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Execução penal: Projeto de lei que visa colocar fim na saída temporária

Debate sobre a natureza jurídica da norma e seus impactos na vida dos aprisionados frente a possibilidade da revogação automática do benefício da saída temporária na execução penal.

11/4/2024

No Brasil, os condenados que cumprem pena em regime semiaberto, salvo condenados por crime hediondo com resultado morte, poderão obter autorização para saída temporária do estabelecimento, por prazo não superior a 7 (sete) dias, podendo ser renovada por mais 4 (quatro) vezes durante o ano, sem vigilância direta, nos seguintes casos:

Os Requisitos que o apenado precisa preencher para tanto são:

Trata-se de norma de direito penal de caráter misto, uma vez que, traz efeitos materiais relativos ao direito de locomoção do cidadão, direito de punir do Estado ou garantia do acusado e também prevê uma forma, um procedimento que o cidadão deve ser submetido ou para exercício de um direito ou para que o Estado possa exercer o seu "jus puniende".

As normas previstas no Código de Processo Penal ou outras legislações penais de natureza híbrida, ou seja, com conteúdo de direito processual penal e de direito material, devem respeitar o princípio que veda a aplicação retroativa da lei penal quando seu conteúdo for prejudicial ao réu.

Tal previsão legal é uma garantia fundamental prevista no art. 5º da Constituição Federal:

Portanto, quando pensamos na Lei de Execução Penal  lei nº 7.210/84 é importante termos o conhecimento que referida lei em muitos de seus dispositivos, além de prever uma forma para a execução de uma pena, prevê também garantias e benefícios que atingem o direito de liberdade, locomoção, garantia ressocializadora da pena e muito maior do que isso a própria dignidade do apenado.

Portanto, abrangidos nesses aspectos pelos mesmos princípios que norteiam nossa legislação penal material, entre eles a garantia de que a lei penal prejudicial promulgada após os acontecimentos dos fatos ilícitos não retroagirá em prejuízo ao réu.

O "Pacto de San José da Costa Rica", tratado internacional de direitos humanos que possui status supralegal e forma o nosso bloco de constitucionalidade, em seu art. 9º trata dos princípios da legalidade e da irretroatividade, afirmando que:

“Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinquente será por isso beneficiado”.

Importante falarmos, que quando a norma tiver um caráter processual em sua integralidade, prevendo apenas a forma e por conseguinte não atingindo qualquer direito material, o tempo é que regerá o ato, pois a regra do art. 2º, do CPP, determina que “a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”.

Ou seja, nesse caso não haveria retroatividade, mesmo que a nova norma processual fosse mais benéfica ao réu e se aplicaria desde logo a todos indistintamente, mesmo se já estivesse sendo processado antes da vigência da nova lei.

O que não é o caso discutido, pois a regra que prevê o direito a saída temporária na execução penal é uma norma híbrida, e quando falamos em um novo projeto de lei que venha a ser aprovado e sancionado entrando em vigor no sentido de restringir referido direito ou limitá-lo, essa norma não será aplicável ao caso de condenados com sentença transitada em julgado anteriormente à sua promulgação, somente a condenações que ocorram na égide de sua vigência.

Trata de regramento que privilegia ao mesmo tempo que ninguém será sancionado mais gravemente do que quando cometeu o delito, quando a conduta era tratada socialmente com menos gravidade e severidade, e também privilegia a nossa segurança jurídica garantindo que não ficaremos sempre sujeitos a modificações em nossas penalidades e de respondermos futuramente por crimes que no tempo da ação não era ilícita.

Veja que estamos trazendo apenas considerações prévias sobre eventual e futura promulgação de uma lei que poderá alterar negativamente a situação dos apenados que cumprem pena no Brasil.

Não sabemos como o judiciário se comportará caso isso venha a efetivamente ocorrer, as decisões judiciais em nosso país são uma linha tênue e não conseguimos prever com exatidão como decidirão nossos juízes quando os casos estourarem e ficarem em suas mãos as vidas de milhares e milhares de aprisionados já condenados que faziam jus ao benefício.

Do ponto de vista ressociativo da pena, teríamos um efetivo retrocesso, já que a pena no Brasil ela não significa manter a distância entre apenados seus pares e familiares ou os impedir de frequentar algum curso profissionalizante ou superior.

A lógica de que os apenados saem para cometer novos delitos não nos parece no plano fático tão comprovado assim para justificar uma medida tão extrema, na realidade, o que vemos são raras exceções que saem nos noticiários que infelizmente não estão prontos para viver em sociedade.

Sem um estudo sério que comprove a quantidade de presos no regime semiaberto que acabam na saidinha cometendo novos delitos é temerário prejudicar os demais por culpa de um ou dois que saem nos noticiários por descumprirem com seus deveres sociais.

Então ao nosso ver não nos parece acertada a investida dos legisladores contra os apenados em regime semiaberto, uma vez que não há suporte concreto que justifique tal empreitada, a não ser o clamor social que por suas vezes é um dos maiores fatores que causam injustiças em nosso país.

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[1] Convenção Americana de Direitos Humanos (“Pacto de San José da Costa Rica”) (1969) - DECRETO Nº 678, DE 6 DE NOVEMBRO DE 1992

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm

[2] Código de Processo Penal. decreto lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del3689.htm. 

[3]  Brasil. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

[4] BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidente da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.  Acesso em 20/03/2024.

[5] BRASIL. Lei de execução Penal. Lei nº 7210 de 11 de julho de 1984. BRASIL.

Flávio Viana
Advogado Criminalista. Pós Graduado em Direito e Processo Penal. Especializando em Tribunal do Júri e Execução Penal. Membro da 20ª Turma do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP.

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