"Nesta tarde de domingo, nem vejo o tempo passar, que passa como castigo (..) Da justiça que pouco enxerga; alimentando o meu ódio, pois a minha pena está paga. E a liberdade não chega. Continuo vivendo no ócio. Na ociosidade do sistema.1"
Estas são apenas algumas palavras de um livro inteiro que Mauro Moncks escreveu como meio de sobrevivência aos anos que passou dentro do Complexo Penitenciário da Papuda em Brasília. Sem mencionar que ele é somente um dos milhares e até mesmo milhões de internos que já agonizaram no sistema prisional Brasileiro. Não apenas agonizam, mas literalmente chegam a óbito como ocorreu com o caso de Cleriston Pereira da Cunha no dia 20/11/23. Mais uma vida que não pode ficar esquecida na história.
Precisamos reconhecer que o esforço do Poder Legislativo e dos servidores do Poder Judiciário é muito pouco para amenizar as injustiças que estão incrustradas tanto na prisão definitiva, quanto na prisão provisória.
Considerando-se que debate pode ir por muitas direções, neste pequeno artigo vamos tratar especificamente de um aspecto da prisão preventiva que precisa ser analisado na tentativa de amenizar as contínuas prisões ilegais. Trata-se do não cumprimento pelo do prazo de 90 dias estabelecido para revisão do decreto prisional, na forma instituída pela lei 13.964/19, pela nossa Corte Constitucional.
Em primeiro lugar, interessante destacar que a referida lei 13.964/19, chamada de "pacote anticrime", cuja vigência se deu a partir de janeiro de 2020, possui o escopo prioritário de endurecer ou ampliar a intervenção do Direito Penal, com nítido viés doutrinário que se aproxima da – criticada – corrente de pensamento do Direito Penal Máximo ou Direito Penal Simbólico. Contudo, em alguns aspectos processuais, o diploma legal trouxe importantes avanços a fim de diminuir os equívocos causadores de medidas prisionais excessivas. Assim, o art. 316 do CPP foi aprimorado com a inclusão do parágrafo único que estabeleceu o seguinte:
"Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal."
A despeito de nossa legislação brasileira continuar sem fixar um prazo específico para o término da prisão preventiva, fato é que agora há ao menos o dever judicial2 de reanalisar os fundamentos da prisão a cada período de 90 dias, com o escopo de conferir se permanecem presentes os requisitos do art. 312 do CPP3.
Tal necessária inovação legislativa veio, ainda que atrasada (diga-se desde logo), com a finalidade de corrigir as repetidas injustiças históricas de longas prisões preventivas sine die e cuja motivação inicial para a custódia cautelar desaparecia com o passar do tempo. Contudo, a prisão permanecia hígida, intocável (não revisada) e, portanto, irrevogável. Vejamos que não raras vezes as prisões preventivas duravam anos para serem efetivamente revisadas e finalmente declaradas "excessivas" e "irrazoáveis":
"HABEAS CORPUS". PRISÃO CAUTELAR QUE SE PROLONGA POR MAIS DE 6 ANOS. RÉU PRONUNCIADO, MAS SEQUER SUBMETIDO A JULGAMENTO PERANTE O TRIBUNAL DO JÚRI. EXCESSO DE PRAZO CARACTERIZADO. SITUAÇÃO QUE NÃO PODE SER TOLERADA NEM ADMITIDA. DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO DE QUALQUER RÉU, MESMO TRATANDO-SE DE DELITO HEDIONDO, AO JULGAMENTO PENAL SEM DILAÇÕES INDEVIDAS NEM DEMORA EXCESSIVA OU IRRAZOÁVEL. DURAÇÃO ABUSIVA DA PRISÃO CAUTELAR QUE TRADUZ SITUAÇÃO ANÔMALA APTA A COMPROMETER A EFETIVIDADE DO PROCESSO E A FRUSTRAR O DIREITO DO ACUSADO À PROTEÇÃO JUDICIAL DIGNA E CÉLERE. PRECEDENTES (RTJ 187/933-934, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.). MAGISTÉRIO DA DOUTRINA. OCORRÊNCIA, NA ESPÉCIE, DE LESÃO EVIDENTE AO “STATUS LIBERTATIS” DO PACIENTE EM RAZÃO DE OFENSA À CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (ARTIGO 7º, 5) E À CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA (ART. 5º, INCISO LXXVIII). “HABEAS CORPUS” DEFERIDO. STF, HC 126.163/PE, Ministro Relator Celso de Melo, Dje 31/1/17.
Em outro exemplo para demonstrar a incerteza e insegurança jurídica sobre o tema, deparamos com o caso de um investigado preso preventivamente por três anos que precisou tramitar por todas as instâncias até ser finalmente posto em liberdade, em sede habeas corpus perante o STF. Soltura essa sequer de forma unânime, eis que o relator originário denegava a ordem, no que foi acompanhado pela ministra Carmem Lúcia (porém que restaram vencidos). Vejamos trechos do julgado (STF, 1ª Turma, HC 101.383/SP, redator para o acórdão: min. Marco Aurélio. Dje. 13/8/10):
"SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI: Senhor Presidente, tenho sempre refletido muito diante dos argumentos trazidos pelo ministro Marco Aurélio sobre a necessidade da prisão cautelar e dos fundamentos dos pressupostos do art. 312. Não vejo como abstrair desses pressupostos e do tempo que o paciente está preso a capitulação. A possível capitulação em tese. Aqui estamos diante de uma tentativa, ele já está preso há três anos. Dada a fragilidade do decreto prisional, vou pedir vênia a Vossa Excelência.
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO: Calcado apenas na gravidade da prática delituosa e sem estar a culpa formada".
Dado o contexto, considerando-se o novo comando normativo do parágrafo único do art. 316, duas perguntas precisam ser feitas: Os magistrados estão efetivamente cumprindo com tal prazo, ou se trata de simples prazo impróprio como tantos outros existentes no ordenamento jurídico4? Em segundo lugar, o que ocorre quando o magistrado deixa de reavaliar os fundamentos da prisão no mencionado prazo?
Primeiramente, a jurisprudência tem sim se posicionado pela obediência de reavaliar a necessidade da manutenção da prisão preventiva dentro do mencionado prazo de 90 dias. É possível identificar precedentes tanto na primeira quanto na segunda instância. Para citar dois casos: TJDFT, Proc. 07045752320238070005, 2ª Turma Criminal, Des. ROBERVAL CASEMIRO BELINATI, 9/11/23; proc. 0000057-74.2022.8.17.3210, Vara única da Comarca de Sairé/TJPE.
É possível, da mesma forma, concluir que a regra dentro do próprio STF é pela correta interpretação e aplicação da lei – que deve ser observado o prazo nonagesimal – , como se pode extrair das prisões e solturas oriundas dos inquéritos INQ 4922, INQ 4921, INQ 4.879, e petições derivadas, a exemplo Pet. 11.168, Pet. 10.685, dentre outras.
Agora, sobre o segundo questionamento lançado, quando há a inobservância da revisão dentro do novo prazo pelo juízo que decreta a prisão, isto, por si, não implica automaticamente a colocação em liberdade de réu preso. É a conclusão já conhecida que foi firmada pelo STF e STJ, também amplamente encampada pelos Tribunais de Justiça Estaduais e Federais.
"O prazo de 90 dias para reavaliação da prisão preventiva, determinado pelo art. 316, parágrafo único, do CPP, "não se trata de termo peremptório, isto é, eventual atraso na execução deste ato não implica automático reconhecimento da ilegalidade da prisão tampouco a imediata colocação do custodiado cautelar em liberdade" (AgRg no HC 592.026/RS, rel. ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 15/9/20, DJe 29/9/20)
"Em especial quanto à tese de violação ao art. 316, parágrafo único, do CPP, não há flagrante ilegalidade pois, segundo julgados do STJ, o prazo nonagesimal para reavaliação da prisão preventiva não é peremptório e, por isso, eventual atraso não implica o automático reconhecimento da ilegalidade da prisão nem a imediata colocação do custodiado em liberdade" (AgRg no RHC 171.133/PA, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe de 9/11/22; AgRg no HC 769.901/ES, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe de 19/4/23; AgRg no HC 805.374/SP, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe de 17/3/23).
Sobre esse segundo ponto, entendemos, com todo respeito, que este posicionamento é temerário, pois pode (e está sendo) utilizado por parte de magistrados como subterfúgio para justificar eventual omissão da revisão do decreto prisional dentro do atual prazo legal. Por outras palavras, é inegável que o posicionamento jurisprudencial firmado (se aplicado de forma indistinta e sem avaliar se há motivo idôneo para eventual atraso judicial) no mínimo diverge da letra clara do regramento do parágrafo único, art. 316, que classifica por "prisão ilegal" quando não realizada a mencionada revisão.
Por estes motivos, quando um magistrado não realiza a revisão no prazo nonagesimal, o que resta ao encarcerado é ingressar com habeas corpus para que o órgão judicial superior proceda no sentido de: (i) receber a revisão dos fundamentos – para eventualmente determinar a soltura –; ou (ii) no mínimo determinar para que o órgão prolator da decisão faça finalmente a devida reanálise. Este deveria ser o encaminhamento correto e majoritário para evitar violações ao art. 316, parágrafo único do CPP, sobretudo para que este não se torne uma mera recomendação (típica dos prazos impróprios conforme apontado anteriormente).
Esta foi a conclusão entendida pelo ministro Reynaldo Soares da Fonseca no bojo do HC 833774/PE, julgado no dia 16/11/23, que, ao reconhecer a omissão e inércia da Autoridade Coatora (juízo prolator da decisão), determinou que:
"Infere-se dos autos que a paciente foi presa preventivamente por suposta infração ao art. 33, caput, da lei 11.343/06, sendo a custódia substituída pela prisão domiciliar. Irresignada, a defesa impetrou habeas corpus perante o Tribunal de origem, alegando o excesso de prazo para a formação da culpa. A Corte a quo, contudo, denegou a ordem. (...) Assim, apesar dos argumentos apresentados pela defesa, não há elementos nos autos que evidenciem a existência de constrangimento ilegal. Ante o exposto, com fundamento no art. 34, XX, do RISTJ, não conheço do habeas corpus. Recomendo, entretanto, de ofício, ao Juízo processante que reexamine a necessidade da segregação cautelar, tendo em vista o tempo decorrido e o disposto na lei 13.964/19."
Inclusive o encaminhamento supra (embora muitas vezes ignorado) foi recomendação expressa pelo próprio STF quando do julgamento da ADI 6.581:
"(...) PROVOCAÇÃO DO JUÍZO COMPETENTE PARA REAVALIAR A LEGALIDADE E A ATUALIDADE DE SEUS FUNDAMENTOS. OBRIGATORIEDADE DA REAVALIAÇÃO PERIÓDICA (...) A inobservância da reavaliação prevista no dispositivo impugnado, após decorrido o prazo legal de 90 dias, não implica a revogação automática da prisão preventiva, devendo o juízo competente ser instado a reavaliar a legalidade e a atualidade de seus fundamentos."
Agora para revelar a situação mais peculiar e danosa (capaz de fazer letra morta da norma em comento): O que ocorre quando inexiste órgão superior ao prolator da decisão que decreta a prisão preventiva, somado ao fato de que este órgão simplesmente não obedece ao prazo de 90 dias para efetuar a revisão?
Para compreender mais os desdobramentos, apresentamos detalhadamente um caso concreto extraído da PET 10.993/STF. Trata-se da prisão preventiva decretada contra o jornalista e guarda municipal de Foz do Iguaçu, J.S.B. Ele possui três dependentes menores de idade, especialmente uma neta de 2 anos que está sob sua guarda legal. Foi preso em razão de um vídeo que ele próprio fez na intenção de cobrir a manifestação ocorrida no dia 8 de janeiro em Brasília/DF, que culminou nos atos antidemocráticos. Mesmo que não concordemos com as depredações e atos atentatórios contra a democracia, também não podemos aceitar o descuido na apuração individualizada das condutas. É evidente que tivemos casos de decretações de prisões preventivas em casos desnecessários, sem a demonstração dos requisitos do art. 312 do CPP.
Neste contexto, apenas para ilustrar em mais detalhes, J.S.B. teve sua determinação de prisão preventiva em março de 2023, e cumprida no dia 17/3/23, quando ele se encontrava tranquilamente em casa com sua família, sem qualquer intenção ou ato de fuga. No decreto prisional não foi identificado que ele havia depredado patrimônio público ou integrado associação criminosa, tampouco havia indício de ele ser financiador, influenciador, autor intelectual ou executor de atos golpistas. Da mesma forma, não havia elementos de que ele incitou ou declarou ser favorável a golpe militar. Ou seja, assim como vários outros, foi preso pela simples conduta de "estar" presente circunstancialmente na manifestação, com a presunção de conduta típica.
Agora, justamente para evitar a manutenção de uma prisão inicialmente sem justificativa idônea, é necessária sua rápida revisão para avaliar de forma pormenorizada a presença ou não dos requisitos legais.
Ocorre que em seu caso, assim como em outros, os prazos de revisão foram olimpicamente ignorados. Vejamos os prazos do caso concreto. Foi preso em 17/3/23. Em 30/5/23, a Defesa apresentou o pedido de revogação da prisão, haja vista a iminência de nova decisão. O prazo nonagesimal para revisão se encerraria no dia 15/6/23. Contudo, apenas no dia 7/7/23 sobreveio decisão do ministro relator Alexandre de Moraes para revisar os fundamentos da prisão preventiva, entendendo por mantê-lo preso preventivamente. Ou seja, levaram 22 dias de atraso (ou 112 dias no total) para efetuar a revisão dos fundamentos da prisão.
Neste momento já temos um imbróglio. Quando se inicia o novo prazo de 90 dias para realizar a segunda revisão? Seria da última decisão proferida em atraso (que já prejudicou o investigado)? Ou o mais correto é contar 180 dias (90 + 90) de forma contínua desde o dia da prisão? Se for a primeira opção, contarmos a partir da decisão atrasada da revisão, acumulará a situação de extrema injustiça para o encarcerado. Na ocorrência de novos atrasos, por exemplo, num interregno em que ele deveria receber três decisões de revisão (270 dias = 90 + 90 + 90), que esta seria a intenção originária do legislador, poderá receber, por exemplo, apenas duas revisões (270 = 135 + 135). E assim sucessivamente.
Acontece que esta situação ainda não está sendo enfrentada a contento pelos Tribunais. Após muita pesquisa, identificamos uma decisão que demonstra a forma que nos parece correta dos intervalos de contagem, que se inicia sempre da data da prisão:
"Nos termos do art. 316, parágrafo único, do CPP, caso a indiciada ainda esteja presa cautelarmente, a cada noventa dias, iniciando a contagem a partir da data do cumprimento do mandado de prisão, conclua os autos para que o juiz natural analise de ofício a necessidade de manter, ou não, a medida constritiva" (Proc. Nº 0001689-23.2021.8.27.2716/TO, 1ª Vara Criminal de Dianópolis/TO, juiz Marcio Ricardo Ferreira Machado)
É de extrema importância a análise e pacificação pela jurisprudência deste tema, pois repercute diretamente nos casos de manutenção da prisão preventiva após os noventa dias iniciais. O caso mencionado serve também de exemplo neste ponto, pois ocorreu um duplo atraso na revisão nonagesimal. Eis uma tabela para ilustrar a compreensão:
Com efeito, o desrespeito ao novel prazo estabelecido pela lei 13.964/19 pelo STF é de maior gravidade, pois conforme adiantado, inexiste órgão superior para recorrer, seja para analisar de ofício os requisitos da prisão, seja para determinar que o órgão prolator faça a revisão!
Na mencionada PET 10.993/DF, a Defesa ao perceber que a revisão fora esquecida pelo ministro relator (e não haveria sequer decisão monocrática para interpor agravo regimental), impetrou habeas corpus na tentativa de ao menos o colegiado realizar a revisão ou determinar que o relator o faça (HC 233.738). Contudo, a decisão já era conhecida nestes casos, o STF blinda a decisão-omissão monocrática ao invocar os precedentes de não cabimento do writ (deixando inclusive de pronunciar sobre eventual determinação para análise pelo ministro relator):
"(...) A jurisprudência consolidou-se no sentido de ser incabível ação constitucional que tenha como objeto ato judicial praticado por Juiz do Tribunal no exercício regular de sua função-dever" (...) Pela interpretação prevalecente, estendeu-se também a atos monocráticos dos ministros a aplicação da súmula 606 deste Supremo Tribunal, pela qual "Não cabe habeas corpus originário para o Tribunal Pleno de decisão de Turma, ou do Plenário, proferida em habeas corpus ou no respectivo recurso"
Portanto, nosso pretório excelso, guardião máximo da Constituição Federal, criou uma situação (e chancela) de fazer letra morta a uma norma federal. Uma vez desrespeitado o prazo de revisão por membro do próprio STF, nada pode ser feito – inexiste mecanismo – no ordenamento jurídico brasileiro para fazer valer o direito estabelecido no CPP. Hans Kelsen5 (não só por isso) estaria estarrecido, na medida em que – deveria ser – inerente ao "Direito" um conteúdo coercitivo. Se não tem uma consequência pelo descumprimento de uma norma, seja para o cidadão comum, seja para o próprio magistrado, inexiste Direito.
O mais curioso é que na situação analisada, o investigado foi solto apenas em 29/11/23, próximo de completar o 3º ciclo de revisão, por um fato que já estava presente desde antes do seu primeiro decreto prisional, conforme trechos da decisão nos autos do mencionado processo:
"Considerando a situação trazida aos autos, verifico que, o requerente é responsável legal pela neta, atualmente com 2 anos de idade, de modo que se faz necessária a análise dessa situação em concreto. (...) Os documentos apresentados demonstram que ele é o responsável pelos cuidados da criança. Há, inclusive, precedentes nesse sentido: HC coletivo no 165.704/DF (julgado em 20/10/20), em que foi concedida ordem para determinar a substituição da prisão cautelar dos pais e responsáveis por crianças menores e pessoas com deficiência."
Ou seja, por quais motivos a Justiça demora quase 8 meses para reconhecer que o paciente não poderia ficar em prisão preventiva em razão de um fato existente desde antes ele ser preso?
Agora, embora a violação ocorrida num único caso já é inadmissível o bastante, certo é que estaríamos um pouco menos preocupados se a injustiça fosse isolada na jurisprudência. Porém, não é esta a realidade. Identificamos mais casos análogos de desrespeito ao dispositivo em comento ocorridos na AP 1.055 e Pet. 10.820. Portanto, não negamos a possibilidade do aparecimento de novos ou antigos casos semelhantes. O alerta está feito: A porteira para mudar o caminho da atual jurisprudência (de obrigatoriedade da revisão em 90 dias) já foi aberta. O que mais é necessário para seguir neste retrocesso do posicionamento legal, e gerar o esquecimento em massa do dever de reavaliação do prazo da prisão preventiva?
Ainda assim, esperamos fortemente que o dia de 20/11/23 não tenha que se repetir para mudarmos nossa cultura de cegueira deliberada aos encarcerados. Cegueira essa que culmina na morte por desídia e cumplicidade da Justiça. Dia 20/11/23 marcado pelo falecimento de Cleriston Pereira da Cunha dentro do Complexo Penitenciário da Papuda em Brasília, enquanto ele aguardava o cumprimento do art. 316, parágrafo único do CPP. Há meses no aguardo da revisão. Mesmo com pedidos reiterados, gritando a defesa nos autos para ser escutada sobre um fato que igualmente já estava presente antes mesmo de sua prisão. Ora, lembremos que a situação de doença que acarretou no falecimento dele já era conhecida pelo STF, porém relegada. Em 26/6/23, seu advogado fez questão de registrar em ata de audiência: "O advogado requereu que se oficie ao estabelecimento prisional a fim de que dispense maior atenção aos cuidados com a saúde do denunciado". Mesmo com parecer favorável do Ministério Público pela soltura desde 1/9/23. Mesmo com ingresso de HC 225.025 em 16/2/23, pelo qual o ministro relator André Mendonça se declarou ciente de que: "Na petição inicial do habeas corpus, o impetrante sustenta a ilegalidade da custódia (...) Salienta ser o paciente acometido por problemas de saúde (quadro de vasculite de múltiplos vasos e miosite secundária à covid-19), sendo usuário de medicamentos." Porém, nada disso foi considerado. Mas prevaleceu a atração absoluta do não conhecimento do HC pela invocação da súmula 606. Por mais ilícita que fosse a prisão, nada do que foi argumentado e comprovado foi capaz de movimentar o Poder Judiciário a simplesmente apresentar fundamentação sobre a real necessidade de manter um cidadão doente preso preventivamente, ou apenas soltá-lo como era de seu Direito. Infelizmente, a morosidade e a morte restaram vencedoras.
Por todas essas razões que nós, operadores do direito, precisamos nos debruçar sobre o debate aqui brevemente apresentado, a fim de buscar soluções para amenizar as contínuas violações de direitos e garantias legais. Ao menos se fosse afastada a (indevida) ampliação da súmula 606/STF para os casos de admitir sim o cabimento e julgamento de habeas corpus contra atos (e omissões) monocráticas de ministro relator, já seria um primeiro passo.
Quem sabe um dia não será mais preciso escrever tantos livros sobre os sofrimentos e mortes causadas pela espada da Justiça que recai justamente contra aqueles que deveria proteger. "Cem dias de reclusão, sem palavras para explicar. A angústia que eu sinto, irmão. Como é difícil aguardar, de novo o renascimento que se chama alvará." 6
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1. Moncks, Mauro. Eu te amo, liberdade. Brasília: Thesaurus, 2015. p. 25, 119.
2. O mencionado “dever” inclusive foi reforçado na jurisprudência do STF, quando do julgamento das ADIs 6581 e 6582 pelo Plenário, em 10/03/2022, in verbis: “CONSTITUCIONAL E DIREITO PROCESSUAL PENAL. ART. 316, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI 13.964/2019. DEVER DO MAGISTRADO DE REVISAR A NECESSIDADE DE MANUTENÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA A CADA NOVENTA DIAS. INOBSERVÂNCIA QUE NÃO ACARRETA A REVOGAÇÃO AUTOMÁTICA DA PRISÃO. PROVOCAÇÃO DO JUÍZO COMPETENTE PARA REAVALIAR A LEGALIDADE E A ATUALIDADE DE SEUS FUNDAMENTOS. OBRIGATORIEDADE DA REAVALIAÇÃO PERIÓDICA QUE SE APLICA ATÉ O ENCERRAMENTO DA COGNIÇÃO PLENA PELO TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. APLICABILIDADE NAS HIPÓTESES DE PRERROGATIVA DE FORO. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO. PROCEDÊNCIA PARCIAL [...]”.
3. "Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado."
4. Exemplo de prazos impróprios são aqueles direcionados aos atos praticados pelo Juiz, porém em caso de escoamento do prazo sem a prática do ato, não geram consequência ao processo, e serão considerados válidos. Vejamos os prazos para proferir sentença ou agendar audiência no Código de Processo Penal. “Art. 400. Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido (...)”. “Art. 403. Não havendo requerimento de diligências, ou sendo indeferido, serão oferecidas alegações finais orais por 20 (vinte) minutos, respectivamente, pela acusação e pela defesa, prorrogáveis por mais 10 (dez), proferindo o juiz, a seguir, sentença.” Da mesma forma, exemplo no Código de Processo Civil os prazos impróprios que aduz o art. 226: “O juiz proferirá: I - os despachos no prazo de 5 (cinco) dias; II - as decisões interlocutórias no prazo de 10 (dez) dias; III - as sentenças no prazo de 30 (trinta) dias.” Ou, ainda, o prazo de 60 (sessenta) dias para realizar audiência fixado no art. 400 do Código de Processo Penal.
5. O Direito é uma ordem coativa, não no sentido de que ele - ou, mais rigorosamente, a sua representação - produz coação psíquica; mas, no sentido de que estatui atos de coação, designadamente a privação coercitiva da vida, da liberdade, de bens econômicos e outros, como consequência dos pressupostos por ele estabelecidos. Teoria Pura do Direito. (...) Costuma caracterizar-se o Direito como ordem coativa, dizendo que o Direito prescreve uma determinada conduta humana sob “cominação” de atos coercitivos, isto é, de determinados males, como a privação da vida, da liberdade, da propriedade e outros. (...). Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 31. p. 25.
6. Moncks, Mauro. Eu te amo, liberdade. Brasília: Thesaurus, 2015. p. 38.