisdicional.”
Resta ainda a esperança de que o Congresso Nacional, sensível à inequívoca demonstração de vontade do povo, manifestada no referendo, revogue, de uma vez, a Lei nº 10.826/03, ou, pelo menos, a exigência da renovação do registro.
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*Prof. Titular de Dir. Administrativo da PUC/SP
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