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Desafios e avanços na implementação do julgamento com perspectiva de gênero no judiciário brasileiro

A importância da Resolução 492 do CNJ para uma justiça de gênero. Avanços significativos e desafios persistentes

4/4/2024

Desde a implementação obrigatória do julgamento com perspectiva de gênero no sistema de justiça brasileiro, regulamentada pela resolução 492, de 17/03/2023, do CNJ - em resposta à condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) -, três correntes principais surgiram entre as pessoas profissionais do direito: as entusiastas, as contrárias e as indiferentes. 

Entre as entusiastas, destacam-se defensoras e defensores de direitos humanos, bem como juristas feministas, sem limitações a estes grupos. Em contrapartida, há quem advogue pela preservação da imparcialidade, argumentando que ela se encontra em risco sempre que se evoca o conceito de “gênero”. Existem, ainda, as pessoas que veem a perspectiva de gênero como uma “moda passageira”.

Neste cenário multifacetado, torna-se evidente que a indiferença é uma postura insustentável a longo prazo, sobretudo diante do compromisso assumido pelo estado brasileiro junto à Corte IDH. Portanto, uma questão fundamental se apresenta: o que é um julgamento com perspectiva de gênero?

A perspectiva de gênero, quando aplicada ao direito, constitui uma abordagem interpretativa e procedimental que complementa os métodos tradicionais, destacando a necessidade de uma interpretação atenta às realidades sociais e às desigualdades estruturais. Ela se distingue dos modelos convencionais pela rejeição à ideia de que a imparcialidade é atingida por meio de julgamentos abstratos e desvinculados do contexto social. 

A introdução da perspectiva de gênero no judiciário brasileiro representa um avanço significativo, alinhando-se a movimentos similares na América Latina, como o exemplo do México, que inspirou nosso protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Essa evolução reflete décadas de debates, reflexões e proposições feministas. No entanto, sua efetivação ainda demanda a superação de paradigmas interpretativos arraigados, tais como as concepções de neutralidade e imparcialidade.

A formulação e interpretação das leis estão intrinsecamente ligadas às influências culturais e sociais da sociedade. Historicamente, o sistema jurídico desenvolveu-se sob uma perspectiva androcêntrica, sustentada pela crença de que a aplicação de princípios universais seria suficiente para garantir a imparcialidade das normas. Contudo, essa abordagem falha ao ignorar as diversidades econômicas, culturais, sociais e de gênero, perpetuando uma visão formalista que não corresponde à realidade social, e favorecendo assim a perpetuação de estruturas de poder em detrimento da promoção de uma justiça mais substantiva .

A atenção às desigualdades entre homens e mulheres, que resultam em vantagens para o primeiro grupo em detrimento do segundo, não constitui uma inovação no direito brasileiro. A desigualdade de gênero tem sido considerada, especialmente em contextos de violência doméstica e familiar, desde a promulgação da lei Maria da Penha. 

O elemento distintivo atual é a exigência de incorporar a perspectiva de gênero de maneira ampla na prática jurisdicional, abarcando todas as esferas e níveis do poder judiciário. Esta abordagem é sustentada tanto pela normatização de treinamentos anuais para juízes e juízas quanto pela criação de um banco de sentenças e decisões , para apoiar a aplicação da resolução CNJ 492/23.

O caso da sobrepartilha julgado pelo tribunal paranaense

Recentemente, o TJ/PR analisou uma apelação em ação de sobrepartilha que ilustra o “modo de fazer” um julgamento com perspectiva de gênero, especialmente em questões probatórias. É relevante mencionar que esse acórdão não está disponível no banco de sentenças e decisões do CNJ, que se concentra em violência doméstica, familiar e litígios trabalhistas de danos morais e assédio sexual. Essa ausência ressalta a necessidade de expandir a variedade de casos no repositório, enriquecendo não só a formação da magistratura, mas também de outros sujeitos processuais.

A sobrepartilha envolvia um imóvel e um automóvel. O imóvel, herança recebida pela mãe do ex-marido, foi inicialmente dividido entre ele e seus irmãos. Um terço dessa herança, pertencente à mãe, foi doado ao ex-casal, que posteriormente adquiriu as partes dos irmãos. Realizaram benfeitorias na propriedade e compraram mobília, porém, a transferência formal da propriedade para o nome de ambos não ocorreu. Quanto ao automóvel, um Toyota Corolla financiado foi utilizado como parte do pagamento na compra de um Ford Ka, veículo este registrado em nome da irmã do ex-marido devido a dificuldades de crédito do ex-casal.

 Com a inicial, a ex-esposa apresentou uma variedade de provas documentais, que incluíam boletos do IPTU, notas fiscais de materiais de construção, fotografias do imóvel à venda, boletos de financiamento do veículo, além de notas fiscais e faturas de serviços “sem parar”. Apesar disso, o julgador de primeira instância determinou a emenda da petição inicial com provas concretas da titularidade dos bens. A autora, por sua vez, argumentou que os contratos de compra e venda informais estavam sob posse exclusiva do ex-marido. Por conseguinte, pleiteou a inversão do ônus da prova, propondo que caberia ao ex-cônjuge a responsabilidade de apresentar tais documentos. Insatisfeito, o julgador indeferiu a petição inicial, entendimento que se manteve mesmo com a oposição de embargos de declaração. 

A ex-esposa recorreu ao TJ/PR; a Apelação Cível nº 0005144-90.2023.8.16.0045 foi relatada pelo desembargador Eduardo Augusto Salomão Cambi, integrante da 12ª Câmara Cível, e julgada em março de 2024.

O julgamento com perspectiva de gênero: modo de fazer a aprendizados

A análise do voto destaca a preocupação do relator com o papel do estado-juiz no combate às desigualdades de gênero, com ênfase no direito das famílias e sucessões. Ele inicia sua fundamentação jurídica ressaltando a vulnerabilidade das mulheres durante a dissolução matrimonial, em face do elevado risco de feminicídio. Para embasar sua afirmação, ele referencia o dossiê mulher 2021, que compila estatísticas sobre a vitimização feminina.

A partir da constatação da realidade social, o julgador enfatiza a importância de uma postura vigilante do estado-juiz frente às dinâmicas matrimoniais e à posição de cada cônjuge, visando decisões equânimes. Embora não mencione explicitamente, a análise do caso se valeu do princípio da igualdade substancial como “ferramenta analítica e guia interpretativo para decisões atentas a gênero”, como sugere o CNJ em seu guia para a magistratura. 

Ao analisar o caso e observar a recorrente em uma “situação de vulnerabilidade probatória”, o magistrado questionou-se, conforme orientação do CNJ, se, “mesmo não havendo tratamento diferenciado por parte da lei, há aqui alguma desigualdade estrutural que possa ter um papel relevante no problema concreto?” Em resposta a essa indagação, constatou que o ex-cônjuge foi e continua sendo o gestor do patrimônio comum e que exigir da autora a apresentação das provas já na petição inicial resultaria em lhe atribuir um “ônus probatório diabólico”, in verbis:

Nessa esteira, até para mitigar um possível ônus probatório diabólico da demandante (e possibilitar, inclusive, a aplicação da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, prevista no artigo 373, § 1º, do CPC), deve-se adotar as providências necessárias para que, no curso do processo, em sendo possível, sejam ouvidas testemunhas em juízo, bem como apresentados os documentos relacionados os bens descritos na petição inicial, que supostamente se encontram sob a posse do réu, a fim de permitir uma análise mais aprofundada da questão narrada.

Assim analisando, a apelação foi provida para cassar a decisão recorrida e determinar que, “observada a vulnerabilidade probatória  da autora e adotados os meios necessários para eliminá-la, os autos retomem seu curso natural perante o juízo de origem.” Essa conclusão foi possível porque o julgador incorporou a perspectiva interseccional de gênero em todas as etapas da atividade jurisdicional, inclusive na análise das provas.

O caso em destaque demonstra que julgar com perspectiva de gênero é uma abordagem interpretativa que pressupõe a indissociabilidade entre a prestação jurisdicional e a realidade material e histórica das partes envolvidas - incluindo o próprio julgador ou julgadora, enquanto sujeito histórico. Ao tomar consciência dessas implicações, é essencial adotar uma opção interpretativa que não apenas elimine tratamentos desiguais ou discriminatórios, mas também proteja, da forma mais abrangente possível, os direitos das partes. 

É importante observar que nosso ordenamento jurídico, tanto em âmbito nacional quanto regional, com especial atenção às convenções de direitos humanos ratificadas pelo país, oferece as respostas necessárias para as questões de gênero. Nesse contexto, cabe ao magistrado e à magistrada formular perguntas pertinentes para garantir o acesso das mulheres à justiça , considerando a complexidade das relações de gênero. A análise de gênero, quando feita do ponto de vista das mulheres, transcende a visão delas como meramente um grupo subordinado, pois é essencial compreender os benefícios advindos dessa subordinação e como o poder se manifesta nas relações de gênero .

Outro aspecto já enfatizado neste texto diz respeito à ausência da decisão analisada no banco de sentenças e decisões; essa lacuna é significativa. A iniciativa de manter um repositório especializado é fundamental para a formação continuada e deve ser considerada uma das prioridades do CNJ. A atualização e expansão desse banco com casos que exemplifiquem o modo de proceder são passos essenciais: eles permitem a disseminação de boas práticas e a construção de uma cultura jurídica mais comprometida com os direitos humanos das mulheres e meninas.

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1 Protocolo para Julgamento com Perspectiva Gênero, 2021, p. 43.

2 O documento, elaborado em 2021 por um Grupo de Trabalho designado pelo (CNJ, serve como um guia para a magistratura, visando o julgamento com perspectiva de gênero no Brasil.

3 A este respeito ver Alda Facio (1996) e Salete da Silva (2024).

4 Protocolo para Julgamento com Perspectiva Gênero, 2021, p. 40.

5 https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-de-genero/

6 Idem, ibidem.

7 O voto analisado apresenta jurisprudência daquele tribunal que reconhece situação de vulnerabilidade probatória.

8 Recomendação CEDAW n. 33, parágrafo 15.

9 Este respeito ver Alda Facio (1996)..

Emilleny Lázaro da S. Souza
Advogada especializada em Direito Civil e Processo Civil, com ênfase em Direito das Famílias e Sucessões. Atualmente, cursando mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos na UFT/ESMAT.

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