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Desdobramentos do caso Márcia Barbosa de Souza e outros vs. Brasil: Avaliação da sentença da comissão interamericana de direitos humanos

Promover direitos das mulheres e dialogar sobre gênero é crucial para o Estado Democrático de Direito. Porém, persistem desafios devido à misoginia e desigualdades estruturais, comprometendo a efetivação dos direitos legais das mulheres.

2/4/2024

A promoção dos direitos humanos das mulheres e a abertura de diálogos sobre gênero são pilares essenciais para consolidar o Estado Democrático de Direito. Contudo, devido à persistência da misoginia e à influência desigual do racismo, do capitalismo e do patriarcado na estrutura da sociedade brasileira, a efetivação dos direitos legais das mulheres é comprometida, revelando suas fragilidades. Segundo a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida como "Convenção de Belém do Pará", da Organização dos Estados Americanos, a violência contra a mulher é considerada uma violação da dignidade humana e uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens. Como o Brasil é signatário desse documento, tem o compromisso não apenas de tipificar os crimes de feminicídio em sua legislação, mas também de julgá-los através de investigações abrangentes e garantir um processo penal eficaz em um prazo razoável, assegurando a dignidade do corpo feminino.

Neste cenário, embora tenha havido um acordo, de acordo com os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no ano de 2022, os homicídios de mulheres apresentaram um aumento, totalizando 3.924 vítimas, representando um aumento de 0,9% em comparação com 2021. No Brasil, 36,6% dos assassinatos de mulheres foram categorizados como feminicídios, embora haja diferenças significativas entre os estados. A maior proporção ocorreu no Distrito Federal, onde 59,4% das mortes violentas foram classificadas como feminicídios. Isso evidencia não apenas deficiências na garantia dos direitos humanos das mulheres no Brasil, mas também a falta de políticas públicas eficazes para proteger o direito à vida e à dignidade das mulheres.

Márcia Barbosa, uma jovem negra nascida em Cajazeiras (PB), tinha 20 anos em 1998 quando foi assassinada na cidade de João Pessoa/PB pelo então deputado estadual Aércio Pereira de Lima. Ela era uma estudante que havia viajado para a capital em busca de oportunidades de emprego e aceitou trabalhar em uma fábrica de sapatos, emprego oferecido por Aércio Pereira de Lima. No dia 17/6/98, recebeu uma ligação do deputado estadual, com quem tinha contato desde novembro/97. Eles se encontraram no motel Trevo, de onde foi feita uma ligação do telefone dele para um telefone residencial em Cajazeiras/PB, a cidade natal de Márcia Barbosa. Durante essa ligação, ela conversou com várias pessoas. No dia seguinte, 18/6/98, um transeunte testemunhou a retirada de um corpo de um carro e seu posterior abandono em um terreno baldio no bairro Altiplano Cabo Branco. Mais tarde, foi confirmado que o corpo era o de Márcia Barbosa e que ela havia sido asfixiada por sufocamento, resultado de ação mecânica, além de ter sido vítima de outras agressões antes de sua morte.

No dia 19/6/98, deu-se início oficial à investigação sobre a morte de Márcia Barbosa nos registros do Inquérito Policial 18/98, com a realização de depoimentos e análise de provas periciais. Em 21/7/98, o delegado de polícia encarregado da investigação concluiu que todas as evidências coletadas apontavam para a autoria dos crimes pelo então deputado Aércio Pereira de Lima, com a participação de outras quatro pessoas, resultando no indiciamento de todos os envolvidos.

A situação era complicada, já que Aércio ocupava o cargo de deputado estadual, usufruindo assim da imunidade parlamentar prevista no art. 27, §1º, da Constituição Federal. Esse dispositivo estabelecia, em conjunto com o art. 53, §1º, da Constituição (na redação da época), que os parlamentares estaduais não poderiam ser processados criminalmente sem prévia autorização de sua respectiva casa legislativa desde a expedição do diploma. De acordo com o art. 104, XII, "b", da Constituição do Estado da Paraíba, o procurador-geral de Justiça iniciou uma ação penal contra Aércio em 8 de outubro/98 perante o Tribunal de Justiça, enfatizando que essa ação só poderia prosseguir se a Assembleia Legislativa da Paraíba concedesse autorização. Contudo, por duas vezes, em 17/12/98 e 29/9/99, a Assembleia Legislativa rejeitou essa autorização para dar continuidade à ação penal, sem fornecer qualquer justificativa.

Em 2001, com a promulgação da Emenda Constitucional 35, houve uma modificação na redação do art. 53 da Constituição da República. Após entrar em vigor em 21/12/01, o processamento de ações penais contra parlamentares por crimes cometidos após a diplomação não mais exigiria autorização prévia da respectiva casa legislativa. O tribunal competente, ao receber a denúncia feita pelo representante do Ministério Público, apenas informaria à casa legislativa correspondente, e somente por iniciativa de um partido político ali representado e mediante o voto da maioria de seus membros, o andamento do processo poderia ser suspenso.

Assim, em 14/3/03, teve início formalmente o processo criminal contra Aércio Pereira de Lima, perante o 1º Tribunal do Júri da Paraíba, sob o número 200.2003.800.562-1. Como não foi eleito para um cargo público nas eleições de 2002 e estava na condição de suplente de deputado estadual da coligação pela qual concorrera, Aércio não mais possuía a prerrogativa de foro conferida aos parlamentares. Por isso, a denúncia foi apresentada ao Tribunal do Júri. A circunstância de não ter sido eleito também pode ter contribuído para o prosseguimento do processo criminal, pois não mais poderia ser interrompido pela Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba.

No dia 26/9/07, Aércio foi sentenciado a 16 anos de reclusão por sua participação nos delitos descritos no art. 121, §2º, incisos II e III (quarta figura), e no art. 211, ambos do Código Penal, referentes a homicídio qualificado por motivo fútil, uso de asfixia e ocultação de cadáver. Ele recorreu em liberdade contra a decisão condenatória, mas o recurso ainda estava pendente de análise quando o ex-deputado faleceu, em 12/2/08, vítima de um infarto do miocárdio. As outras quatro pessoas suspeitas de envolvimento nos crimes atribuídos ao ex-deputado nunca foram formalmente acusadas.

Apesar de já não exercer mais o cargo de parlamentar na Paraíba, o corpo de Aércio foi velado no Salão Nobre da Assembleia Legislativa, e foi decretado luto oficial por três dias.

Em consequência do caso “Barbosa de Souza e outros Vs. Brasil”, e da notória disparidade de tratamento e valor atribuído pela sociedade aos corpos masculino e feminino, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil em setembro/21. Em 11/7/19, o caso foi encaminhado pela comissão para a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Após o processo regular, incluindo a apresentação de argumentos pelas partes envolvidas, a realização de audiências públicas e a submissão de escritos por seis amici curiae (incluindo pesquisadores, universidades e centros de ensino brasileiros), a sentença foi proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 7/9/21. Especificamente no que tange à questão da violência contra a mulher, a sentença incluiu uma série de medidas de reparação integral, incluindo a exigência de implementação de um protocolo nacional para investigação de feminicídios.

Além disso, a Corte também reconheceu a existência de uma cultura de tolerância à violência contra a mulher, que muitas vezes é romantizada, ao invés de rejeitada, e destacou que a imunidade parlamentar de Aércio Lima contribuiu para sua impunidade. Como parte das medidas de reparação integral, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou o seguinte conjunto de ações: a obrigação de investigar os fatos e identificar, julgar e, se necessário, punir os responsáveis; medidas de satisfação; medidas de reabilitação; garantias de não repetição (incluindo a adoção de um protocolo padronizado para investigar mortes violentas de mulheres por questões de gênero e a regulamentação da imunidade parlamentar); compensações financeiras; pagamento de custas legais e despesas; e o reembolso das despesas ao fundo de assistência jurídica das vítimas pelo Estado.

Essa decisão é paradigmática em vários aspectos. Foi a primeira vez que a corte condenou integralmente o Estado brasileiro em relação à temática da violência contra a mulher. A corte reconheceu que a violência contra as mulheres no Brasil é um problema estrutural e disseminado, concluindo que altos níveis de tolerância a esse tipo de violência estão diretamente ligados a altas taxas de feminicídio. Além disso, a corte evidenciou que o uso da imunidade parlamentar, sem qualquer indicação de arbitrariedade no exercício da ação penal que pudesse comprometer a autonomia do legislador, é manifestamente arbitrário e contribui significativamente para a impunidade observada neste caso. Também destacou a falta de investigação e processamento do caso com uma abordagem de gênero adequada, o que ficou evidente na condução das diligências investigativas, especialmente nos questionamentos sobre o comportamento e a sexualidade de Márcia. A corte observou que os estereótipos de gênero e os preconceitos pessoais dos investigadores influenciaram suas conclusões profissionais sobre os crimes contra a vítima, colocando em dúvida a credibilidade de Márcia como vítima. Para a corte, essas circunstâncias também evidenciaram a falta de diligência adequada por parte do Estado em identificar e processar todos os envolvidos nos crimes.

Assim como o homicídio de Márcia Barbosa foi emblemático para ilustrar a postura do Brasil diante da violência de gênero contra as mulheres, a sentença condenatória da Corte também demonstrou sua importância histórica. Esta foi a primeira condenação internacional do Brasil por feminicídio, destacando o aspecto de gênero que permeia esse grave problema social. A sentença observa que o crime contra a vítima foi claramente motivado por questões de gênero, além de influências econômicas e políticas, visto que o agressor era um homem que ocupava o cargo de deputado estadual da Paraíba. É crucial ressaltar que o corpo de Márcia foi encontrado em um terreno baldio com sinais de violência, enquanto o corpo de seu agressor, como mencionado anteriormente, foi velado no Salão Nobre da Assembleia Legislativa do Estado. Isso evidencia a disparidade de tratamento pela qual a sociedade, por meio de suas estruturas de poder, transmite a mensagem de quanto vale o corpo de um homem em comparação com a falta de valor atribuído ao corpo de uma mulher.

O feminicídio de Márcia Barbosa de Souza foi um ato brutal não apenas contra ela e sua família, mas também contra todas as mulheres do país, especialmente as jovens, pobres e negras. A repercussão desse caso provocou reflexões profundas no sistema de justiça, levantando questões sobre a aplicação dos princípios e tratados internacionais, bem como sobre métodos adequados de reparação para aqueles que enfrentam injustiças no acesso à justiça.

Ao analisar os fundamentos da sentença da Corte e considerar a influência do assassinato de Barbosa na elaboração do “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero 2021” pelo CNJ, é evidente que esse documento tem o potencial de contribuir significativamente para o debate sobre a necessidade de uma nova abordagem por parte dos profissionais do sistema de justiça em casos de violência de gênero. Essa abordagem deve ser crítica e eficaz, incorporando a perspectiva de gênero e reconhecendo as falhas sociais que perpetuam a desigualdade entre homens e mulheres. Mais importante ainda, deve-se reconhecer que a violência de gênero é um problema social que requer uma resposta adequada.

Como já mencionado, é evidente que a questão do feminicídio é um problema que diz respeito a todos: tanto ao Poder Judiciário, ao Executivo e ao Legislativo, quanto a toda a sociedade. Portanto, o Direito, enquanto instrumento social não neutro, precisa ser sujeito a discussões sociológicas que o humanizem e ofereçam a possibilidade de uma prestação jurisdicional justa. A análise do feminicídio neste estudo demonstra que o Direito, com todas as suas ferramentas de poder, muitas vezes se mostra conivente com as injustiças do patriarcado, dificultando ou até impedindo a efetivação dos direitos humanos daqueles que mais necessitam: mulheres, pessoas pobres e negras.

Finalmente, é evidente que o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero 2021 desempenha um papel crucial nas discussões de gênero dentro do sistema de justiça. Portanto, não deve ser simplesmente arquivado pelos Tribunais de Justiça do país, mas sim incorporado ao trabalho de todos os profissionais jurídicos para uma compreensão adequada do método interpretativo proposto, que é o julgamento com perspectiva de gênero. Devemos reconhecer que as decisões tomadas neste caso e em outros que passaram pela comissão e pela corte resultaram em transformações sociais significativas, especialmente no fortalecimento do sistema de combate à violência contra a mulher. No entanto, individualmente, essas decisões não são capazes de promover revoluções. É responsabilidade do Estado, das instituições e da sociedade civil trabalharem de forma colaborativa na busca pela realização e proteção dos direitos humanos no país.

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Dayanne Avelar
Advogada na Barreto Dolabella. Graduada em Direito pelo Instituto de Ensino Superior de Brasília (IESB) e possui experiência em assessoria jurídica e consultoria no contencioso cível.

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