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É possível promover antecipadamente uma “absolvição sumária” de interessados nos processos dos Tribunais de Contas?

Pluralidade de interessados em processos de contas nos Tribunais de Contas pode levar anos para julgamento conjunto, mesmo com provas de regularidade, prolongando a espera pela quitação.

5/4/2024

Uma situação bastante comum no âmbito dos Tribunais de Contas é a da pluralidade de interessados respondendo conjuntamente em processos de contas (v.g. auditorias especiais e tomadas de contas especiais) que, por vezes, podem tramitar por muitos anos.

Em tal cenário, mesmo um interessado que já tenha em seu favor elementos de prova capazes de justificar o bom e regular emprego de recursos públicos “na conformidade das leis, regulamentos e normas emanadas das autoridades administrativas competentes” (art. 93 do decreto-lei 200/67 e art. 145 do decreto 93.872/86) e assim elidir sua responsabilização, finda por ter de aguardar o julgamento em conjunto com outros interessados para que seja conferida quitação nas suas contas.

Mas, tal quadro é irreversível? Não há possibilidade de, havendo sólidos elementos que atestem a ausência de responsabilidade de um determinado interessado, que seja promovido uma antecipação de julgamento que permita de pronto quitar as contas daquele interessado e dar seguimento ao processo de contas com relação aos demais?

Pois bem, o art. 355 do CPC estabelece que o juiz julgará antecipadamente o pedido, proferindo sentença com resolução de mérito em duas situações: Quando não houver necessidade de produção de outras provas e quando o réu for revel nas hipóteses em que se admite serem presumidas verdadeiras as alegações de fato formuladas pelo autor e, mesmo assim, não houver requerimento de prova.

Na sequência, em complemento, o CPC preconiza em seu art. 356 que o juiz decidirá parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela dele mostrar-se incontroverso ou estiver em condições de imediato julgamento, nos termos do já mencionado art. 355.

Dito isso, diga-se que num processo de tomada de contas especial instaurado por uma fundação pública federal em razão de supostas irregularidades na execução de um contrato administrativo que tinha por objeto a prestação de serviços de transporte executivo a servidores e dirigentes, o TCU imputou débito e aplicou multa à empresa contratada ao mesmo tempo em que determinou que fosse apurada a eventual participação dos dirigentes usuários dos serviços estabelecidos no contrato administrativo na consumação do débito, que fossem quantificados os eventuais prejuízos que pudessem ser atribuídos individualmente a tais agentes, e, se fosse o caso, que eles fossem citados para responder pelo valor do prejuízo apurado.

A empresa contratada opôs embargos de declaração alegando que o débito era controvertido e ilíquido e que ela só poderia ser responsabilizada quando fosse apurada a responsabilidade dos dirigentes da fundação pública federal.

Analisando o caso, o plenário do TCU prolatou o acórdão 929/19 asseverando que “é possível o julgamento antecipado parcial do mérito de processo de controle externo, quando satisfeitos os requisitos estabelecidos nos arts. 355 e 356 do Código de Processo Civil, aplicado subsidiariamente aos processos do TCU”.

Ora, tendo como premissa o que a doutrina leciona acerca do julgamento antecipado do méritoi, ii, ii, iv não há motivo para não aplicar, mutatis mutantis, o entendimento manifestado no acórdão 929/19 TCU – Plenário para promover em separado o julgamento das contas de um interessado que já tenha em elementos que elidam sua responsabilidade sem prejuízo de dar seguimento ao processo com relação a outros interessados.

Isso posto, resta claro que os arts. 355 e 356 do CPC têm o condão de permitir um julgamento em separado de um interessado que tenha conseguido provar o bom e regular emprego de recursos públicos com relação a outros que ainda precisam ser submetidos a uma instrução processual mais detida no âmbito dos Tribunais de Contas.

Mas, além da aplicação supletiva e subsidiária do CPC aos processos de contas (permitida nos termos do art. 15 daquela norma), o julgamento apartado de um interessado que seja beneficiário de elementos que já permitam a quitação de suas contas encontra albergue no Código de Processo Penal.

Conforme bem reconheceu o TCE/MG, os processos de contas são penaliformese estão inseridos na esfera do direito sancionador, razão pela qual não há prejuízo de lhes serem aplicados de forma subsidiária, os regramentos contidos no CPP, algo que, por exemplo, já foi feito pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sulvi.

Destarte, por que não aplicar o art. 397 do CPPvii para promover, no âmbito dos Tribunais de Contas, a “absolvição sumária” de um interessado para quitar-lhe as contas em casos de, por exemplo, manifesta causa excludente da ilicitude do fato ou de manifesta causa excludente da culpabilidade?

Veja, para Renato Brasileiroviii o art. 397 do CPP “permite que, no limiar do processo, e antes mesmo de iniciada a instrução probatória em juízo, seja o acusado absolvido sumariamente, desde que presente uma das hipóteses ah elencadas”, de modo que, aplicando-se tal entendimento para a realidade dos Tribunais de Contas, resta evidente a possibilidade de um interessado ter suas contas julgadas e quitadas, ao passo que o processo de contas siga para apurar a responsabilidade de outros interessados que não atendam os requisitos para serem beneficiários de uma “absolvição sumária”.

Assim, ao final, ante ao que dispõem o inciso LXXVIII do artigo 5º da CF/88ix e o art. 8º, 1, da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário), podemos asseverar que, seja com base no CPC, seja com base no CPP, é sim possível se promover, no âmbito dos Tribunais de Contas, um julgamento antecipado das contas de um interessado mesmo que haja a necessidade de a instrução processual seguir com relação a outros interessados.

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“O rotineiro, como se sabe, é a extinção do processo após a realização da fase instrutória, quando o magistrado então, enquanto destinatário da prova, dispõe dos elementos necessários para formação de seu convencimento. Ocorre que postergar a extinção do processo pode não se justificar quando a fase destinada à produção de provas se mostrar desnecessária. Por isso, o art. 355 do Código de Processo Civil autoriza o magistrado a proferir sentença desde logo, com o acolhimento ou com a rejeição do pedido formulado na demanda, nos termos do art. 487, inciso I, logo após o fim da fase postulatória. O julgamento antecipado, a propósito, não é uma faculdade judicial, mas sim um verdadeiro dever imposto ao juiz, uma vez presentes os requisitos que o autorizam. Não se há de falar em faculdade judicial quando posto o magistrado diante da necessidade de atender aos escopos do processo, no caso a pacificação social em tempo razoável. Não há violação ao direito à prova (‘cerceamento de defesa’) no julgamento antecipado do mérito (da lide) quando o órgão jurisdicional entender que o processo está suficientemente instruído, declarando por decisão motivada a desnecessidade de dilação probatória por se tratar de matéria de direito ou de fato e de direito e for prescindível a instrução.” (Lucon, Paulo Henrique Santos, Código de Processo Civil anotado / Coordenado por José Rogério Cruz e Tucci, Manoel Caetano Ferreira Filho, Ricardo de Carvalho Aprigliano, Sandro Gilbert Martins, Rogéria Fagundes Dotti (Coord.), Curitiba: AASP, OAB/PR, 2015,págs. 597/588)

ii “Pela regra novel, o juiz poderá julgar antecipadamente o pedido quando não houver necessidade de produção de outras provas e quando o réu for revel ocorrer o efeito previsto no art. 344 (que dispõe acerca da presunção de veracidade das alegações de fato feitas pelo autor) e não houver requerimento de prova na forma do art. 349. (Milhoranza, Mariângela Guerreiro e Pires, Luís Augusto da Rocha, Novo código de processo civil anotado / OAB. – Porto Alegre: OAB RS, 2015, pág. 292)

iii “O art. 355 também regula hipótese de julgamento conforme o estado do processo, mas em que será desde logo proferida a verdadeira sentença de mérito, ou seja, aquela que julga procedente ou improcedente o pedido do autor (art. 487, I). Trata-se do julgamento antecipado do mérito, que se dá quando o juiz verifica que o processo já se encontra maduro para ser julgado, não havendo necessidade de se instaurar a fase instrutória, para produção de provas.” (Wambier, Teresa Arruda Alvim; Conceição, Maria Lúcia Lins; Ribeiro, Leonardo Ferres da Silva e Mello, Rogerio Licastro Torres de, Primeiros comentários ao novo código de processo civil: artigo por artigo, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, págs. 844/845)

iv “O art. 355, CPC, prevê a possibilidade de julgamento antecipado do mérito. Porém, trata-se na realidade de julgamento imediato do mérito. Não há propriamente julgamento antecipado, mas sim julgamento imediato diante da desnecessidade do prosseguimento do feito para instrução em audiência. O mérito da causa é julgado no momento devido. Sendo o caso de julgamento imediato, qualquer demora em examinar o mérito importa em violação do direito fundamental à duração razoável do processo (arts. 5.º, LXXVIII, CF, e 4.º, CPC), porque implica dilação indevida na resolução da causa.” (Marinoni, Luiz Guilherme; Arenhart, Sérgio Cruz e Mitidiero, Daniel, Novo código de processo civil comentado, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, pág. 559)

v "Com efeito, a Lei federal n. 14.039/2020 promoveu alterações à Lei 8.906/1994 (Estatuto da OAB) e no Decreto-Lei 9.295/1946 (Cria o Conselho Federal de Contabilidade, define as atribuições do Contador e do Guarda-livros, e dá outras providências), reconhecendo que os serviços profissionais de contabilidade e advocacia são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada, nos termos da lei, a notória especialização da empresa ou do profissional, tratando-se de norma mais benéfica, entendo que deva ser aplicada às ações fiscalizatórias do Tribunal de Contas em curso, que são, em verdade, de conteúdo punitivo, emanantes do Direito Administrativo Sancionador Estatal, possuindo, assim, caráter 'penaliforme', o que faz com que se aproximem, ao menos principiologicamente, aos estabelecimentos e princípios próprios do Direito Penal. Tal interpretação é a mesma adotada pelo STJ no que diz respeito às ações de improbidade administrativa. Nesse aspecto, tratando-se de norma mais benéfica, entendo que deva ser aplicada às ações fiscalizatórias do Tribunal de Contas em curso, que são, em verdade, de conteúdo punitivo, emanantes do Direito Administrativo Sancionador Estatal, possuindo, assim, caráter 'penaliforme', o que faz com que se aproximem, ao menos principiologicamente, aos estabelecimentos e princípios próprios do Direito Penal. Tal interpretação é a mesma adotada pelo STJ no que diz respeito às ações de improbidade administrativa." (TCE/MG, Processo nº 1104868, Recurso Ordinário, Pleno)

vi "(...) quando apreciado o respectivo Processo de Contas, não se evidenciou qualquer surpresa no fato de se lhes destinar a imposição de mesma pena pecuniária, fixação de débitos e, diante das evidências então apresentadas, de juízo em desfavor de suas Contas de Gestão. Contra a decisão, como antes referido no exame da admissibilidade, irresignaram-se os dois Administradores, porém, o presente reclamo não pôde ser conhecido relativamente ao Vice-Prefeito, que, devidamente intimado, não juntou instrumento de mandato aos autos. À toda evidência, nesse particular contexto, manter-se o decisum a quo a apenas um dos Interessados parece configurar violação ao disposto no artigo 5º, caput, da Constituição Brasileira, uma vez que se justificaria, no caso, certa irradiação de efeitos à pessoa do Senhor (...). Trago à colação, como supedâneo a essa linha de entendimento, analogicamente, o disposto no artigo 580 do Código de Processo Penal, onde se estatuiu: “Art. 580 – No caso de concurso de agentes (Código Penal, art. 25), a decisão do recurso interposto por um dos réus, se fundada em motivos que não sejam de caráter exclusivamente pessoal, aproveitará aos outros.” Observo, a propósito, que a reversão do julgamento ora focada, bem assim a elisão de glosas e a redução do valor da penalidade pecuniária declinadas no presente voto, tal qual a exigência das disposições do CPP para a irradiação de efeitos, dão-se por aspectos atinentes à análise da natureza das irregularidades, e não em função de elementos subjetivos, vinculados à pessoa ou à ação específica dos Recorrentes. Da mesma forma, embora a rigor não se molde a relação processual na Corte à figura do litisconsórcio, não há como deixar de referir a previsão do artigo 509 do Código de Processo Civil, garantindo a propagação de efeitos da interposição de recursos a todos os que, nessa condição, não tenham interesses distintos ou conflitantes." (TCE/RS, Processo nº 009154-0200/08-9, Embargos de Declaração, Pleno)

vii Art. 397. Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste Código, o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar: (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008).

I - a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

II - a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade; (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

III - que o fato narrado evidentemente não constitui crime; ou (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

IV - extinta a punibilidade do agente. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

viii Lima, Renato Brasileiro de, Código de Processo Penal Comentado, 2ª. ed. rev. e atual., Salvador: Juspodivm, 2017, pág. 1.115.

ix “Diante do novo inciso LXXVIII do art. 5° da CF/88, com a previsão da duração razoável do processo como garantia constitucional do cidadão, nosso posicionamento é cristalino no sentido de que o Estado é responsável objetivamente pela exagerada duração do processo, motivada por culpa ou dolo do juiz, bem como por ineficiência da estrutura do Poder Judiciário, devendo indenizar o jurisdicionado prejudicado – autor, réu, interveniente ou terceiro interessado -, independentemente de sair-se vencedor ou não na demanda, pelos prejuízos materiais e morais.” (Hoffman, Paulo, Razoável Duração do Processo, São Paulo: Quatier Latin, 2006, pág. 99) advpablosouza@gmail.com

Aldem Johnston Barbosa Araújo
Advogado em Mello Pimentel Advocacia. Membro da Comissão de Direito à Infraestrutura da OAB/PE. Especialista em Direito Público.

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