O Direito Médico tem crescido de forma exponencial entre advogados, porém, infelizmente, não vemos o mesmo progresso e desenvolvimento da especialidade no campo de atuação das demais profissões jurídicas. Apesar do presente texto não buscar discutir um caso em específico, é incontroverso que a recente prisão de um médico por exercício ilegal da profissão revela o véu da ignorância que cobre determinados profissionais do Direito em relação ao Direito Médico.1
O art. 17 da lei 3.268/57 estabelece que:
Art. 17. Os médicos só poderão exercer legalmente a medicina, em qualquer de seus ramos ou especialidades, após o prévio registro de seus títulos, diplomas, certificados ou cartas no Ministério da Educação e Cultura e de sua inscrição no Conselho Regional de Medicina, sob cuja jurisdição se achar o local de sua atividade.
Nesse sentido, os pareceres do Conselho Federal de Medicina são categóricos:
Parecer CFM 9/16
O médico devidamente registrado no CRM - Conselho Regional de Medicina da jurisdição na qual atua está apto a exercer a profissão em toda sua plenitude...
Parecer CFM 21/10
O médico devidamente inscrito no CRM está apto ao exercício legal da medicina, em qualquer de seus ramos...
Parecer CFM 17/04
Os CRMs não exigem que um médico seja especialista para trabalhar em qualquer ramo da Medicina, podendo exercê-la em sua plenitude nas mais diversas áreas, desde que se responsabilize por seus atos...
Além disso, o referido entendimento possui eco na resolução CFM 1.627/01:
O exercício dos atos médicos é função privativa de quem é formado em Medicina em estabelecimento educacional oficial ou oficialmente reconhecido, estando, portanto, legalmente capacitado. Ademais, exige-se que esteja formalmente habilitado pelo Conselho Regional de Medicina de seu estado, e registrado no organismo competente de vigilância sanitária do sistema de saúde a que estiver vinculado.
Não é possível ser meio médico. Nem alguém pode ser uma fração qualquer de um médico. O especialista não é nem pode ser um pedaço de médico. É um médico inteiro, que atua com mais desembaraço e maior capacidade em determinada área da Medicina. A despeito disso nem sempre ser verdadeiro na prática, a especialidade deve enriquecer o médico e não empobrecê-lo em sua capacidade profissional, limitando-o.
Compreender que um médico precisa ser especialista para praticar determinado ato médico representaria, em última instância, reduzir a liberdade profissional dos “bacharéis em Medicina”. Registre-se que o uso da errônea expressão “bacharéis” é proposital, pois a lei 12.842 estabelece que o graduado em Medicina deve ser chamado de Médico, e apenas isso. Não existe médico habilitado a exercer apenas a especialidade X, Y ou Z.
De acordo com a última demografia médica publicada pelo CFM, o Brasil possui 598.573 médicos inscritos, porém apenas 323.249 (trezentos e vinte e três mil, duzentos e quarenta e nove) profissionais são especialistas.2
Se, para exercer a profissão, houver a necessidade de ser especialista, os 46% dos médicos brasileiros seriam de um vazio profissional absurdo, pois não poderiam atuar em nenhuma das 55 especialidades e 59 áreas de atuação profissional.3 Se o médico não especialista não pode atuar em nenhuma especialidade ou área de atuação, nada sobrará em termos de atuação profissional. Depois de 06 sacrificados anos na graduação de Medicina, o médico seria apenas o titular de um papel de “médico” que nada pode fazer profissionalmente.
A despeito dos números assustadores observados no Brasil de mais de 02 casos por dia de exercício ilegal da profissão, conforme dados do Conselho Federal de Medicina, este crime é praticado por não médicos (não graduados em Medicina) que passam a exercer a profissão médica.4
O exercício da Medicina de forma irregular não se confunde com o exercício ilegal. Enquanto o primeiro está exclusivamente no campo administrativo e cível, o segundo constitui crime. Para fins didáticos, um médico devidamente registrado não pode divulgar que é especialista em determinada área sem o devido RQE - Registro de Qualificação de Especialidade. Ou seja, regra geral, o RQE é a autorização administrativa de divulgação da condição de especialista. Ocorre que o direito de se divulgar especialista não se confunde com o direito de exercer uma especialidade. Todo médico pode exercer uma especialidade, mas nem todo médico pode divulgar a especialidade. São coisas distintas que, infelizmente, os não letrados no Direito Médico não conseguem compreender.
De igual forma, o não especialista possui algumas restrições como assumir a Direção Técnica de serviço especializado, conforme previsto na Resolução CFM 2007/2013, e o Responsável Técnico da UTI, UTI Pediátrica e UTI Neonatal deve ser especialista na respectiva área, conforme RDC 7/10 da ANVISA.
Ocorre que todas as eventuais infrações administrativas devem ser apuradas na esfera competente, porém não podem, jamais, ser equiparadas à infração penal.
Se a norma penal busca tutelar a saúde pública – por isso que o exercício ilegal da Medicina, Odontologia e Farmácia são crimes e o exercício das demais profissões apenas contravenções penais, conforme art. 47 da lei de contravenções penais – e o médico pode exercer a profissão em sua completude, independente de ser especialista ou não, não há nenhum risco à saúde pública nas hipóteses de não especialista atuando em área típica de determinada especialidade, o que reforça a ausência de lesão à bem jurídico tutelado criminalmente. O perigo abstrato previsto pela norma inexiste, justamente pela ausência de perigo decorrente da autorização legal para exercício pleno.
Em tempos de devido processo legal, causa estranheza e espanto os pré-julgamentos realizados por determinados operadores do Direito e a ausência de uma busca por uma compreensão das particularidades de cada uma das novas áreas do Direito. A título reflexivo, talvez seja o momento de uma revisão dos conteúdos exigidos na formação dos juízes, delegados e promotores, pois o Direito não pode ser reduzido às disciplinas tradicionais, como se ainda estivéssemos no séc. XX.
1 Disponível em: https://cremepa.org.br/noticias/nota-oficial/ e https://sindmepa.org.br/2024/04/prisao-de-medico-em-terra-santa-foi-arbitraria/
2 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Demografia Médica. Disponível em: https://observatorio.cfm.org.br/demografia/dashboard/. Acesso em 17 de abr. 2024.
3 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 2330.2023. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2023/2330. Acesso em 17 de abr. 2024
4 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Brasil registra dois crimes de exercício ilegal da medicina por dia, aponta levantamento do CFM. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/noticias/brasil-registra-dois-crimes-de-exercicio-ilegal-da-medicina-por-dia-aponta-levantamento-do-cfm/. Acesso em 17 abr. 2024.