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Habeas corpus de ofício e a presunção de inocência nos julgamentos por órgãos colegiados

A lei 14.836, de 8/4/24 alterou a lei 8.038, de 28/5/90, e o Código de Processo Penal.

17/4/2024

A lei 14.836, de 8/4/24 altera de forma precisa e substancial a lei de competência originária de julgamento perante o STF e STJ e o CPP - Código de Processo Penal, prevendo que em qualquer julgamento efetuado por órgão colegiado em caso de empate deverá prevalecer a decisão mais favorável ao réu (arts. 41-A e seu parágrafo único da lei 8.038/90 e o art. 615, § 1º do CPP).

Ou seja, a nova previsão abarca tanto os julgamentos nos âmbitos das apelações, recurso em sentido estrito, bem como, recurso especial, extraordinário e outros mais que envolvam matéria penal ou processual penal julgados por órgãos colegiados em caso de empate.

Os recursos especial e extraordinário eram regulados pelo CPC/2015, e o CPP previa na antiga redação do § 1º do art. 615, que o "empate de votos no julgamento de recursos, se o presidente do tribunal, câmara ou turma, não tivesse tomado parte na votação, proferiria o voto de desempate e que somente em caso contrário, prevaleceria a decisão mais favorável ao réu."

Ou seja, no âmbito penal em geral excetuado o julgamento de habeas corpus quando ocorria o empate recursal era comum a invocação do famoso voto de minerva, geralmente emanado pelo presidente da Corte ou dos Tribunais de Justiça.

Essa prática agora é vedada no âmbito penal e processual penal, com a promulgação de referida lei em caso de empate o resultado favorável ao réu deverá imediatamente ser proferido, não mais se admitindo a espera pelo voto de desempate ou de minerva.

A modificação deixa expresso que o julgamento se findará favoravelmente independentemente de necessidade de "preenchimento de alguma vaga em aberto, ou de pessoa com impedimento, suspeição ou de ausência, a que tenha sido o julgamento tomado sem a totalidade dos integrantes do colegiado".

É importante que o legislador agora deixa claro que conceitos de processo civil devem ser tratados com cautela dentro do processo penal, primeiro porque no processo civil há a presunção de igualdade entre as partes em litigio, segundo porque os direitos no processo civil são disponíveis e privados das partes, não podendo o julgador adotar qualquer postura apta a favorecer qualquer uma delas em caso de empate por se tratar de um direito privado, razão pela qual lá se justifica o voto de minerva e a convocação de quantos juízes necessários forem a solução da causa e entrega da tutela jurisdicional.

Já no processo penal estamos falando de um direito e interesse público indisponível, inegociável a presunção de inocência e ao devido processo legal como garantia e extensão da própria dignidade do ser humano, sendo um direito público é dever do Estado agir como garantidor, até mesmo de ofício se necessário.

A liberdade só pode ser cerceada como medida extrema e de exceção quando devidamente comprovada sua necessidade e a culpa de seu detentor de forma inequívoca e definitiva pela infração ao regulamento jurídico penal desde que respeitados os seus direitos e suas garantias fundamentais.

Por conseguinte, no processo penal a parte mais fraca e vulnerável notadamente é o réu, pois, na confrontação entre acusação e defesa, no mais das vezes, de um lado está o ministério Público, uma vez titular da ação penal pública – contando com todo o poder de punir do estado e, ainda, dispondo do aparato da polícia Judiciária para municiá-lo com os elementos e as informações necessárias para a confecção e oferecimento da denúncia, ao passo que no outro polo se encontra o "acusado, invariavelmente num plano de inferioridade, até mesmo por conta do caráter seletivo do direito penal" (FUCILINI, 2019).

Razão pela qual milita em seu favor o princípio do favor rei, ou favor libertatis para contrabalançar a força do Estado-acusação (limitar o autoritarismo e poder do Estado), consiste basicamente numa diretriz do Estado democrático de direito que dispensa ao réu um tratamento diferenciado, baseando-se precipuamente na predominância do direito de liberdade, quando em confronto com o direito de punir do Estado, devendo-se adotar medidas aptas a reduzir a possibilidade de erros e injustiças quando não afastada a dúvida razoável que paira sobre sua cupabilidade.

O empate demonstra a existência de controvérsia na matéria (dúvida) que deve ser interpretada em favor da parte mais fraca do processo e de imediato, sem postergações e em homenagem a presunção e inocência que não restou satisfatoriamente afastada no caso concreto.

Se o Estado acusador não conseguiu extirpar qualquer dúvida razoável sobre a culpabilidade do réu permanece intacta a sua presunção de inocência contemplada e positivada constitucionalmente (art. 5º, LVII da CRFB) e efetivada de forma definitiva e incontestes no âmbito recursal por meio da lei 14.836, de 8/4/24.

Na ação penal 969 do Distrito Federal, um terceiro processo envolvendo o julgamento que condenou o ex-deputado André Moura a 8 anos e 3 meses de prisão, a votação ficou empatada em 5 a 5, e o ministro Luiz Fux decidiu que este último caso seria suspenso e retomado apenas quando fosse nomeado o novo ministro da Corte.

No caso o STF estava com dez ministros na época, um integrante a menos em sua composição desde a aposentadoria de Marco Aurélio, e, o indicado do presidente Jair Bolsonaro para a vaga, o ex-advogado-geral da União e ex-ministro da Justiça André Mendonça, só seria sabatinado tempos depois.

Nesse sentido, o ministro Fux decidiu contrariamente ao réu invocando o regimento interno do STF que previa que a sessão deveria ser adiada para que fosse tomado o voto do ministro ausente em caso de empate e que nesse caso não prevaleceria o princípio do "in dubio pro reo" pois sua aplicação seria excepcional e não poderia ser estendido para além dos institutos que já o previam, exceto casos da mesma natureza.

Pois bem, a nova lei veio como reação, garantindo-se assim que o princípio que veda que a dúvida seja interpretada em desfavor ao réu seja estendido a todo e qualquer recurso julgado por órgão colegiado, devendo ser de imediato proferido o resultado favorável em caso de empate no julgamento de matéria penal e processual penal independentemente de estar completa ou não a composição do órgão. 

A nova lei recepciona também a possibilidade de concessão de habeas corpus de ofício individual ou coletivo, quando, no curso de qualquer processo judicial, verificar que, por violação ao ordenamento jurídico, alguém sofre ou se acha ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção (art. 647-A e parágrafo único do CPP).

Ou seja, veio consagrando o que já era efetuado na prática, principalmente nos julgamentos perante o STJ e o STF, se encontrando agora previsto legalmente, e se estende inclusive como um dever do juiz de primeiro grau que deverá expedir a ordem de ofício caso verifique alguma ilegalidade no âmbito de sua competência que esteja causando ou possa causar prejuízos a liberdade de alguém.

Em um Estado democrático de direito não podemos conviver com a figura de um juiz inerte a injustiças no que se refere aos direitos e garantias fundamentais do ser humano, razão pela qual ele não pode ser um mero espectador de injustiças no processo penal.

Estando ele diante de ilegalidades e diante de alguém que sofre ou se acha ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção deve independentemente de provocação das partes agir de ofício para garantir que esse direito não seja ou continue violado ilegalmente.

Devemos frisar que tal dever não entra em confronto com o sistema acusatório, muito pelo contrário, o fortalece, pois um de seus corolários básicos é a garantia de que ninguém será processado e punido de forma ilegítima e com violação de seus direitos e garantias fundamentais (devido processo legal) onde o juiz é o garante.

Não se confunde, portanto, o dever do juiz de imparcialidade, de não assumir a posição de parte no processo penal com o seu dever de agir e garantir a legalidade e lisura do procedimento assegurando por corolário os direitos fundamentais do acusado, uma vez que os dois estão atrelados ao sistema acusatório, formando um só corpo em vista de um devido processo legal e justo.

Outra alteração importante, que visa não arrastar e postergar no tempo a condição de alguém que sofre ou se acha ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de forma ilegal é a consagração do princípio da fungibilidade, agora possibilitando que uma arbitrariedade seja reconhecida e afastada mesmo diante do manejo de um recurso inadequado para a situação, ou seja, mesmo sem o preenchimento dos pressupostos processuais de admissibilidade recursal.

A fungibilidade recursal diz respeito a possibilidade de processamento de um recurso mesmo que tenha sido manejado de forma inadequada, vamos supor por exemplo o manejo de um recurso em sentido estrito onde caberia recurso de apelação ou ação autônoma de habeas corpus.

É o que consagra a alteração do parágrafo único do art. 647-A do CPP, não será afastado do controle jurisdicional violação ilegal do direito à liberdade mesmo na ausência de pressuposto recursal, o juiz ou tribunal que verificar uma violação ao ordenamento jurídico que leve alguém a sofrer ou ser ameaçado de sofrer violência ou coação ilegal em sua liberdade de locomoção, deverá conceder habeas corpus de ofício ainda que não conhecidos a ação ou o recurso em que foi veiculado o pedido.

A única exigência do art. 647-A é que a ordem só poderá ser concedida pelo juízo competente, ou seja, o recurso sendo adequado ou não deverá ter sido dirigido a autoridade que tem poder de jurisdição para julgamento daquele pedido, caso contrário este não terá legitimidade para conhecer do recurso.

Portanto a fungibilidade não permite a um juiz incompetente conceder ordem de habeas corpus de ofício, e nessa senda Alexandre Morais da Rosa, Aury Lopes Jr. e Vítor Paczek trazem importante solução caso algum recurso tenha sido dirigido a um juiz sem poder de jurisdição: 

Segundo os autores: "O adequado em termos procedimentais seria a denegação da ordem pela inadequação da via eleita e, em casos de vulnerabilidade do acusado, a determinação de declínio do HC para o juízo competente analisar imediatamente o pedido de veiculado (art. 649 do CPP). Nessa decisão de declínio, nada impede que sejam adotadas medidas profiláticas de proteção ao direito fim (cautelarmente)".

Por fim e não menos importante, será considerada inidônea e sem fundamentos a decisão de um juiz competente que deixar de analisar o mérito em um eventual pedido que vise afastar uma coação ou violência ilegal ao direito de liberdade fundada no manejo inadequado de recurso.

Portanto, a nova lei veio para afastar algumas situações e interpretações práticas que se demonstravam em verdadeiros prejuízos ao réu e violação de seus direitos e garantias fundamentais como a liberdade e a presunção de inocência consagradas constitucionalmente.

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BRASIL. Lei nº 14.836, de 8 de abril de 2024. Altera a Lei nº 8.038, de 28 de maio de 1990, e o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal).

FUCILINI, Diego Castilho. A incidência do princípio do favor rei no processo penal brasileiro. Pag. 32.

ROSA, Alexandre Morais. JR., Aury Lopes. PACZEK, Vítor. Lei 14.836/2024 e o empate no julgamento: in dubio pro reo ou in dubio pau no reo?. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-abr-12/lei-14-836-2024-e-o-empate-no-julgamento-in-dubio-pro-reo-ou-in-dubio-pau-no-reo/. Acesso em: 12/04/2024. 

Flávio Viana
Advogado Criminalista. Pós Graduado em Direito e Processo Penal. Especializando em Tribunal do Júri e Execução Penal. Membro da 20ª Turma do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP.

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