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Remanescente das comunidades de quilombos: Novo tipo de relação jurídica imobiliária

STF cria nova relação jurídica para terras quilombolas, não de propriedade, mas de uso especial por associações, gerando conflitos e insegurança jurídica.

13/4/2024

O STF validou por interpretação criativa novo tipo de relação jurídica imobiliária1. Esse novo tipo pode ser definido como imóveis afetados à finalidade de uso compartilhado e conservação de remanescentes das comunidades de quilombos alocados à titularidade de respectivas associações. A relação jurídica formada não é de propriedade. Trata-se de bem de uso especial vinculado à titularidade de entidade de direito privado. A inovação revoluciona o direito brasileiro pelo efeito prático de tornar letra morta garantias constitucionais relacionadas com o direito de propriedade, além de favorecer a expansão do conflito e disputa sobre a terra.

A conta dos conflitos que estão surgindo no Brasil em torno sobreposição dos territórios quilombolas e comunidades tradicionais sobre as propriedades e posses deve ser creditada ao STF. Esse fato é histórico e merece atenção. O conflito não existia. Surgiu como possibilidade de grupo social ou família obter a partir de posse limitada, o título coletivo de todo o território do entorno. O caminho mágico é o laudo antropológico! Importante repetir: o STF é a causa. O conflito é efeito. A promoção da insegurança jurídica é o resultado principal da interpretação criativa do STF.

No princípio, havia apenas as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, titularizada como bens da União (CF, art. 20, XI). O conceito desse tipo de imóvel está definido no artigo 231, §1º: terras habitadas pelos índios “em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

Em seguida, o STF interpretou a matéria das “terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades de quilombos”, previsão instrumental contida na Constituição Federal, artigo 68 do ADCT, cotejando-o com o teor do decreto 4.887/032.

A interpretação ocorreu na ação direta de inconstitucionalidade 3.239. O Plenário concluiu o julgamento em 8/2/18. O Acórdão foi redigido pela ministra Rosa Weber. A conclusão foi pela constitucionalidade do decreto 4.887/03. O Acórdão é longo. Tem 353 páginas.

A regulamentação consagrada e ratificada pelo STF pode ser enunciada sinteticamente da seguinte forma: terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos são aquelas utilizadas para a garantia da “sua reprodução física, social, econômica e cultural”. O título de propriedade será coletivo e pro-indiviso outorgado às comunidades.

Três pontos jurídicos são relevantes na análise do novo tipo de relação jurídica imobiliária validada pelo STF:

  1. a natureza instrumental do direito constitucional assegurado aos remanescentes de comunidades de quilombos;
  2. o tipo de relação jurídica imobiliária previsto na Constituição Federal e a interpretação criativa do STF;
  3. a ampliação do objeto jurídico denominado na Constituição Federal como “terras ocupadas”, equiparando-o, aparentemente, aos conceitos de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”, previsto na CF, art. 231, § 1º, e território, previsto na Convenção 169, artigo 13, item 2.

Esses pontos serão examinados nos tópicos seguintes.

PRIMEIRO PONTO. NATUREZA INSTRUMENTAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL ASSEGURADO AOS REMANESCENTES DE COMUNIDADES DE QUILOMBOS

A relação jurídica constitucional (CF, ADCT, Artigo 68) é potestativa[iii]. O direito precede o dever. Os “remanescentes das comunidades de quilombos” são titulares do direito (poder ou faculdade) de obter o reconhecimento da propriedade definitiva e respectivo título das terras que estejam ocupando. O Estado é titular do dever de outorgar o reconhecimento da propriedade definitiva e respectivo título.

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1 O conceito de Relação Jurídica Imobiliária está deduzido em artigo do Autor publicado no Migalhas: https://www.migalhas.com.br/depeso/359041/a-relacao-juridica-imobiliaria

2 “Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”.

3 Existem quatro tipos de relações jurídicas: livre, potestativa, facultativa e imperativa. Esses conceitos estão expostos nos seguintes artigos do Autor publicados no Migalhas: a) Ordem das Condutas e Relação Jurídica (https://www.migalhas.com.br/depeso/316871/ordem-das-condutas-e-relacao-juridica); b) Matemática da Conduta Jurídica (https://www.migalhas.com.br/depeso/323139/matematica-da-conduta-juridica); c) Os Conceitos Matemáticos de Direito e Dever (https://www.migalhas.com.br/depeso/335666/os-conceitos-matematicos-dedireito-e-dever). 

Luiz Walter Coelho Filho
Sócio-fundador do escritório Menezes, Magalhães, Coelho e Zarif Sociedade de Advogados. Graduado em Direito pela UFBA, ano de 1985. Exerce a advocacia nas áreas de Direito Administrativo e Imobiliário

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