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A repulsa do STF pelo sistema acusatório e democrático

A lei 13.964/19 alterou o CPP, CP e LEP, contestada por instituições que impetraram ADIs no STF, incluindo o art. 3º-A do CPP, que reforça a estrutura acusatória do processo penal, em consonância com a CR/88.

22/4/2024

A lei 13.964/19 fez diversas alterações no CPP, CP e na LEP. Isto é, na legislação criminal como um todo. Contudo, algumas instituições (AMB, AJUFE, CONAMP, PODEMOS e CIDADANIA e o PSL) não concordaram com determinados dispositivos e impetram ADI’S (6.298, 6.299, 6.300 e 6.305) junto ao STF, órgão judicial competente para julgar esse tipo de ação. 

Dentre os dispositivos impugnados, está o art. 3º-A do CPP, o qual será objeto deste breve ensaio. Sua redação é a seguinte: O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.

O dispositivo em apreço nada mais fez do que inserir no CPP o que já consta da CR/88, como pode ser analisado no art. 129, I, onde se impõe a órgão diferente do Judiciário a função de acusar em processos criminais. Portanto, ao ministério Público cabe exercer a acusação quando presente ação penal de iniciativa pública. 

Essa inserção do sistema acusatório teve um objetivo claro, pois que o próprio art. 3º-A complementa dispondo que são vedadas a iniciativa do juiz na fase investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação. Como pode se inferir, a novel legislação obsta atuação de ofício do juiz em termos de angariar elementos de informação na investigação preliminar, o que já era a prática, mas mais do que isso, impede que ele -juiz- se substitua ao acusador produzindo prova durante o tramitar do processo. 

Diante desse novo cenário, portanto, diversos dispositivos do CPP que permitem atuação de ofício do juiz durante a fase processual da persecução penal estariam revogados tacitamente. Não olvidando que já eram inconstitucionais desde a promulgação da CR/88, conforme acima demonstrado. Para ilustrar, ficaria vedado ao juiz: Determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante (art. 156, II); ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes, se julgar necessário (art. 209); sobre os pontos não esclarecidos, complementar a inquirição (art. 212); e com maior destaque para  a impossibilidade de proferir sentença condenatória, nos crimes de ação penal de iniciativa pública, quando o ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada (art. 385). 

No entanto, o STF deturpou a redação do art. 3º-A em destaque para manter vigente e válida todas essas normas com ranço autoritário, com exceção dos ministros Zanin e Fachin. A interpretação errada do que seria o sistema acusatório decorre da afirmação de que ele se satisfaz apenas pela separação formal das funções de acusar e julgar, o que permitiria ao juiz produzir prova de ofício, ainda que de forma complementar e para dirimir dúvidas sobre ponto que entenda relevante. As outras características insertas no sistema, como oralidade e publicidade, têm importâncias acentuadas, mas sempre ligadas ao atuar da jurisdição, tendo como princípio supremo a imparcialidade do julgador, nas palavras do professor Aury Lopes Jr. 

O mestre dos mestres Jacinto Coutinho, estudioso que é da linha de Franco Cordero, nos ensina toda história da criação daquilo que chamamos de sistema acusatório, e que também se espraiou pela Europa Continental, que surge com Napoleão e seu Código de Processo Penal de 1808. O imperador e sua forma de governar eram incompatíveis com o sistema inglês, fortemente democrático, de modo que ao juiz/inquisidor caberia exercer o papel de gestor das provas, mas encontrou forte resistência no Conselho de Estado. Foi quando um conselheiro, Jean-Jacques-Régis de Cambacérès, de forma brilhante (inegável), teve a ideia de criar um procedimento com duas fases, sendo uma preliminar, conduzida por um inquisidor – juizado de instrução-; outra, que seria a processual propriamente dita – fase de julgamento , mas que deixaria de ser acusatório, apenas tendo a aparência de sê-lo. Engenhosidade chamada de monstro de duas cabeças por Cordero.

O Código Italiano (Codice Rocco) teve inspiração direta do Código de Napoleão, que, por sua vez, inspirou o nosso CPP em vigor. Portanto, a lei processual penal brasileira, que é de 1941, tem em seu DNA o sistema inquisitorial advindo do Code Napoleón. Todas as alterações feitas no CPP ao longo dos anos não serviram para retirar esse ranço inquisitório, mas, contrariamente, enaltecê-lo. 

O dito processo misto nada mais é do que inquisitório, pois que a posição do juiz favorece a acusação quando busca provas, isto é, age de ofício na instrução, quadro piorado quando ainda tenha atuado na investigação preliminar decretando prisão preventiva, interceptação telefônica, etc. Num sistema para que seja chamado de acusatório a gestão das provas deve estar nas mãos das partes, acusador e defesa, o juiz equidistante para julgar com a devida imparcialidade. O quadro fecha pelo respeito ao devido processo legal, ampla defesa e contraditório, oralidade, publicidade, vedação de provas ilícitas, presunção de inocência, trânsito em julgado (sem prisão como antecipação da pena). 

Como pode ser observado, a estrutura condiciona a forma da produção probatória. O produto desta, por sua vez, norteia o decreto judicial, podendo ser absolutório ou condenatório. A prova para ser válida deve ser submetida ao procedimento que permita sua refutação, com igualdade de tratamento e oportunidades, mas não só, permitindo a defesa de produzi-la também. 

O crime é reconstituído no processo, uma vez ser um fato histórico. Isso ocorre através dos elementos da investigação submetidos ao contraditório, tornando-se prova. Desta o juiz forma sua convicção, que jamais será do todo. Logo, a verdade do processo é sempre parcial. Então, com a maestria que lhe é peculiar, Jacinto Coutinho nos diz que a prova, enquanto meio, insere no processo um conhecimento sobre o crime, passado que é, apenas vindo como memória e por meio da linguagem. Complementa dizendo: "Tal estrutura, visivelmente subjetiva, é correta só em parte, ou seja, naquilo em que o conhecimento veio como prova, sendo certo que outros fatores, arredios ao processo, também formam tal convicção". 

O legislador, pela novel legislação, buscou pôr o processo penal brasileiro nos trilhos certo, retirando o juiz da arena da produção probatória, apenas exercendo sua função, que é julgar. Ainda tenta-se argumentar que a atuação judicial pode ser para ambos os lados, mas olvida-se da presunção de inocência, onde tem um espectro em que a dúvida favorece ao réu. Mantém-se pulsante dispositivo como o art. 385 do CPP, que permite ao juiz condenar mesmo com requerimento de absolvição do Parquet, até mesmo reconhecer agravantes não alegadas. Esse artigo foi alvo de uma ADPF (1122), cuja iniciativa partiu da ANACRIM. Espera-se provimento, ressaltando o sistema acusatório.     

A título de conclusão, o sistema misto é uma farsa, pois inquisitório é. A estrutura deve permitir ao juiz da instrução originalidade cognitiva (tema do próximo ensaio), além de vedar sua participação ativa na produção probatória, deixar com as partes – acusação e defesa – produzi-la, oral e publicamente sob o crivo do contraditório e ampla defesa.

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LOPES, Aury Jr. Direito processual penal. – 15. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 62

JARDIM, Afrânio Silva ... [et al.]; organização SAMPAIO, Denis. Manual do tribunal do júri. – 2. ed. – Florianópolis [SC]: Emais, 2023. p. 37-45

Michel França
Advogado Criminalista. Especialista em Direito Processual Penal. Professor e Palestrante.

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