No vocabulário popular brasileiro, volta e meia nos deparamos com a seguinte expressão: “Quando um não quer, dois não brigam”.
Em uma reflexão um pouco mais profunda sobre o significado dessa expressão – que faz parte do inconsciente coletivo do nosso povo – começo a divagar sobre o aspecto intrínseco subjetivo que permeia a relação interpessoal que, em uma determinada linha de raciocínio, ela reflete. Me vêm à mente as ideias de paridade e escolha entre os sujeitos envolvidos.
E por que paridade e escolha? A resposta, na minha opinião, é simples. Porque cada um, respeitando suas respectivas limitações, tem a faculdade de realizar ou não um determinado ato. Fazer ou não fazer. Ajuizar ou não ajuizar.
Recorrer ou não recorrer. A escolha é livre – ou, ao menos, deveria ser!
O art. 1.021, § 4º do CPC/15 traz, em seus ditames, enraizada, a possibilidade de aplicação de uma multa, que pode variar entre um e cinco por cento do valor atribuído à causa, à parte que interpuser agravo interno que vier a ser declarado manifestamente inadmissível ou improcedente em votação unânime, fundamentada, pelo órgão colegiado do respectivo Tribunal, que deverá ser paga ao agravado. O § 5º, por seu turno, condiciona a interposição de qualquer outro recurso ao depósito prévio do referido valor, com exceção à Fazenda Pública e ao beneficiário de gratuidade da justiça, que farão o pagamento ao final.
Por inúmeras vezes já me peguei pensativo, tentando entender a mens legis que existe por trás dessa norma, e outra constatação não me vêm, senão a de que se trata de uma norma de caráter repressor/intimidador, a ponto de se abrir a possibilidade de, em um processo de execução, um determinado credor passar a ser devedor de seu próprio devedor, em até cinco por cento do valor que representar os direitos que busca ver resguardados pelo Judiciário, caso o seu entendimento sobre o assunto em apreço venha a ser julgado/entendido como abusivo ou protelatório. E mais, obriga o agravante/credor a depositar o valor da multa, caso queira interpor qualquer recurso em relação à decisão proferida.
É óbvio que, como operador do direito, não desconheço toda a celeuma que envolve o abarrotamento do Poder Judiciário – público e notório! – e que esse dispositivo, de certa forma, contribui para a amenização quantitativa dessa “superlotação institucionalizada” de processos, mas, particularmente – e isso é um posicionamento pessoal meu –, acredito que poderia haver outras formas, que não essa, para se tentar solucionar a questão. Aliás, a meu ver, abusiva e protelatória já foi uma das partes, normalmente, a ré ou executada, ao, via de regra, dar causa ao ajuizamento da demanda, ante o não cumprimento de uma determinada obrigação e, para isso, infelizmente, não há multa estabelecida na nossa legislação.
Não há, por exemplo, multa estabelecida à parte requerida que vê julgado procedente, em seu desfavor, um incidente de desconsideração da personalidade jurídica, por meio do qual se reconhece toda uma gama de atos praticados no intuito de blindar patrimônio em detrimento de credores lesados, em nítido desrespeito, inclusive, ao próprio Poder Judiciário. Enfim, àquele que escolhe, deliberadamente, praticar atos tendentes a ludibriar seus credores e, de certa maneira, toda a sociedade, não há qualquer imputação de multa. Mas isso é assunto para um outro momento.
Situações assim devem ser repensadas pelos nossos legisladores.
A subjetividade que permeia a imposição da sanção ora em comento atenta contra a segurança jurídica, tão almejada e necessária no nosso ordenamento pátrio.
Simplesmente tolher – na prática, é isso que ocorre – o direito de ver seus argumentos recursais analisados por um órgão colegiado – imputando-lhe, ainda que indiretamente, um injusto (a meu ver) receio de que o seu entendimento defendido possa não vir a ser compreendido da melhor maneira, e, via de consequência, punido com multa -, desrespeita o princípio do livre acesso ao Judiciário/inafastabilidade do controle jurisdicional – art. 5º, inciso XXXV da CF/88 –, um dos cernes basilares de nosso ordenamento jurídico.
Afronta também, ainda que de maneira velada, a já arraigada necessidade de esgotamento das instâncias ordinárias, no intuito de se conseguir submeter, às superiores instâncias, seus reclamos. Alguns exemplos são as súmulas 207 do STJ e 281 do STF, que trazem:
Súmula 207/STJ: É inadmissível recurso especial quando cabíveis embargos infringentes contra o acórdão proferido no Tribunal de origem. (Corte Especial, julgado em 01/04/1998, DJ 16/04/1998, p.44).
Súmula 281/STF: É inadmissível o recurso extraordinário, quando couber na Justiça de origem, recurso ordinário da decisão impugnada. (Sessão Plenária de 13/12/63. Súmula da Jurisprudência Predominante do STF - Anexo ao Regimento Interno: Imprensa Nacional, 1964, p. 128).
Não à toa, a jurisprudência das nossas Cortes Superiores ressoa os respectivos entendimentos, senão vejamos:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. APELO EXCEPCIONAL INTERPOSTO CONTRA DECISÃO MONOCRÁTICA DO RELATOR. AUSÊNCIA DE EXAURIMENTO DAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. SÚMULA 281/STF. AGRAVO INTERNO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1.
Não se pode conhecer do recurso especial interposto contra decisão monocrática tendo em vista a inexistência do necessário esgotamento das instâncias ordinárias. Aplicação, por analogia, da súmula 281 do STF. 2. "A existência de decisão colegiada em sede de embargos de declaração não tem o condão de afastar a necessidade de interposição do agravo interno, porquanto este é o recurso apto a levar ao órgão coletivo a apreciação da questão debatida nos autos nos termos do art. 1.021, § 2º, do CPC" (AgInt no AREsp 1.418.179/PA, rel. ministra Nancy Andrighi, 3ª turma, DJe 29/5/19). 3. Agravo interno a que se nega provimento. (STJ, AgInt no AREsp 2.073.062/SP, relator ministro Paulo Sérgio Domingues, 1ª turma, julgado em 13/2/23) (grifo nosso)
AGRAVO INTERNO NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. INTERPOSIÇÃO SIMULTÂNEA DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO E RECURSO DE REVISTA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA UNIRRECORRIBILIDADE RECURSAL. AUSÊNCIA DE ESGOTAMENTO DE INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. SÚMULA 281 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PRECEDENTES. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. A interposição simultânea de recurso extraordinário e de incidente de uniformização de jurisprudência, ambos com o objetivo de reformar o mesmo capítulo de acórdão de turma recursal, ofende o princípio da unirrecorribilidade recursal. 2. Incide, na espécie, a orientação da súmula 281 do STF, ante a ausência de esgotamento das vias recursais ordinárias. 3. Agravo interno desprovido, com imposição de multa de 5% do valor atualizado da causa (art. 1021, § 4º, do CPC). 4. Honorários advocatícios fixados ao máximo legal em desfavor da parte recorrente, caso as instâncias de origem os tenham fixado, nos termos do art. 85, § 11, doCPC, observados os limites dos §§ 2º e 3º e a eventual concessão de justiça gratuita. (STJ, ARE 1.350.107 AgR, relator ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 14/2/22) (grifo nosso)
Convém salientar ainda que, sobre o tema, a Corte Especial do STJ, em sessão eletrônica finalizada em 13/6/23, afetou o REsp 2.043.826/SC (2022/0392963-8, autuado em 2/12/22) – Tema 1.201 – como representativo de controvérsia, em que discute-se sobre os critérios de aplicação da multa prevista no § 4º do art. 1.021 do CPC, representados em duas vertentes, quais sejam: a) aplicabilidade da multa prevista no §4º do art. 1.021 do CPC quando o acórdão recorrido baseia-se em precedente qualificado (art. 927, III, do CPC); e b) sobre a possibilidade de se considerar manifestamente inadmissível ou improcedente (ainda que em votação unânime) agravo interno cujas razões apontam a indevida ou incorreta aplicação de tese firmada em sede de precedente qualificado.
O julgamento do referido tema ainda não foi pautado pelo STJ. Porém, o simples fato de ele ter sido afetado ao rito de julgamento dos recursos repetitivos já nos remete à ideia da importância e, principalmente, da necessidade de se obter parâmetros certos e específicos que legitimem e preencham essa lacuna, que tragam a tão almejada segurança jurídica aos jurisdicionados, a fim de que possam exercer, em sua plenitude, os direitos que lhes são constitucionalmente garantidos.