Migalhas de Peso

Reflexões sobre Tarsila e seu catálogo Raisonné

Obra de Tarsila do Amaral vendida por R$16 milhões na SP-Arte suscita controvérsia sobre autenticidade, ausência no catálogo raisonné e implicações legais.

12/4/2024

No último dia 4/4/24, a comunidade artística nacional foi surpreendida com uma notícia, em tese positiva: o aparecimento de uma tela das Tarsila do Amaral na feira SP-Arte – até então desconhecida do público – e sua alienação por cerca de dezesseis milhões de reais. Não tardou, porém, para que este fato tomasse contornos menos auspiciosos. Foi relatado que a obra não integra o catálogo raisonné, uma espécie de compilado completo e detalhado das obras de um artista, o que indicaria sua ausência de autenticidade. O proprietário da obra, então, apresentou as eventuais circunstâncias que teriam levado à aquisição da obra e informou que não se encontrava no Brasil, quando da confecção do catálogo raisonné.1

Para além das circunstâncias fáticas que poderiam fazer parte de um romance, este imbróglio chama atenção também pelas implicações jurídicas. Primeiro há de se refletir sobre o eventual poder vinculante (ou persuasivo) do dito catálogo, i.e., os impactos decorrentes da ausência de inclusão de uma obra neste compilado. Mas não só. Verificada esta lacuna e pleiteada a inserção pelo, então, proprietário, há de se apreciar sobre a possibilidade de questionamento de uma decisão contrária ao reconhecimento da obra como autêntica e, por sua vez, eventual responsabilização, caso a autenticidade seja confirmada por um perito designado pelo juízo, por exemplo.

O catálogo raisonné é compreendido como uma publicação dedicada à apresentação da integralidade do conjunto da obra de determinado artista plástico, elaborado comumente após o falecimento do criador. É tradicionalmente impresso, embora a redução dos custos tenha levado à popularização dos catálogos digitais2. Ainda, este trabalho é composto por muitos volumes, nos quais a produção artística é trazida de forma sequencial, com imagens impressas em alta resolução, assim como com um detalhamento, dentro do possível, sobre cada obra, as técnicas empregadas e, em alguns casos, contextualização histórica das obras ou conjunto de obras3. O catálogo, assim, não se encerra em uma listagem de obras produzidas, oferece informação técnica sobre a produção artística do autor e sua linguagem, tanto por meio de apresentação das obras em si, quanto da demonstração do momento em que advieram.4

O primeiro catálogo de tal sorte seria datado de 1751 com a publicação das telas de Rembrandt por Edmé Gersait. Inicialmente, tais catálogos eram permeados por interesse predominantemente acadêmico, produzidos por pesquisadores apaixonados por determinados autores. Posteriormente, o catálogo raisonné ganhou o interesse do mercado de arte, tendo em vista o potencial de trazer maior segurança às transações, assim como ocasionar a valorização econômica das obras5. Em que pese possa haver alguma pressão por celeridade – em especial neste segundo cenário –, sua elaboração costuma demorar anos, por vezes décadas, com a realização de ampla busca documental e publicações de chamamentos públicos para a apresentação de obras em acervo privado.

Este processo de criação pode ser orientado por Guias, tais como o da ‘Catalogue Raisonné Scholars Association’6 e do ‘BILDHAUERMUSEEN’7. No entanto, há certa compreensão no sentido de que as boas práticas cuidam de uma recomendação, na medida em que cada catálogo traduz um conjunto específico e peculiar de obras8. É relatado, inclusive, que o mercado de arte não possui preconceito apriorístico sobre os autores do catálogo, sendo possível que um especialista com larga experiência e formação acadêmica produza obra questionável, ao passo que outro de história acadêmica mais recente elabore um trabalho que gere maior confiança9

Diante deste contexto, observa-se, de início, que um catálogo raisonné não possui natureza jurídica vinculante, em especial quanto às obras não incluídas no mesmo. Não constitui um rol eternamente cerrado. Por cuidar de espécie de declaração unilateral, não vincula terceiros ante à barreira do princípio da relatividade das obrigações. Ademais, também não tende a vincular o criador o catálogo até que haja eventual manifestação de vontade concordante de outra parte, pois o princípio a taxatividade dos negócios jurídicos unilaterais não permite que atos não previstos no ‘Título VII’ do Código Civil produzam efeitos jurídicos autonomamente10.

Assim, o catálogo raisonné tende a operar um efeito persuasivo, mais próximo de uma presunção do que de uma ficção jurídica. Não há o conhecimento de que as obras ali inseridas seriam inautênticas e que teriam sido tornadas legítimas pela sua inclusão no catálogo; o que seria uma ficção11. Ao contrário, o contexto de elaboração do catálogo tende a exprimir uma presunção de autenticidade12. Deste modo, a persuasão será maior tanto quanto for as circunstâncias positivas ao redor do trabalho, tais como: longo período de pesquisa, autores especializados academicamente na produção do catálogo, processo permeado por transparência e eventual participação pública da comunidade acadêmica.

A ausência de determinada obra no catálogo não a qualifica, então, como falsa. A sua natureza persuasiva torna sua eventual atribuição negativa como relativa, isto é, pertinente ao grupo que adota o consenso exarado pelo catálogo, mas não para os demais. Este cenário, por oportuno, traz questionamentos sobre o alcance do dever de informação daquele que tem conhecimento de que sua obra não consta do catálogo, mas que opta por não expor este dado ao adquirente, ante o fato de discordar da decisão do autor do catálogo e julgar possuir provas que objetivamente permitiram atribuir a obra ao artista plástico.

Uma situação interessante foi delineada pelo TJ/SP, curiosamente, acerca de uma obra atribuída a Tarsila13. No caso, o adquirente de uma obra em leilão pleiteava indenização do leiloeiro porque comprou um desenho como autêntico, mas este não restou posteriormente incluído no catálogo raisonné. Ainda que não tenha adentrado especificamente nos limites do dever de informar, a Corte delineou que este compilado não possui efeito vinculante, assim como não houve demonstração do arrazoado que teria gerando à negativa de inclusão.

No mais e por fim, tem-se como tema sensível a responsabilidade do autor (ou coautores) do catálogo raisonné ante o impedimento de inserção de determinada obra por não estar confortável com sua autenticidade. O inegável risco de demanda judicial gerou a prática, difundida ao menos no contexto Norte-Americano, de que a análise de uma nova obra somente se faz mediante a firmatura de termo de exoneração de responsabilidade (“hold harmless”) pelo solicitante14. Assim, o especialista possui um compromisso, com efeitos jurídicos, no sentido de que a negativa da inclusão não será causa para o exercício de pretensão judicial contra si.

No entanto, este cenário não parece ser prevalente, sendo relativamente comum a notícia na mídia artística de demandas judiciais contra autores de catálogos, em especial na França15. Este contexto culminou no julgamento paradigmático da Corte de Cassação Civil (Câmara Civil 1) sobre a obra “Maison blanche” atribuída a Jean Metzinger16. No caso, cuidava-se de pleito para a determinação de inclusão da obra no catálogo raisonné, assim como pagamento de compensação. Após a realização de perícia concludente pela autenticidade da obra, o Tribunal a quo julgou procedente a demanda. O feito, então, foi submetido à Cassação Civil por meio de recurso, no qual a autora do catálogo, ampla especialista em Metzinger, questionava a conclusão da perícia e defendia sua não inserção. O Tribunal, então, compreendeu que catálogo raisonné é uma obra autônoma, fruto da convicção técnica e artística de seu criador, de modo que a determinação de sua modificação (com a integração a força) violaria a liberdade de expressão do criador (do catálogo) e seus direitos morais – ainda que perito do juízo tenha compreendido pela autenticidade da obra. Assim, somente seria possível sua responsabilização em hipóteses específicas, a exemplo de má-fé e intenção de prejudicar – algo aparentemente próximo da responsabilidade dos peritos judiciais no ordenamento pátrio, a qual é vinculada à prestação de informações inverídicas (art. 158, CPC).

Neste sentir, nota-se que a discussão demanda ampla reflexão sob a perspectiva jurídica, não só quanto aos efeitos decorrentes do catálogo, como também sobre a responsabilidade dos agentes envolvidos.

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1 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2024/04/tela-de-r-16-mi-atribuida-a-tarsila-na-sp-arte-e-falsa-afirmam-especialistas.shtml. Acesso em 08.04.2024.

2 Veja-se, por exemplo, o catálogo do escultor Alberto Giacometti. Disponível em: https://www.fondation-giacometti.fr/en/alberto-giacometti-database-agd. Acesso em 08.04.2024.

3 ATWATER, Emily. The Changing Form of the Catalogue Raisonné: Hurdles of Transitioning from Print to Web. Art Documentation: Journal of the Art Libraries Society of North America, Vol. 31, No. 2 (September 2012), pp. 186-198.

4 GABAGLIA PENNA, Christina. Catálogo Raisonné: Documentação e Informação em Arte. Dissertação (Mestrado) - UFRJ - Museologia. Rio de Janeiro, 2020, p. 19.

5 TULLY, Judd. The Power of Reason. The Journal of the Catalogue Raisonné Association. Autumn 2005 n. 18, pp 1-2 and 5-7.

6 Disponível em: https://www.catalogueraisonne.org/guidelines. Acesso em 08.04.2024.

7 Disponível em: https://www.bildhauermuseen.de/guidelines-for-compiling-a-catalogue-raisonne-of-a-sculptors-works/. Acesso em 08.04.2024.

8 Disponível em: https://www.apollo-magazine.com/in-defence-of-the-catalogue-raisonne/. Acesso em 08.04.2024

9 TULLY, Judd. The Power of Reason. The Journal of the Catalogue Raisonné Association. Autumn 2005 n. 18, pp 1-2 and 5-7.

10 TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República - vol. II 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012 p. 686.

11 "A ficção jurídica consiste em equiparar voluntariamente algo que se sabe que é desigual." LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. José Lamego. 3a ed. Lisboa: FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN, 1997, p. 366.

12 "Presume-se que o estipulante, ou as partes, não pretenderam um absurdo, nem convieram tampouco em um ato, ou cláusula, sem efeito prático ou juridicamente nulos." MAXIMILIANO, Carlos Hermenêutica e aplicação do direito. 21. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2017, item 425.

13 TJSP;  Apelação Cível 0228028-73.2009.8.26.0100; Relator (a): Kioitsi Chicuta; Órgão Julgador: 32ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 41ª Vara Cível; Data do Julgamento: 17/03/2011; Data de Registro: 17/03/2011.

14 TULLY, Judd. The Power of Reason. The Journal of the Catalogue Raisonné Association. Autumn 2005 n. 18, pp 1-2 and 5-7.

15 Disponível em: https://www.artatlaw.com/expert-opinion-u-turn-french-supreme-court/. Acesso em 08.04.2024.

16 Cour de cassation, civile, Chambre civile 1, 22 janvier 2014, 12-35.264, Publié au bulletin. N° de pourvoi: 12-35.264. Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/juri/id/JURITEXT000028514158. Acesso em 08.04.2024.

Raul Murad Ribeiro de Castro
Doutor em Direito Civil pela UERJ. Professor da PUC-Rio. Sócio do Denis Borges Barbosa Advogados

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