Migalhas de Peso

O caso do Porsche e a seletividade penal

Acidente fatal envolvendo Porsche gera indignação. Motorista em liberdade devido à natureza culposa do crime. Prisão só caberia em caso de homicídio doloso.

11/4/2024

Um grave acidente que aconteceu na madrugada do dia 31/3 na avenida Salim Farah Maluf em São Paulo envolvendo um motorista de um veículo de luxo, um Porsche avaliado em cerca de R$ 1 milhão e que provocou a morte do motorista de aplicativo que conduzia um Renault Sandero e lesões em um passageiro do Porsche, tem causado alvoroço na mídia e revoltado boa parte da sociedade, notadamente pelo fato do causador do acidente está em liberdade.

Sem adentrar no mérito da complexa discussão entre o dolo eventual e a culpa consciente - mas deixando assentado que via de regra os crimes ocorridos no trânsito são de natureza culposa caracterizados pela imprudência, negligência ou imperícia conforme o Código Brasileiro de Trânsito - e sem analisar as condutas dos policiais militares que deixaram o condutor do Porsche ir embora, necessário fazer alguns esclarecimentos.

Primeiramente é imperioso elucidar que em se tratando de crime culposo não há que se falar na possibilidade de decretação da prisão temporária ou da prisão preventiva, ambas só poderiam ser decretadas, em tese, na hipótese de crime de homicídio doloso e, evidentemente, desde que preenchido os requisitos legais.

É imprescindível deixar registrado que em nosso sistema, gostemos ou não, a prisão cautelar (provisória) – sem pena – por força do princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, LVII da CR) é medida de exceção, extrema e excepcional.

Ressalta-se que a prisão provisória não pode se constituir em antecipação da tutela penal – execução provisória da pena – também, não deve ter caráter de satisfatividade, o próprio STF assim já decidiu:

“A Prisão Preventiva – Enquanto medida de natureza cautelar – Não tem por objetivo infligir punição antecipada ao indiciado ou ao réu. - A prisão preventiva não pode – e não deve – ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia. A prisão preventiva – que não deve ser confundida com a prisão penal – não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal. ” (RTJ 180/262-264, rel. min. Celso de Mello)

Daí a clara advertência do STF, que tem sido reiterada em diversos julgados, no sentido de que se revela absolutamente inconstitucional a utilização, com fins punitivos, da prisão cautelar, pois esta não se destina a punir o suspeito, o indiciado ou o réu, sob pena de manifesta ofensa às garantias constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal, com a consequente (e inadmissível) prevalência da ideia – tão cara aos regimes autocráticos – de supressão da liberdade individual, em um contexto de julgamento sem defesa e de condenação sem processo (HC 93.883/SP, rel. min. Celso de Mello).

Lado outro, não se pode olvidar que o sistema penal é seletivo criminalizando - criminalização primária, secundária e terciária – os mais vulneráveis (negros, pobres, com baixa escolaridade etc.).

O poder seletivo do sistema penal, afirma RAÚL ZAFFARONI, “elege alguns candidatos à criminalização, desencadeia o processo de criminalização e submete-o à decisão da agência judicial, que pode autorizar o prosseguimento da ação criminalizante já em curso ou decidir pela suspensão da mesma. ” A escolha, prossegue o jurista argentino, “é feita em função da pessoa (o ‘bom candidato’ é escolhido a partir de um estereótipo), mas à agência judicial só é permitido intervir racionalmente para limitar essa violência seletiva e física, segundo certo critério objetivo próprio e diverso do que rege a ação seletiva do restante exercício de poder do sistema penal, pois, do contrário, não se justifica a sua intervenção e nem sequer a sua existência (somente se ‘explicaria’ funcionalmente)”.1

Contudo, é uma falácia imaginar que mitigando direitos dos ditos “poderosos” ou pertencentes a uma classe privilegiada (brancos, ricos, com elevado grau de escolaridade etc.) os mais vulneráveis serão beneficiados em uma espécie de “compensação”.

Por tudo, embora ciente de que o sistema penal é extremamente seletivo e que os mais vulneráveis (jovens, negros e pobres) compõe a grande maioria da clientela penal, entende-se que não é buscando a criminalização de outros setores da sociedade e diminuindo, em nome da fúria punitiva, direitos e garantias, que a situação daqueles que sempre foram criminalizados pelo sistema penal mudará para melhor. Ao contrário do que possa parecer, quando os chamados “poderosos” começarem a serem punidos, o sistema, perverso que é, vai abonar ainda mais a punição dos miseráveis. Necessário, portanto, pugnar para que todos, independentemente de cor, sexo, religião, condição social e econômica, tenham assegurados seus diretos fundamentais.

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1 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vania Romano e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 245-246.

Leonardo Isaac Yarochewsky
Advogado Criminalista, Mestre e Doutor em Ciências Penais pela UFMG.

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