A reforma e a atualização do CC/02 vem sendo debatida desde o final de 2023, trazendo pontos importantes a serem atualizados de modo a acompanhar as necessidades e a realidade atual.
Um ponto importante entre as alterações sugeridas é a revogação do art. 19 da lei 12.965/14, conhecida como lei do Marco Civil da Internet. Atualmente, o mencionado art. 19 estabelece que os provedores de conteúdo só podem ser responsabilizados por publicações realizadas por terceiros se descumprirem ordem judicial que estabeleça a exclusão do conteúdo, salvo exceções, como conteúdos sexuais, nudez e violações de direitos autorais.
A grande problemática é que, em conjunto com os benefícios que a internet trouxe ao longo do tempo, houve o aumento do número de publicações que proclamam discursos de ódio, racismo, pedofilia, homofobia, intolerância religiosa, dentre outros fatores.
É certo que o art. 19 foi elaborado de forma a estabelecer punição para os provedores que descumprissem decisões judiciais, determinar a exclusão de conteúdos inapropriados, mas com o passar dos anos a internet foi tomando uma proporção muito maior e mais abrangente do que se poderia imaginar, o que acabou por tornar o art. 19 muitas vezes ineficaz ao caso concreto.
A revogação do artigo é aguardada tendo em vista as mudanças significativas no horizonte das questões políticas, proteção de dados, valores da sociedade, além do grande crescimento das big techs (empresas que exercem grande domínio do mercado tecnológico, com presença global e alto poder de influência), que possuem amplo acesso aos dados e algoritmos dos usuários.
Nesse mesmo sentido, a Constituição Federal do Brasil eleva a dignidade da pessoa humana como um princípio fundamental, estabelecendo o respeito ao indivíduo como alicerce da democracia brasileira. Desta forma, o Marco Civil da Internet não acompanhou as modificações e atualizações trazidas pela internet e pelas redes sociais, sendo que, seu art. 19, coloca em conflito a liberdade de expressão e a dignidade da pessoa humana, que são princípios fundamentais da Constituição Federal.
Mas até onde as big techs poderão limitar as publicações de seus usuários sem censurar a liberdade de expressão? Apenas uma notificação extrajudicial será necessária para remoção do conteúdo? Como estabelecer o que está ou não apropriado para ser divulgado? Quem fará o julgamento do que é, ou não uma violação? Haverá uma análise prévia das publicações? Essa análise prévia é mesmo factível? Segundo informações do próprio YouTube, a cada minuto os usuários fazem o upload de cerca de 500 horas de vídeos apenas nessa plataforma.
Estas e muitas outras questões devem ser analisadas para que seja estabelecido um novo paradigma eficaz e aplicável frente a atual realidade, tendo em vista que, com a simples revogação deste artigo, o aumento da judicialização aumentará consideravelmente, tanto com relação ao entendimento que conteúdos que deveriam ser removidos e não foram, quanto por conta do entendimento que outros conteúdos foram removidos injustamente, o que irá sobrecarregar ainda mais o judiciário.
Diante deste cenário, havendo mudança no sentido da responsabilidade do provedor, passando este a ser responsável solidariamente pelas publicações realizadas em sua página, há o risco de um aumento considerável na filtragem das postagens levando em consideração as diretrizes de cada provedor, o que levará a uma maior possibilidade de que publicações adequadas e que expõem opiniões e informações de qualidade possam vir a ser restringidas, o que consequentemente infringirá os princípios do Estado Democrático de Direito e poderá prejudicar pessoas e grupos da sociedade.
Cabe ao poder legislativo colocar na balança a proteção da liberdade de expressão e a dignidade da pessoa humana, determinando punições severas como forma de combater o ódio e ataques à democracia, impedindo a divulgação de fake news, mas ainda protegendo a liberdade de expressão e o modelo de negócio das big techs, além de punir cada usuário em sua individualidade, quando efetivamente constatada uma irregularidade.
O art. 19 necessita de modificações de modo a proteger usuários de boa-fé, protegendo os princípios estabelecidos no art. 5° da Constituição, como direitos a honra, reputação e a imagem das pessoas, sem causar obstáculos legais para que vítimas alcancem a justiça de forma rápida, obtendo punição e indenização.
Considerando os cenários atuais, a lei brasileira necessita estar em constante atualização para atender às demandas da sociedade e coibir atividades ilícitas. A nova proposta de reforma do Código Civil procura adequar à lei brasileira as leis internacionais, além de sugerir que sejam estabelecidos mais deveres, obrigações e responsabilidades àqueles com maior poder, como é o caso das big techs, para que haja uma curadoria por parte das empresas dos conteúdos divulgados, colocando um fim à sensação de impunidade que assola a sociedade e trazendo mais legitimidade e eficácia para a legislação.