A análise, investigação e processamento como imperativos decorrentes da invasão de domicílio pelos agentes de segurança pública sem lastros objetivos antes para sua comprovação, para muito além de insuficiência para um decreto condenatório, ainda que presentes produtos ilícitos, como drogas, enseja responsabilização pelo abuso de poder.
Em artigos anteriores também publicados aqui no Migalhas1-2 tivemos a oportunidade de discorrer acerca da busca pessoal e fundada suspeita, bem como pela prisão em flagrante delito na invasão de domicílio. Portanto, neste ensaio nos propomos dissertar sobre a responsabilização dos agentes de segurança pública pelo abuso de poder em invasões de domicílios, principalmente nas periferias. Essa questão vem ganhando força no STJ.
Antes, porém, cabe clarificar a evolução da jurisprudência sobre a invasão de domicílio em determinados contextos particulares. As Cortes superiores admitiam tal invasão quando em apreço crimes permanentes, sobretudo o tráfico de drogas. Na prática, os policiais adentravam a residência e vasculhavam-na, caso encontrassem drogas procediam o flagrante delito. Ressaltando que o crime de tráfico de drogas, art. 33 da lei 11.343/06, possui 18 verbos, isto é, são 18 condutas capazes de configurar o crime, entre as quais ter em depósito e guardar consigo. Lado outro, em não sendo encontrada drogas, nada era registrado, tido como atividade normal das polícias, com ênfase para a polícia ostensiva- Polícia Militar.
Outro argumento usado para chancelar a invasão de domicílio era o de que o morador havia franqueado a entrada. Os policiais sustentavam essa narrativa e as Cortes superiores aceitavam, pois que o agente público possui fé pública. No entanto, o STJ, por meio de sua 3ª seção, reviu sua jurisprudência de modo a se enquadrar na realidade da vida. Acertadamente concedeu ao domicílio a proteção dada pela CR/88 (art. 5º, XI), ou seja, sua invasão somente pode ocorrer em situações excepcionais, sendo obrigatória a comprovação da autorização pelo morador, seja por escrito, seja por vídeo (câmera corporal/bodycam). Não se desconhece que o STF está reavaliando esses posicionamentos do STJ, inclusive já com uma decisão do min. Alexandre de Moraes no sentido de restringir dada interpretação desta corte.
Não obstante divergência na jurisprudência dos Tribunais superiores, certo é que vige um Estado de Direito, mas não só, ainda democrático. Significa máximo respeito às leis, mormente a CR/88, criadas pelo povo, soberano que é, ora pelos seus representantes, ora diretamente. Elas vêm para limitar o poder do Estado, impedindo seus agentes de atuarem em certos casos de ingerência em direitos fundamentais sem a devida justificação. O professor Aury Lopes Jr., nesse tema, assim assevera: "Amilton B. de Carvalho, questionando para quê(m) serve a lei, aponta que a "a lei é o limite ao poder desmesurado – leia-se, limite à dominação".
A alegada fé pública dos agentes do Estado não pode prescindir de dados objetivos, os quais justifiquem determinadas atitudes, ainda mais quando possível obtê-los, por exemplo, bodycam na área de segurança pública, na farda ou veste civil. Deve ser veementemente rechaçado o argumento de que os agentes do Estado não têm intenção deliberada para prejudicar um cidadão. Quando em jogo direitos fundamentais, limitação de qual seja, requer justificação adequada e plausível, com espeque em dados claros e objetivos.
Portanto, presente abuso de poder deve ser investigado, processado e punido o agente do Estado. Essa tem sido a posição do min. Messod Azulay, que remeteu os autos dos processos para as instituições encarregadas pela persecução penal, bem como para as instituições que pertencem os agentes. Requereu informações sobre as providências tomadas. O min. Rogério Schietti inclinou-se no mesmo sentido. Esses posicionamentos decorrem da quantidade absurda de HC no STJ com o mesmo conteúdo, qual seja, a violação de domicílio pelas forças de segurança pública em discordância com a legislação e a jurisprudência da Corte cidadã. Disso surge a necessidade de responsabilização sobretudo criminal.
A lei de abuso de autoridade (lei 13.869/19) tipifica a conduta de invadir (ocupar, penetrar totalmente em imóvel alheio ou suas dependências), adentrar (diferencia-se da conduta anterior por que pode ser por meio violento, obstrução de um obstáculo, por exemplo) e permanecer (num primeiro momento a entrada é permitida, porém há negativa de se retirar posteriormente, uma omissão, portanto). Essas condutas podem ser praticadas cladestinamente (sem se deixar notar) ou astuciosamente (por meio fraudulento). Também pode ser à revelia da vontade do ocupante, embora redundante, pois que clandestina e astuciosamente pressupõem contra a vontade de quem de direito. Não pode haver determinação judicial ou as hipóteses legais permitidas, por exemplo, prestar socorro ou flagrante delito. Comando do art. 22, caput. Seu parágrafo primeiro acrescenta quem coage alguém, mediante violência ou grave ameaça, a franquear-lhe o acesso a imóvel ou suas dependências ou cumpre mandado de busca e apreensão domiciliar após as 21h ou antes das 5h. A pena é de detenção, de 1 a 4 anos, e multa, tanto para o caput quanto para o parágrafo primeiro.
O art. 23, parágrafo único, inciso II, criminaliza as condutas de omitir dados ou informações ou divulgar dados ou informações incompletos para desviar o curso da investigação, da diligência ou do processo. A pena é de detenção, de 1 a 4 anos, e multa.
Diante de toda explanação acima feita, estamos de acordo com os min. Azulay e Schietti quando cobram do Parquet uma atuação para coibir, processar e punir a prática ilegal cometida pelos agentes de segurança pública. A residência é expressão da intimidade do cidadão, que não pode ser violada sem justo motivo. Para isso basta analisar os autos de HC que chegam ao STJ.
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1. https://www.migalhas.com.br/depeso/397154/busca-pessoal-e-fundada-suspeita
2. https://www.migalhas.com.br/depeso/396959/a-prisao-em-flagrante-delito-na-invasao-de-domicilio
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LOPES Junior, Aury, Fundamentos do processo penal.-6.ed.- São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 44
LIMA, Renato Brasileiro de. –Salvador: Editora JusPodivm, 2020, p. 214-139
STJ, 5ª Turma, HC 779.479
STJ, 5ª Turma, AResp. 2.268.849
STJ, 5ª Turma, AResp. 2.223.319
STJ, 6ª Turma, Resp. 2.101.494
STF, RE 1.342.077/SP