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Democracia e sua defesa no plano internacional

A democracia interna de um país é avaliada por organismos internacionais. O Brasil foi criticado por restrições à liberdade de expressão, levando a debates sobre o respeito à soberania nacional e a aplicação de critérios democráticos em relações internacionais.

25/4/2024

Num mundo globalizado, o reconhecimento da democracia interna pelos demais países e por organismos internacionais é elemento relevante para avaliá-la.

Há alguns dias, a liberdade de expressão no Brasil foi alvo de comentários por Elon Musk e pela Comissão de Assuntos Judiciários da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos1. Como se sabe, a liberdade de expressão é um dos elementos para medir o grau de democracia política. No caso da Comissão americana, foram solicitados ao Departamento de Estado, ligado à Casa Branca, ‘todos os documentos e comunicados trocados entre os funcionários do órgão com corpos diplomáticos norte-americanos no Brasil, e com o governo brasileiro, referentes a “ordens, demandas ou mandados” do TSE e do STF sobre o bloqueio ou banimento de perfis do X (ex-Twitter) e outras plataformas’.Ao requerer tais documentos a um órgão dos próprios EUA, porém, a Comissão fez afirmações sobre “as demandas ditatoriais do Brasil”. O caráter ditatorial atribuído ao Brasil, por sua vez, é fundamentado em artigos de jornais referidos em nota de rodapé. Esse enquadramento do Brasil foi, logo em seguida, propagado em notícias e redes sociais numa tentativa de desqualificar a atuação do Poder Judiciário Brasileiro.

Se, como afirmado, no cenário internacional, Estados (e consequentemente seus órgãos) gozam do poder de se manifestar sobre a democracia de outros países, importa analisar qual o caminho legítimo para que assim se manifestem, sem que isso represente um desrespeito à soberania. 

É possível utilizar a democracia como critério nas relações internacionais, com base em acordos bilaterais e multilaterais, inclusive com a aplicação de sanções para o país considerado como não democrático, como está previsto, por exemplo, no Critério de Copenhaguee no Tratado da União Europeia4. Além disso, os países e as organizações internacionais podem se comprometer a promover a democracia no mundo, com incentivos financeiros ou negativa de repasse de verbas, a depender do compromisso com a democracia. A OEA - Organização dos Estados Americanos tem como um de seus valores fundamentais o fortalecimento da democracia e a promoção da boa governabilidade5, baseando suas ações na Carta Democrática Interamericana6.  

A comunidade internacional conta também com tribunais internacionais com competência própria para avaliar a violação de direitos políticos (como é caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos), além de contar com missões de observação das eleições e observatório de direitos humanos, entre os quais se incluem os direitos civis de liberdade de expressão e os direitos políticos.

É estranho, porém, que procedimentos sejam instaurados por órgãos de um Estado, culminando com a produção de documentos nos quais são feitas afirmações sobre “o caráter ditatorial” de outro país, sobretudo quando o fundamento para tanto são artigos de jornal. Trata-se de uma cadeia de atos na qual há a avaliação unilateral sobre a complexa realidade democrática.

O Poder Legislativo de todos os países, de um modo geral, tem como uma de suas funções típicas a fiscalização, mas a pretexto de realizá-la, ao pedir documentação para apurar fatos de interesse nacional, não pode fazer afirmações categóricas sobre a condição democrática de um outro país e de seus Poderes.

Procedimentos de órgãos legislativos estrangeiros, sem qualquer direito de participação ou manifestação institucional do terceiro país que está sendo qualificado como ditatorial, são ambivalentes e mais se assemelham a um ato arrogante e autoritário, do que à tentativa de promover a democracia no mundo.

A democracia é substancial, mas é também procedimental. Somente seria minimamente legítima uma análise dessa natureza, após a manifestação do país apontado como praticante de “demandas ditatoriais”. De todo modo, devem ser respeitados, como afirmado, os canais diplomáticos e de Direito Internacional. E esse não é um deles. Qualquer classificação de “ditatorial”, sem a observância a essas condições procedimentais, é violação à soberania e autoritarismo internacional.

O Poder Judiciário Brasileiro, como todos os Poderes de Estado do Brasil e do mundo, está sujeito a críticas e pode ser aprimorado, mas não é através de sua instabilidade, gerada por enquadramentos irresponsáveis sobre sua atuação e sobre o estado da democracia no país, que o caminho do aperfeiçoamento será trilhado. 

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1 Disponível em https://www.poder360.com.br/internacional/leia-a-integra-do-pedido-da-comissao-dos-eua-sobre-bloqueio-em-redes-no-brasil/

2 Disponível em https://www.poder360.com.br/internacional/leia-a-integra-do-pedido-da-comissao-dos-eua-sobre-bloqueio-em-redes-no-brasil/

3 Disponível em https://eur-lex.europa.eu/PT/legal-content/glossary/accession-criteria-copenhagen-criteria.html

4 Segundo art. 21 do TUE, “a ação da União na cena internacional assenta nos princípios que presidiram à sua criação, desenvolvimento e alargamento, e que é seu objetivo promover em todo o mundo: democracia... A União procura desenvolver relações e constituir parcerias com os países terceiros e com as organizações internacionais, regionais ou mundiais que partilhem dos princípios enunciados no primeiro parágrafo.”

5 Disponível em https://www.oas.org/pt/topicos/democracia.asp

6 Disponível em https://www.oas.org/pt/democratic-charter/pdf/demcharter_pt.pdf

Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil. Integra o Observatório de Violência Política contra a Mulher.

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