Em ano de eleição, muitos, já desiludidos com a política, não vislumbram motivos para votarem. Surgem então consequências práticas para os faltosos. Todavia, essas consequências têm incidências distintas, cuja variação possui como marco divisor aqueles que possuem vínculo direto com o Estado e aqueles que não.
A controvérsia cinge-se em torno de uma das sanções previstas no art. 7° do Código Eleitoral. Como é de conhecimento popular, na hipótese de não comparecimento no dia da votação, surge para o cidadão a necessidade de justificar sua ausência ou pagar uma multa no valor de R$3,50. Em alguns casos, no entanto, esta penalidade, dita como “irrisória”, acaba ganhando contornos especiais. Nesse sentido, o cerne da presente pesquisa consiste em analisar, à luz da CF/88, uma das penalidades, qual seja, a impossibilidade de o agente público que não votar e não justificar receber salário.
O art. 7º, caput do Código Eleitoral, contém a clássica multa por todos conhecida para aqueles que não compareceram às urnas ou não se justificaram por mais de uma eleição. Além da multa, o mesmo artigo, em seu parágrafo primeiro e incisos dispõe de uma série de penalidades em razão do mesmo fato, dentre elas: (a) impedimento de retirar passaporte; (b) cancelamento de título eleitoral; (c) impedimento de renovação de matrícula em estabelecimento de ensino oficial ou fiscalizado pelo poder público; (c) impossibilidade de receber salário caso seja servidor público entre outras.
As três primeiras sanções se aplicam a todos que não votarem e não justificarem ou não efetuarem o pagamento da multa por três eleições consecutivas. Lado outro, quanto à penalidade que atinge agentes públicos, para irradiar seus efeitos, basta que estes não votem ou não justifiquem por uma eleição. Diante disso, será analisado a (in) constitucionalidade da respectiva punição aos agentes públicos que não comparecerem às urnas ou não justificarem a ausência.
Inicialmente, insta consignar que a referida penalidade não se sustenta sob uma ótica da proporcionalidade, entendida como um princípio (comumente adotado), ou como uma técnica de ponderação, como proposto por Alexy.
Com efeito, analisando a norma na perspectiva do princípio da proporcionalidade, é possível aferir que o art. 7º, § 1.º, inciso II, do Código Eleitoral, não revela o bem que está sendo tutelado. De fato, fazendo uma analogia simples com o crime de furto, onde se discute a correta adequação dos meios para alcançar o fim, é facilmente perceptível o bem tutelado, qual seja, a propriedade. Entretanto, não é possível identificar qual seria o escopo da norma contida no art. 7º, § 1.º, inciso II, do Código Eleitoral.
Acaso o exemplo de uma norma penal possa parecer desconfortável, usemos como modelo uma norma de natureza administrativa, como uma infração de trânsito. Aqui cabem os mesmos debates, sendo igualmente visível o bem protegido: a segurança coletiva.
Observa-se que as discussões sempre estão em torno da adequação entre fins e meios, ou seja, basicamente se discute: existe uma correta adequação entre os meios utilizados para a proteção do bem? Na norma sob análise, além de não ser possível aferir a correta adequação entre os meios utilizados para a proteção do bem, é igualmente impossível perceber qual o bem a ser tutelado.
Poder-se-á defender que o Estado não teria poder de ingerência contra particulares do modo que possui com agentes públicos. Contudo, esta não é uma objeção razoável, na medida que ele, o Estado, possui amplo poder de ação em bens privados. Deveras, o Estado pode, por exemplo, em face dos particulares, promover restrições em veículos, bloqueio de CNH, penhora em conta para garantir adimplementos de dívidas.
Nesse sentido, seria plenamente possível ao Estado estender a penalidade para os demais cidadãos (não agentes públicos). Logo, o teste para casos semelhantes revela a fragilidade do dispositivo numa perspectiva constitucional, sobretudo se levarmos em consideração o princípio da igualdade, disposto no art. 5.º, caput, da Carta Magna.
O professor Lenio Streck já realizou o teste da equiparação quando analisou o controverso favor legal concedido pelo legislador na figura do chamado “tráfico privilegiado”. Na oportunidade, o renomeado jurista formulou a seguinte indagação: “Ainda na mesma linha, considerando-se o princípio da igualdade, a pergunta que deve necessariamente ser feita é: por que não aplicar o favor legal aos demais crimes hediondos? E, melhor ainda, por que não aplicar esse favor legal para aqueles condenados por crimes não hediondos?”1
Outro argumento favorável à manutenção da norma ora analisada seria o fato que agentes públicos, supostamente, teriam um maior compromisso com os deveres da cidadania. Assim, caso não exercessem o direito ao voto, seria justo que efetuassem o pagamento da multa.
O argumento supramencionado, contudo, também não subsiste quando analisado à luz da isonomia. O sufrágio realmente se enquadra nos atos de cidadania e, naturalmente, é exigido maior grau de comprometimento por parte de servidores públicos em questões correlatas ao interesse de toda a sociedade, tal como uma eleição de representantes do povo. Ocorre, todavia, que o legislador constituinte optou por dizer que o voto tem o mesmo valor para todos, senão vejamos a clareza do disposto no art. 14°, caput, da Carta Magna: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:".
A questão deve ser enfrentada por intermédio de um raciocínio lógico-jurídico. Por certo, ainda que se considere a multa para se proteger algum bem e, nesta hipótese, estaria justificada a constrição salarial, não seria justo que a respectiva constrição se limitasse apenas a um grupo, qual seja, servidores públicos. De fato, partindo-se de uma hermenêutica constitucional, a multa, caso fundamentada com preceitos existentes no ordenamento jurídico pátrio, deveria se estender a todos. Do contrário, seria conferir uma proteção deficiente para o que se buscaria proteger.
Neste contexto, não é possível conceder legitimidade aos argumentos favoráveis à defesa da multa para apenas um grupo. Com efeito, observando-se os princípios constitucionais, uma solução seria a imposição da multa a todos, sem distinção. Do contrário, seria assumir que os votos de agentes públicos teriam um peso especial em comparação aos votos dos demais cidadãos, esbarrando assim na previsão constitucional.
Outro aspecto contrário à manutenção da penalidade de retenção salarial consiste no fato de que tal sanção gera uma inovação no ordenamento jurídico. Deveras, não existe amparo para tal medida quando analisada na perspectiva do modelo constitucional do processo. Isto porque a multa é imposta sem o devido processo legal, pressuposto básico do ordenamento jurídico.
É importante consignar que o ordenamento jurídico pátrio reconhece o instituto da constrição salarial, deste que respeitados, em síntese, os seguintes requisitos: (i) devido processo legal; (ii) limite de penhora equivalente ao máximo de 30% dos vencimentos2; (iii) o valor penhorado se incorpora ao patrimônio do legítimo credor. No entanto, como visto, o art. 7º, inciso II, do Código Eleitoral deixa de observar quaisquer dos requisitos retromencionados, razão pela qual não subsiste, como dito, ao modelo de processo garantido pela Constituição.
Revela-se, ainda, inconstitucional a penalidade por promover uma espécie de discriminação às avessas, visto que o ordenamento jurídico brasileiro proíbe privilegiar alguém puramente em razão de seu cargo, a exemplo da isonomia tributária.
O raciocínio contrário é valido, como não é permitido beneficiar alguém puramente em razão da função que exerce, seria possível descriminar de modo prejudicial, também em razão do cargo? Seguramente não. Logo, a medida fere de morte a isonomia, pois milhares de cidadãos se enquadram na mesma ação, não pagam a multa ou não justificam. Portanto, não é crível que apenas um grupo determinado de indivíduos sofra as referidas penalizações.
Para visualizarmos a inconstitucionalidade da norma, basta imaginarmos a questão ao avesso. Ou seja, suponha-se que todos os cidadãos devessem justificar suas ausências ou pagar a multa em caso de ausência nas eleições, sob pena de constrição salarial, com exceção dos servidores públicos. Seria legitimo? Não!
É importante consignar que a norma ora analisada é anterior à Constituição de 1988. De fato, o Código Eleitoral foi formulado em 1965 e não foram observados os princípios da democrática Constituição de 1988. Dessa forma, a norma merece passar por uma filtragem constitucional para se adaptar às garantias da atual Constituição. Com efeito, a hermenêutica constitucional veda “restrições casuísticas”, sobre as quais Gilmar Mendes assim discorre:
“Em outros termos, as restrições aos direitos individuais devem ser estabelecidas por leis que atendam aos requisitos da generalidade e da abstração, evitando, assim, tanto a violação do princípio da igualdade material quanto a possibilidade de que, por meio de leis individuais e concretas, o legislador acabe por editar autênticos atos administrativos”3
Para melhor entendermos a questão, necessário se faz uma breve incursão na textualidade do 7º, § 1.º, inciso II do Código Eleitoral: “(impedimento) receber vencimentos, remuneração, salário ou proventos de função ou emprego público, autárquico ou paraestatal, bem como fundações governamentais, empresas, institutos e sociedades de qualquer natureza, mantidas ou subvencionadas pelo governo ou que exerçam serviço público delegado, correspondentes ao segundo mês subsequente ao da eleição.”
Um olhar destituído de malícia pode não perceber a ocorrência do casuísmo. Porém, não deixemos a ausência de evidências semânticas nos enganar. O casuísmo não raras vezes está oculto, contudo, não deixa de existir. Em obra primorosa sobre o princípio da igualdade, Celso Antônio Bandeira de Mello já alertou:
“Poder-se-ia supor, em exame perfunctório, que, para esquivar-se a tal coima, bastaria formular a lei em termos aparentemente gerais e abstratos, de sorte que sua dicção em teor não individualizado nem concreto servir-lhe-ia como garante de lisura jurídica, conquanto colhesse agora e sempre um único destinatário. Não é assim, contudo. Uma norma ou um princípio jurídico podem ser afrontados tanto à força aberta como à capucha. No primeiro caso expõe-se ousadamente à repulsa; no segundo, por ser mais sutil, não é menos censurável”4
O ilustre jurista demonstra os dois aspectos em que uma norma pode incorrer em violação à isonomia: (i) de modo flagrante “Uma norma ou um princípio jurídico podem ser afrontados tanto à força aberta”; (ii) o outro aspecto ocorre de modo velado “como à capucha”, aqui é chamada atenção para uma análise dos efeitos substanciais do dispositivo, ou seja, aqueles concretos que escapam do mero texto.
Nesses casos, assim como em outras restrições previstas, a sanção irradia seus efeitos em indivíduos que possuam ou venham a possuir algum vínculo com o poder público. Embora o número de pessoas que pratiquem o mesmo ato não seja restrito apenas aos agentes públicos.
Há uma última ideia que defende a continuidade das sanções, e que merece ser analisada. Tal corrente de pensamento se pauta na pouca incidência dos efeitos extremos das penalidades do art. 7° do Código Eleitoral. Ou seja, dado que dificilmente alguém poderia incorrer nas penalidades, devido à facilidade para regularizar sua situação eleitoral, poderia, ainda, ser mantida a multa e seus efeitos em nome do “efeito simbólico”.
Já que a multa não possui muita efetividade, pouco importaria que se mantenha. Nestas circunstâncias, o ponto de desequilíbrio estaria, pois, em quem detenha o poder de efetivamente “dar a canetada”. Ou seja, seria tão arbitrário retirá-la com base em sua baixa eficiência, como seria mantê-la com base no mesmo argumento. Nesse sentido, calha bem a seguinte colocação:
“O eleitor que deixar de votar fica impedido de assumir cargos públicos ou tirar passaporte, entre outras sanções, mas tem boas chances de evitar a punição: o prazo para justificar a abstenção eleitoral é de 60 dias. Caso ultrapasse esse período, basta que o eleitor pague uma multa de R$ 3,50 para que sua situação seja regularizada.”5
Trata-se de uma motivação com base na eventualidade, a frase acima exemplifica bem este ponto. No entanto, existe uma razão maior para que essa penalidade seja extirpada do ordenamento pátrio. É necessário dizer que a “eventualidade” em que um fenômeno ocorra ou deixe de ocorrer, não é fundamento valido na perspectiva jurídica.
Dizer que, dificilmente, alguém será descuidado a ponto de não se justificar por três eleições seguidas, ou algo do tipo, apenas desloca o debate para um plano prático. É preciso debater os fundamentos da norma, sobretudo porque o direito não opera no “plano do ser”, mas sim no “plano do dever ser”.
Deveras, caso argumentemos com base em ocasionalidade de que algo ocorra ou não, poderíamos, em atenção à sua eficácia prática, fundamentar a retirada da própria norma em debate, visto que apenas eventualmente alguém seria por ela afetado (como já admitido por seus próprios defensores). Logo, em um plano prático, ela não alcançaria sua finalidade. Percebe-se que o mesmo fundamento (da eventualidade) pode ser utilizado de modo contrário.
Permitir que sejam aplicadas, por mais raras que sejam, medidas como cancelamento de título, retenção salarial, dentre outras, quando estão à míngua de previsão constitucional, significa deixar de aplicar o ordenamento jurídico.
Por fim, declarar a não recepção constitucional da norma aqui tratada não se trata de um jogo de soma zero, obviamente retirar todas as penalidades contidas no art. 7º do Código Eleitoral, implicaria esvaziar o conteúdo da obrigatoriedade do voto. Ou seja, teríamos que adentrar no mérito do voto obrigatório, mas sendo obrigatório, razoável que existam algumas medidas coercitivas, entretanto, tais medidas não podem violar os ditames constitucionais.
Como demonstrado, a sanção aqui tratada não encontra escora em nenhum preceito constitucional, pelo contrário, vai de encontro a estes. De fato, por respeito à isonomia, a medida correta é a manutenção da clássica multa ou exigência de justificativa, aplicáveis a todos os cidadãos, sem distinção de qualquer natureza.
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1 STRECK, Lenio Luiz. Qual a semelhança entre o furto privilegiado e o tráfico de drogas? Conjur. 2008. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2008-ju 10/qual_semelhanca_entre_furto_privilegiado_trafico_drogas?pagina=4. Acesso em: 04 de abri de 2021.
2 (REsp 1658069/GO, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/11/2017, DJe 20/11/2017).
3 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. (IDP). p. 303.
4 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 24.
5 Agência Senado. Simon defende voto obrigatório e fim da reeleição Fonte: Agência Senado. 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2011/03/15/simon-defende-voto-obrigatorio-e-fim-da-reeleicao. Acesso em: 07 maio 2021.