Alguns textos escritos por advogados sobre órgãos do Poder Judiciário tendem ao maniqueísmo. Ou se prestam à bajulação ou (terminado o julgamento desfavorável à clientela objeto do mandato) serve como um ponto de catarse para o arremesso simbólico de tomates. Não é esta a corrente proposta.
No ambiente dos direitos intelectuais, por exemplo, um marco fundamental pode ser estabelecido na Jurisdição Federal com a especialização das varas Federais do Rio de Janeiro e, ulteriormente, com a criação de duas turmas especializadas no mesmo TRF-2. Por sua vez, na Jurisdição Estadual de São Paulo o mesmo pode ser dito com a constituição das Varas Empresariais e de Conflitos de Arbitragem em primeiro grau e com as Câmaras Reservadas de Direito Empresarial em grau de recurso.
Como se pode imaginar, não é o mero advento da decisão político-jurídica da especialização que fará de um profissional do Direito experto do dia para a noite. Se eficácia social1 e normativa se confundissem, com a vigência de uma lei utópica todos, imediatamente, seriam obrigados a serem felizes! Há sempre o “Direito de resistência”2.
A especialização é, precisamente, um processo, um caminho, a edificação de uma tradição. Para que a especialização seja mais do que uma ideia, a reiteração do ato de julgar, a manutenção das pessoas que compõem o grupo e a edificação de um discurso homogêneo, coeso e convincente são necessários. Se as peças são rapidamente trocadas, se os precedentes não são conhecidos e seguidos3 ou se os sujeitos não permanecem, então, a dita especialização não passará de um projeto.
Quando se enxerga o maior TJ do Brasil, um dos maiores desafios à política Judiciária é a organização de produtividade. Como fazer para impedir que o estoque de processos não dirimidos aumente? Como diminuir os acervos pendentes? Como não afetar a qualidade da decisão, a oitiva dos atores judiciais e o devido processo legal substantivo pelo aumento quantitativo de decisões? Não há, definitivamente, respostas a quaisquer de tais perguntas sem algum grau de repercussão em toda a sociedade, nos magistrados e nos auxiliares do juízo.
O TJ/SP, por sua vez, ousou nos últimos anos ao implementar a especialização efetiva de seus juízos singulares e colegiados em Direito Comercial. Com significativa estabilidade nos Órgãos antes referenciados, a heurística entre colegas da advocacia é positiva: vencem-se e perdem-se causas, mas com boa técnica, fundamentações consistentes, votos com embasamento teórico denso e respeito à jurisprudência. A maximização qualitativa das decisões tem trazido previsibilidade (segurança jurídica4), sem prejuízo da paciência e do bom ânimo dos Órgãos durante as sessões de julgamento e audiências para despachos de memoriais.
Tudo isso ocorre com votações unânimes ou divergências salutares e inteligentes munidas de elegância. Como um dos “temperos” do sucesso da experiência da especialização dos Órgãos colegiados, há bastante divergência ideológica e de vertentes doutrinárias, resultando na riqueza de uma síntese do justo meio. Não à toa, os acórdãos produzidos são citados em livros e nas aulas de Direitos Intelectuais.
De outro lado, recentemente vieram à tona críticas internas quanto ao modelo de especialização5: (1) Deveriam os integrantes das Câmaras Reservadas acumular funções em Câmaras de Direito Privado, por exemplo? (2) A competência das Câmaras Reservadas de Direito Empresarial deveria ser aumentada, de modo a gerar um acervo processual maior? (3) Novas Câmaras Reservadas de Direito Empresarial devem ser criadas, de modo a pulverizar a densidade judicante daquelas já existentes? Na opinião deste causídico, as respostas a tais três questões são negativas.
Se (1) fosse imposto ao magistrado de segundo grau, a ocupação simultânea em duas ou mais Câmaras, o próprio fenômeno da especialização seria comprometido. Imagine-se que ao invés de concentrar análises em feitos sobre recuperação judicial, contrafação de marcas ou concorrência desleal, a mesma julgadora tivesse que seguir dirimindo conflitos de Direito de Família e locações residenciais? É possível, mesmo, ser “especialista-generalista”? Entende-se que não.
Ainda quanto a tal ponto, se fosse obrigatório o acúmulo de “cadeiras” em uma pluralidade de Câmaras, afora amor à pátria e um excesso de talento, quem seria estimulado a exercer a especialização em detrimento da própria saúde, sono e vida privada? Note-se que as Câmaras Reservadas de Direito Empresarial são aquelas, particularmente, munidas de uma exigência de interdisciplinaridade6 entre Direito e Economia – o que exige burilamento e uma produção no varejo (e não no atacado).
No tocante ao (2) com eventual expansão do conteúdo judicante, mesmo sem a (1) cumulação de Câmaras, resultado parecido seria alcançado em termos de consequência. O desafio dos integrantes das Câmaras Especializadas é manter a direção de aprofundamento e de verticalização nas minúcias do direito empresarial. Ainda que debates sobre a Lei Ferrari ou sobre Sociedades Anônimas de Futebol possam ter alguma homogeneidade temática com a competência originária de tais Câmaras, a inclusão de novos conteúdos temáticos tenderia a diminuir a evolução positiva do que já foi feito. Todo novo tema exige anos de aprofundamento para que se vá além das margens primígenas ou propedêuticas. Na mesma toada, sendo o tempo um bem escasso e infungível, cada dia dedicado ao conteúdo novo é um dia sonegado às competências anteriores.
Quanto a última (3) questão, se o aumento de Órgãos é pauta tida como primordial, bem-vinda seria a majoração do número de desembargadores de toda a Corte Paulista e não apenas a majoração do número de Câmaras Reservadas, sem vicissitude numérica dos Órgãos judicantes. Com o maior acervo do país e portador de boa saúde financeira (pela taxa judiciária) andaria bem o TJ/SP em debater a majoração numérica de seus magistrados, mantendo a qualidade conhecida de seus concursos (internos e para novos ingressantes).
Não é, contudo, o caso de duplicação do número de Câmaras Reservadas, pois até a parametrização de especialização das eventuais vindouras com as atuais tal poderia afetar o grau de excelência ora conhecida.
Voltando ao ambiente da propriedade intelectual, o caso do TRF-2 parece estar na contramão de eventual vicissitude no TJ/SP. Desde a sua constituição as turmas Federais especializadas de tal sodalício sempre cumularam as competências do Direito Penal, Direitos Intelectuais e Direito Previdenciário. Entre tal competência tríplice, os casos de Direito Previdenciário eram ampla maioria. No ocaso do ano passado, contudo, o TRF-2 entabulou a resolução 70/23 retirando o Direito Previdenciário da competência da 1ª e 2ª turmas mantendo-se, apenas, o Direito Penal e os Direitos Intelectuais.
Qual a razão de tal decisão? Ainda que as causas de Direito Previdenciário constituíssem o maior quantitativo de processos; aquelas pertinentes ao Direito Penal e Propriedade Intelectual exigem uma produção artesanal e sofisticada de decisões. No que é manifestado pelos judicantes, é mais frequente o pedido de audiências para despachar memoriais, bem como a quantidade de sustentações orais.
Ao que tudo indica, se o Direito deve ser visto como um todo, e não “aos pedaços”7, deve-se ter cautela em equalizar todos os tipos de causa. O êxito em se julgar bem costuma discrepar da noção de “comida a quilo”, da produção em massa ou do mote “quanto mais melhor”. Que a história de sucesso da especialização das Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do TJ/SP siga sem rupturas.
1 BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. Limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 9ª Edição, Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 82.
2 THOREAU, Henry David. Desobediência Civil. Tradução de Sérgio Karam. Porto Alegre: L &M, 2011, p. 14.
3 CARDOZO, Benjamin. N. A natureza do Processo Judicial. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 110.
4 Acerca de segurança pela calculabilidade vide: ÁVILA, Humberto Bergmann. Constituição, Liberdade e Interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 19.
5 Entre todos, vide o resumo oferecido em https://www.conjur.com.br/2024-abr-20/fdusp-vai-debater-especializacao-da-justica-em-direito-empresarial/ .
6 Sobre a necessidade do domínio de diversas matérias para bem exercer o direito vide POSNER, Richard Allen. A problemática da Teoria Moral e Jurídica. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2012, p. VIII.
7 Sobre a malévola interpretação “em tiras” do Direito vide GRAU, Eros Roberto. Direito Penal – Sob a Prestação Jurisdicional. Curitiba: Malheiros, 2010, p. 37.