Migalhas de Peso

Responsabilidade objetiva nos contratos de transporte: Desafios e debates necessários

Ignorar aplicação correta da responsabilidade objetiva pode trazer grandes malefícios para a sociedade e grave insegurança jurídica.

3/4/2024

Desde o século XIX houve uma retomada da responsabilidade civil objetiva em diversos países do sistema jurídico romano germânico, especialmente após o aumento da industrialização no mundo, que trouxe novas situações que antes não eram previstas em códigos.

Visando trazer uma maior proteção às vítimas, diversos países do mundo retomaram o instituto da responsabilidade civil objetiva, afastando-se assim da responsabilidade por culpa e buscando um sistema de responsabilidade por conta do risco da atividade. O Brasil, com seu sistema jurídico oriundo do romano germânico, não ficou de fora dessa revolução da responsabilidade civil.

Por mais nobre que seja a ideia de não permitir que uma vítima de dano não seja indenizada, evitando assim prejuízos para ela, a responsabilidade objetiva deve sempre ser analisada com parcimônia, lembrando-se de algo que parece escapar a muitos operadores de direito: a responsabilidade objetiva não pode ser confundida com responsabilidade automática.

O Brasil, como mencionado, não passou incólume pela mudança no paradigma da responsabilidade civil, de modo que além das mudanças que ocorreram ao longo do século XX, o CC/02 trouxe relevantes mudanças, saindo de um sistema de responsabilidade civil majoritariamente subjetiva para um código com um sistema que se pode dizer misto. 

Dentre as principais mudanças da responsabilidade e novidades da responsabilidade objetiva, encontra-se a responsabilidade civil do transportador, que no Código Civil é uma responsabilidade objetiva. O art. 734 do referido código1 é expresso em determinar que o transportador responderá pelos danos causados às pessoas transportadas, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula de excludente de responsabilidade.

A determinação acima traz um grande problema, pois ignora praticamente todas as excludentes de responsabilidade civil do direito brasileiro. Não são raros os casos de condenações de empresas de ônibus por conta de, por exemplo, assaltos ocorridos em suas linhas. Tais condenações, muitas vezes, são baseadas na súmula 187 do STF2, que determina que a responsabilidade contratual do transportador, por acidente com passageiro, não é elidida por culpa de terceiro. 

Referida súmula, aprovada em 1963, segue sendo utilizada como base para a condenação de transportadoras até os dias atuais, como se pode verificar da Apelação 0015786-67.2009.8.26.0229 (julgada em maio/19), em que uma transportadora foi condenada a indenizar um passageiro que foi esfaqueado no interior de um ônibus de linha municipal durante um assalto.

Ora, condenar uma transportadora por uma lesão sofrida por um passageiro durante um assalto nada mais é do que transferir a responsabilidade da segurança pública do Estado para uma empresa privada, algo que além de ser ilegal, não possui sequer embasamento lógico, afinal, o que se espera que as transportadoras façam? Coloquem seguranças armados em cada um de seus veículos? Isso não apenas encareceria o serviço como traria riscos de segurança ainda maiores para os passageiros. Os argumentos de que os assaltos, especialmente em certas linhas, são previsíveis e de que, portanto, a empresa não pode se furtar de responsabilidade é ainda mais absurdo, afinal, se há previsibilidade, por qual motivo o Estado não impede tais assaltos?

Ademais, condenar a transportadora por assalto nada mais é do que condenar a transportadora por ato de terceiro, o que desconsideraria uma das excludentes de ilicitude do direito brasileiro.

Mas não é apenas em relação à violência que é possível verificar a aplicação errônea da responsabilidade objetiva. Há uma vasta gama de questões que resultam na aplicação indevida da responsabilidade objetiva, como se ela representasse, em termos práticos, uma (inexistente) responsabilização automática.

Há casos de transportadoras por fretamento sendo penalizadas, por exemplo, por atrasos em suas viagens, independente do motivo que ocasione tais atrasos.

Desse modo, uma transportadora pode ser obrigada a indenizar um passageiro por um atraso em uma viagem mesmo que condições climáticas severas e a péssima limpeza urbana tenham causado uma enchente, impossibilitando o trânsito de veículos. Nessas situações, além de mais uma vez ignorar as responsabilidades do Estado em manter a limpeza das cidades, também se ignora o caso fortuito de chuvas ou eventos externos e extremos que impossibilitam a operação segura e rotineira de determinada atividade.

A ideia de não permitir que uma pessoa prejudicada não seja indenizada é nobre, contudo, não pode servir como justificativa para que se escolha a esmo um “responsável” para indenizar tal pessoa. 

A escolha de um “responsável” para indenizar a pessoa prejudicada sem que seja feita uma efetiva análise do fato que causou o prejuízo, automatizando a responsabilidade objetiva, nada mais é do que alterar quem foi o prejudicado nesse fato, que deixará de ser a pessoa originalmente prejudicada e passará a ser a pessoa ou empresa obrigada a arcar com a indenização, mesmo que a culpa pelos danos não possam ser imputados a ela. Assim, apenas se transfere o prejudicado da pessoa original para a pessoa ou empresa supostamente responsável.

A retomada da responsabilidade objetiva representou um grande avanço no sistema romano germânico e, consequentemente, no direito brasileiro, possibilitando que muitas vítimas que não seriam indenizadas no sistema da responsabilidade subjetiva não fossem obrigadas a arcar com prejuízos. No entanto, o uso desenfreado e o entendimento errado do instituto da responsabilidade objetiva, a ensejar quase que uma responsabilização automática, pode criar um outro cenário de injustiça, inclusive desconsiderando excludentes de responsabilidade que não à toa são previstas em nosso ordenamento.

As excludentes de responsabilidade civil existem por um motivo, de modo que ignorar a sua existência traz grandes malefícios para a sociedade, além de uma grande insegurança jurídica. Já passou da hora de os operadores do direito voltarem a estudar o instituto da responsabilidade objetiva e o aplicar do modo correto, resultando em um sistema jurídicos mais justo e igualitário para todos, afinal: não se pode, ao pretexto de se conferir justiça e proteger determinados bens jurídicos, criar injustiças reflexas por meio da violação de outros direitos igualmente previstos em lei. 

-------------------------

1 Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.

2 A RESPONSABILIDADE CONTRATUAL DO TRANSPORTADOR, PELO ACIDENTE COM O PASSAGEIRO, NÃO É ELIDIDA POR CULPA DE TERCEIRO, CONTRA O QUAL TEM AÇÃO REGRESSIVA

Samuel Bueno
Advogado especialista em Direito Civil do /asbz.

Rodrigo dos Santos Igreja Filgueiras
Advogado especialista em Direito Civil do /asbz.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Afinal, quando serão pagos os precatórios Federais em 2025?

19/12/2024

Discriminação nos planos de saúde: A recusa abusiva de adesão de pessoas com TEA

19/12/2024

Planejamento sucessório e holding patrimonial: Cláusulas restritivas societárias

20/12/2024

Decisão importante do TST sobre a responsabilidade de sócios em S.A. de capital fechado

20/12/2024

As perspectivas para o agronegócio brasileiro em 2025

20/12/2024