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Reuso de esgoto: o exemplo do Espírito Santo

Eventos climáticos intensos reforçam a necessidade de sustentabilidade e economia circular. A escassez de água aumenta os conflitos pelo seu uso. A reutilização de água tratada, embora ainda não regulamentada para consumo humano no Brasil, pode reduzir a demanda.

16/4/2024

O mundo continua enfrentando eventos climáticos intensos que colocam em cheque até mesmo a viabilidade da vida humana em determinados locais do globo.

As intempéries da natureza, cujos efeitos são cada vez mais intensos, levam governos, organizações e cidadãos a discutirem mecanismos que possam minorar os efeitos das ações humanas, preservando o meio ambiente e garantindo melhores condições para a vida.

Nesse cenário a sustentabilidade ganha grande destaque, sendo que o necessário desenvolvimento da economia circular desponta como uma das grandes oportunidades para melhoria dessa convivência homem e natureza.

O acesso à água, cuja escassez é objeto de diversas notícias que apontam para surgimento de conflitos em relação ao seu uso, é necessário não só para a execução de importantes atividades econômicas, como a agricultura e a indústria, mas para a sobrevivência dos seres humanos.

E dentre as diversas ações possíveis para aproveitamento sustentável desse precioso recurso desaponta o reúso de água provinda do tratamento de esgoto.

Inobstante no Brasil ainda não haja regulamentação para permitir a reutilização de água provinda de purificação do esgoto para consumo humano, a utilização de água não potável advinda de tratamento do esgoto em processos industriais e outros podem ao mesmo tempo reduzir a demanda por fontes tradicionais de recursos hídricos, reduzir o lançamento de carga orgânica no ambiente, já que o efluente após o tratamento convencional ainda possui carga orgânica e ainda dar mais segurança ao desenvolvimento de atividades econômicas.

Esse modelo foi recentemente objeto de um inovador projeto capitaneado pela CESAN - Companhia Espírito-santense de Saneamento.

A Licitação Internacional com disputa na B3 em janeiro deste ano atraiu diversas empresas e operadores de grande porte do Saneamento, sendo vencida por consórcio liderado pela GS Inima, operador com vasta experiência em tecnologia de dessalinização e reúso.

O projeto consistiu em uma ousada e sofisticada estruturação jurídica em que foi subconcedida uma etapa do serviço público de Saneamento básico, o tratamento com a respectiva disponibilização de efluente para produção de água de reúso e o descarte ambientalmente adequado (artigos 3º, I, “b” e 3º-B, III e IV da lei 11.445/07) com a concomitante produção e prestação de serviço fornecimento de água de reúso à Siderúrgica ArcelorMittal Brasil por meio de um contrato de demanda firme de 30 anos.

Havia duas grandes discussões jurídicas envolvendo o modelo. A primeira delas dizia respeito ao próprio modelo contratual: qual deveria ser, concessão administrativa ou subconcessão? A segunda dizia respeito à possibilidade de utilização da subconcessão em função da natureza do serviço.

As discussões sobre modelos contratuais tendem, muitas vezes, a se isolarem de aspectos econômico-financeiros, como se fosse possível extrair uma resposta de modo estanque e abstrato no direito. Esse projeto provou que isso não funciona. O que aconteceu foi que ambos os modelos seriam juridicamente possíveis.

Mas, sendo ambos possíveis, qual seria o mais adequado? A concessão administrativa, por um lado, traria a garantia de uma receita financeira para o eventual parceiro privado, pois, nesse modelo, o poder concedente é responsável por custear toda a contraprestação. Talvez, para alguns players, esse fator até pudesse ser interessante.

Porém, para a CESAN, certamente não seria o modelo mais vantajoso. Ao contratar uma concessão administrativa, o poder concedente tem o dever de alocar recursos no orçamento para custear toda a contraprestação. No caso da CESAN, isso significaria onerar seu balanço com passivos diretos decorrentes do contrato e reduzir sua possibilidade de alavancar outros investimentos. 

Além disso, no modelo de concessão administrativa, a retenção do risco de demanda pelo Poder Concedente poderia implicar em menor incentivo à eficiência e à inovação. Uma vez que a contraprestação estaria garantida ao parceiro privado, a CESAN assumiria o risco de prestar o serviço de fornecimento de água de reuso a usuários industriais. Claro que, na concessão administrativa, haveria indicadores de desempenho, mas, ainda assim, os serviços de saneamento tendem a ser vocacionados à transferência do risco de demanda, por se tratar de serviço mensurável por volume, e não apenas pela disponibilidade da infraestrutura.

Já a subconcessão permitiria um arranjo muito mais eficiente dos riscos. De um lado, a CESAN não precisaria comprometer seu balanço com os passivos diretos decorrentes da contraprestação. De outro lado, a transferência do risco de demanda permitiria gerar mais incentivos para a inovação e geração de eficiência, bem como a gestão dos custos de transação com os usuários industriais.

E não se diga que o contrato de demanda firme esvazia o risco de demanda. O subconcessionário, nesse modelo, deve se relacionar diretamente com o usuário e assegurar o suprimento da demanda em nome próprio, o que não ocorreria no modelo de concessão administrativa. Por isso, concluiu-se que haveria muito mais eficiência alocativa em termos de risco nessa modalidade.

A segunda grande questão jurídica dizia respeito à possibilidade de “conceder” o serviço de reuso. 

Ocorre que o fornecimento de água de reuso é uma possibilidade decorrente do próprio serviço público de esgotamento sanitário, em especial no caso em comento o transporte, o tratamento e a disposição final (art. 3º-B, II, III e IV da lei 11.445/07). Logo, seria possível destacar essas etapas do serviço – em especial o tratamento – e monetizá-la mediante a prestação do serviço de fornecimento de água de reuso.

Mas, isso seria possível? Afinal, a concessão não pressupõe sempre e em todos os casos que o serviço seja concedido integralmente e somente nos casos em que é possível cobrar tarifas? O amadurecimento do uso dos modelos estruturados demonstra que essa visão jurídica está ultrapassada.

Em primeiro lugar, a própria lei de concessões sempre previu a subconcessão. A Saneago - Companhia Saneamento de Goiás já havia subconcedido o serviço de tratamento de esgoto, cindindo a ideia de integralidade dos serviços em um único prestador. Mas, mais do que isso, a lei de saneamento, desde 2007, sempre reconheceu essa possibilidade ao tratar dos serviços interdependentes.

O fundamento sempre esteve lá. Mas, a bem da verdade, pensar fora da caixa e propor modelos inovadores sempre é um desafio que encontra muito mais portas fechadas do que abertas. O ônus argumentativo de sustentar uma subconcessão numa situação em que a decisão por uma concessão administrativa seria muito confortável foi um desafio bastante expressivo.

Mas, o desafio foi superado e, agora, o investimento a ser realizado na construção da nova EPAR - Estação de Produção de Água de Reuso em até 3 anos pelo parceiro privado será integralmente amortizado com o fornecimento de água para usuários industriais, com garantia de aquisição de relevante montante de serviço de fornecimento de água de reúso pela ArcelorMittal.

Após a efetiva evolução do projeto, que no final de 2023 já indicava forte atração do mercado, nota-se aumento de interesse de outros grandes polos industriais do Espírito Santo em soluções similares, havendo destaque na mídia para intenções de utilização de água de reúso em seus processos industriais da mineradora Vale e da fábrica de celulose Suzano.

O Brasil ainda carece de regulamentação e incentivo à prática de reúso, mas o exemplo capixaba demonstra que a evolução das tecnologias para tratamento dos esgotos e purificação da água e a necessidade de segurança hídrica para determinadas atividades industriais podem gerar excelentes projetos que garantam melhoria das condições ambientais, preservação dos recursos hídricos, equilíbrio tarifário, geração de receitas alternativas e desenvolvimento da atividade econômica, com melhoria da qualidade de vida da comunidade.

Projetos do tipo demonstram alta capacidade de geração de externalidades positivas e certamente a implementação de novos tende a trazer ótimos resultados ao meio ambiente e à economia, contribuindo, pois, para a perpetuação da vida na terra.

Renan Marcondes Facchinatto
Mestre e Bacharel em Direito Administrativo pela PUC-SP. Pós-graduado em Direito da Infraestrutura pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão da PUC-SP. Membro-Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo Sancionador (IDASAN). Membro do IBEJI. Membro do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial (IBDEE). Sócio do escritório Dal Pozzo Advogados. Instrutor Acreditado do Programa de Treinamento Certified Public Private Partnerships Professional - Foundation Level (CP3P-F).

Mateus Rodrigues Casotti
Advogado. Especialista em Saneamento Básico. Graduado pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e Pós-Graduado em Direito de Saneamento pelo IDP - Brasília. Membro da Comissão Especial de Saneamento da OAB Nacional. Advogado da Cesan entre 2009 e 2024.

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