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A tutela específica mitigada: A alteração do CPC pela lei 14.833/24

Lei 14.833 permite ao réu solicitar cumprimento de tutela específica antes de converter obrigação em perdas e danos, conforme alteração do CPC.

28/3/2024

A lei 14.833, de 27/3/24, foi aprovada para conferir ao réu a oportunidade de cumprir a tutela específica em caso de requerimento de sua conversão em perdas e danos. Com sua edição, foi acrescentado parágrafo único ao art. 499 do CPC. Este artigo passa a ter a seguinte redação: 

“Art. 499. A obrigação somente será convertida em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente. 

Parágrafo único. Nas hipóteses de responsabilidade contratual previstas nos arts. 441, 618 e 757 da lei 10.406, de 10/1/02 (Código Civil), e de responsabilidade subsidiária e solidária, se requerida a conversão da obrigação em perdas e danos, o juiz concederá, primeiramente, a faculdade para o cumprimento da tutela específica.” 

Esta nova disposição encontra-se em vigor desde a publicação oficial da lei 14.833 no Diário Oficial da União do dia 28/3/24. 

O texto da nova regra mitiga o direito à tutela específica. E sua redação gera algumas dúvidas. Examino o tema na obra CPC Comentado, que está sendo lançada neste momento pela Editora Revista dos Tribunais. Sintetizarei, aqui, o que no livro consigo tratar com mais vagar e profundidade. 

O art. 497 do CPC dispõe que, na ação que tenha por objeto o cumprimento de dever de fazer ou de não fazer, o juiz atuará no sentido de propiciar ao autor, 1.º) a tutela específica, e, 2.º) o resultado prático equivalente. 

A conversão em perdas e danos ocorrerá somente se impossível a tutela específica e a obtenção de resultado prático equivalente, ou ainda, se o autor assim o requerer. Essa é a regra geral prevista no caput do art. 499 do CPC, que, agora, ganhou importantes exceções em seu parágrafo único, de que tratarei adiante. 

Adoto concepção segundo a qual a tutela específica é a realizada com o intuito de obter, como resultado final, a própria conduta do demandado, tal como prevista em lei ou em contrato. Por resultado prático equivalente, tem-se a tutela jurisdicional realizada com o intuito de se obter o mesmo resultado final, mas através da atuação de terceiros (cf. o que escrevo em execução e cumprimento de sentença, 7.ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2023, p. 607 e ss.) 

A distinção tem grande relevância prática, repercutindo quanto aos meios executivos que podem ser manejados com o intuito de se obter o resultado pleiteado pelo autor da ação. Com efeito, sendo possível a obtenção da tutela específica, justifica-se o manejo de medidas executivas tendentes a forçar o cumprimento pessoal da obrigação pelo executado (medidas coercitivas, execução indireta). 

A primazia da tutela específica dos deveres de fazer e de não fazer e de entregar coisa (arts. 497 e 498 do CPC) encontra apoio no art. 5.º, XXXV, da CF/88. À luz desse preceito, tem-se que a Jurisdição se apresenta como atividade do Estado voltada à realização do direito, não só restaurando a ordem jurídica violada (isso é, após a ocorrência da lesão, ou do dano), mas, também, evitando que tal violação ocorra. Presente a ameaça de descumprimento de dever de fazer ou de não fazer, assim, deve-se propiciar o manejo de medidas executivas tendentes à obtenção de tutela específica ou do resultado prático equivalente. Naturalmente, admitindo-se a tutela preventiva, impõe-se também o reconhecimento de que é possível a realização de medidas repressivas (mesmo que simultaneamente à violação do direito), restitutória e ressarcitória (neste caso, sucessivas à violação do direito). 

Como se disse, a Constituição concebe a atividade jurisdicional como algo que não apenas possa restaurar a ordem jurídica violada, mas, também, que possa evitar. Sob este prisma, afirma-se que a tutela jurisdicional pode ser repressiva ou preventiva. 

A tutela repressiva é, evidentemente, sancionatória, mas opto por não usar tais expressões como sinônimas, pois adoto conceito mais amplo de sanção, que abrange mecanismos voltados à prevenção (cf. o que escrevi em execução e cumprimento de sentença cit., p. 607 ss.). 

Dispõe o parágrafo único do art. 497 do CPC que a tutela específica é “destinada a inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção”. Embora a lei processual tenha optado pela expressão “tutela inibitória”, prefiro utilizar o termo “tutela preventiva”, pois aquela expressão, tal como utilizada no direito italiano, de onde foi importada, liga-se, originariamente, à tutela que visa a impedir (que é sinônimo de inibir) a prática de um ato. A tutela preventiva é mais ampla, podendo dizer respeito, p. ex., também à imposição da prática (como ação positiva, portanto) de um ato que alguém, devendo fazê-lo, ameaça não realizar. A lei processual, de todo modo, usa o verbo “inibir” com relação a um evento (o ilícito) e não a um ato a ser praticado (ou não) pelo réu. 

Nesse contexto, a tutela preventiva visa compelir o obrigado a um fazer ou não fazer, ou seja, a uma prestação positiva ou negativa, como meio de evitar a ocorrência de ilícito e, com isso, a lesão aos bens jurídicos tutelados. 

Ocorrendo o ilícito, passam a ter lugar modalidades de tutela repressiva, como a ressarcitória – embora ainda possa ser possível a concessão de tutela voltada a impedir o prosseguimento da prática de ato considerado ilegal, ou que cause prejuízo à parte. A tutela ressarcitória pode assumir a forma de tutela pelo equivalente ou em forma específica: aquela consiste na transferência de um valor equivalente ao prejuízo que foi causado; o ressarcimento em forma específica, por sua vez, pode assumir as formas de tutela reintegratória ou de reparação em forma específica. 

Como examino de modo mais aprofundado no livro antes citado (Execução e cumprimento de sentença cit.), a tutela reintegratória consiste no retorno ao estado anterior, como se o ato lesivo não tivesse sido praticado. 

Em alguns casos, a tutela reintegratória exigirá, concomitantemente, a recomposição pecuniária, principalmente quando o dano já tiver sido causado e a reintegração for insuficiente para a completa reparação. A tutela reparatória pecuniária, na forma específica, consistirá em pagamento de uma indenização em dinheiro que baste para se retornar a situação material existente antes da lesão. 

A técnica prevista no art. 497 do CPC/15 é considerada atípica, e diz respeito a quaisquer deveres de fazer e de não fazer. P. ex., a ação de nunciação de obra nova, outrora prevista nos arts. 934 ss. do CPC/73 como técnica processual típica, tinha por finalidade impedir que se prejudicasse a propriedade vicinal ou se infringisse limitações administrativas ao direito de propriedade através da construção de obra nova, como, p. ex., para impedir a fixação de antena de telefonia celular, ou para impedir a construção que viole restrições urbanístico-ambientais. No contexto do CPC/15, a tal pretensão deve ser amparada pelo art. 497 do CPC, já que se está diante de ação voltada a impedir a violação de obrigação de não fazer ou, conforme o caso, de desfazer. A propósito, o § 1.º do art. 536 do CPC textualmente refere-se ao “desfazimento de obras” como uma das medidas que podem ser impostas pelo juiz. O direito substantivo correspondente àqueles tutelados por tal procedimento especial (não reproduzido no CPC/15) podem justificar o ajuizamento de ação fundada nos arts. 497 ss., cuja decisão será cumprida nos termos dos arts. 536 ss. do CPC.

Sendo a tutela voltada a evitar a ocorrência do ilícito, não se colocará a questão de se demonstrar a ocorrência de dano; se o dano já tiver ocorrido, podem atuar técnicas repressivas. Evidentemente, com isso não se pode afirmar que a proteção a bens jurídicos não seja contemplada no curso da criação da solução jurídica. Quando a lei considera ilícita determinada prática, significa que já se considerou a proteção a um bem jurídico que seria lesado se se permitisse a ocorrência de tal prática. É o que ocorre, p. ex., no caso previsto no art. 10, caput da lei 8.078/90: “O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança”. A tutela (imediata) contra um ilícito, assim, tem sempre em mira a tutela (mediata) contra um dano, ainda que seja desnecessário demonstrar o risco de dano, porque isso já foi considerado pela lei ao tipificar o ilícito. Poderá, no entanto, haver situações em que se deverá demonstrar a perspectiva de lesão, para justificar a tutela contra o ilícito, pois, ainda que isso não ocorra como regra, a lei pode considerar algo ilícito apenas se produzir algum resultado. 

Além disso, mesmo em se tratando de tutela contra o ilícito, a possibilidade de dano poderá ser levada em consideração em hipóteses em que se encontram em conflito direitos que gozem de proteção (pense-se, p. ex., no conflito entre direitos fundamentais), hipótese em que o discurso de que a proteção contra o ilícito prescinde da análise do dano (ainda que em mera perspectiva) poderá falhar. 

A primazia da tutela específica ou cede em duas situações, nos termos do caput do art. 499 do CPC: a) se o autor assim o requerer; ou b) se impossível a tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente. A primeira hipótese é plenamente justificável. Afinal, o credor prejudicado pela lesão pode ter suas razões por não desejar o cumprimento extemporâneo da obrigação pelo devedor. Pode tratar-se, por exemplo, de atraso na entrega de uma obra, de modo a atingir a credibilidade daquele que se obrigara a fazer a construção. Nos termos previstos no caput do art. 499 do CPC, aquele que contratou a realização da obra pode preferir receber a reparação em dinheiro. Mas esse estado de coisas foi alterado com o acréscimo do parágrafo único ao art. 499 do CPC pela lei 14.833/24: 

“Parágrafo único. Nas hipóteses de responsabilidade contratual previstas nos arts. 441, 618 e 757 da lei 10.406, de 10/1/02 (Código Civil), e de responsabilidade subsidiária e solidária, se requerida a conversão da obrigação em perdas e danos, o juiz concederá, primeiramente, a faculdade para o cumprimento da tutela específica.” 

Vê-se que, de acordo com o caput do art. 499 do CPC, não sendo possível a obtenção de tutela específica ou de resultado prático equivalente (cf. art. 497 do CPC), ou se o autor o requerer, a obrigação se converterá em perdas e danos (cf. caput do art. 499 do CPC), proferindo-se sentença condenatória que deverá ser executada de acordo com o procedimento estabelecido nos arts. 523 ss. do CPC. 

A jurisprudência é no sentido de que, no caso do caput do art. 499 do CPC, admite-se a conversão independentemente de pedido explícito e mesmo em fase de cumprimento de sentença (STJ, REsp n. 1.760.195/DF, 3.T., j. 27/11/2018; STJ, REsp n. 2.095.461/MG, 3.T., j. 21/11/2023). Quanto pleiteada a tutela específica pelo autor, a conversão em perdas e danos é medida excepcional (p.ex., tratando da proteção a direitos autorais, cf. STJ, REsp 1.833.567/RS, 3. T., j. 15/9/20). 

Mas a lei 14.833/24 acrescentou parágrafo único ao art. 499 do CPC, para dar ao réu oportunidade de cumprir a tutela específica mesmo que o autor tenha requerido sua conversão em perdas e danos, excepcionando a regra prevista no caput, segundo a qual, diante do inadimplemento, o credor pode pleitear, desde logo, a indenização. O texto do parágrafo único do art. 499 do CPC menciona explicitamente apenas as hipóteses previstas nos arts. 441, 618 e 757 do Código Civil (vício redibitório, falhas em construções, cobertura de seguros) e em hipóteses de responsabilidade subsidiária ou solidária. 

Em princípio, após o descumprimento, o devedor não pode obrigar o credor a aceitar a realização da prestação original. Por isso, reconhece-se ao credor o direito de buscar imediatamente a reparação por perdas e danos, como expresso no caput do art. 499 do CPC e em várias disposições como nos arts. 389 e 475 do Código Civil. A nova regra prevista no parágrafo único do art. 499 do CPC, assim, prejudica o credor afetado pelo inadimplemento. 

O reconhecimento do direito do credor lesado à tutela específica foi, sem dúvida, um grande avanço, como expus na parte inicial do presente texto. Mas isso não pode ser interpretado em detrimento do credor prejudicado pelo inadimplemento. Como princípio, após o inadimplemento, o devedor inadimplente não tem direito de forçar o credor a submeter-se ao cumprimento da prestação. Por isso, reconhece-se ao credor lesado pelo inadimplemento o direito de pleitear, desde logo, reparação por perdas e danos. É o que consta, textualmente, do caput do art. 499 do CPC, e também decorre de várias disposições do Código Civil, a exemplo dos arts. 389 e 475 do CC. 

O novo parágrafo único do art. 499 do CPC prevê exceções, assim justificadas no relatório aprovado no Senado: “O objetivo é limitar o direito do credor a obter, desde logo, indenização por perdas e danos no caso de descumprimento de obrigação de fazer, não fazer ou de entregar coisa. De modo mais específico, o projetado dispositivo destina-se a sempre garantir ao devedor o direito de cumprir diretamente a prestação – ou seja, cumprir a tutela específica –, antes da conversão da obrigação em indenização. Essa faculdade deferida ao devedor é restrita aos casos de: a) aquisição de bens com vícios ocultos (vício redibitório) (art. 441 do Código Civil); b) defeitos em construções (art. 618 do Código Civil); c) cobertura securitária (art. 757 do Código Civil); d) responsabilidade subsidiária ou solidária.” 

O texto aprovado gera algumas dúvidas interpretativas. P.ex., aplica-se também às relações de consumo? A resposta, em princípio, parece ser negativa. Pode-se entender que, no ponto, aplica-se o princípio de que lei geral posterior não revoga lei especial anterior. Sendo assim, o campo de incidência do novo parágrafo único do art. 499 do CPC ficaria bastante reduzido. P.ex., a aplicação da exceção relacionada à cobertura securitária diria respeito apenas a contratos de seguro que não possam se submeter ao Código do Consumidor, o mesmo ocorrendo com contratos que tenham por objeto a realização de construções, etc. 

Há trechos de difícil compreensão. P.ex., o que se quer dizer ao referir-se a hipóteses “de responsabilidade subsidiária e solidária”? Está-se, aqui, diante de outras hipóteses, ou se está querendo afirmar que as exceções antes referidas hão de ser observadas também em caso de responsabilidade subsidiária e solidária? Tendo a responder a essa questão afirmando que as responsabilidades subsidiária e solidária dizem respeito às hipóteses antes mencionadas no dispositivo, isso é, aquelas previstas nos arts. 441, 618 e 757 do Código Civil. Entendimento diverso significaria entender, p.ex., que, a regra incidiria em todas as obrigações solidárias, e não nos casos em que não incidam as regras sobre solidariedade passiva. 

Outra dúvida: Por que estabelecer exceções apenas para estes casos, e não as demais obrigações de dar e de fazer? O legislador parece ter desejado criar exceções à regra contida no caput do art. 499 do CPC, e não alterar a regra geral contida neste dispositivo, que faculta ao credor optar pela indenização por perdas e danos, em detrimento da tutela específica. Dito isso, o parágrafo único do art. 499 do CPC poderá ser aplicado analogicamente a outros casos? Aqueles que simpatizam com o princípio que está na base dessa nova regra podem defender que a distinção realizada pelo legislador não se ajusta ao princípio constitucional da isonomia. Devedores não alcançados pelo texto do parágrafo único podem afirmar que também merecem semelhante proteção, e que o tratamento diferenciado violaria o direito fundamental de ser tratado de modo igualitário. 

Por derradeiro, uma questão relacionada a direito intertemporal. A nova lei entrou em vigor na data de sua publicação no Diário Oficial da União, isso é, em 28/3/24 (cf. art. 3.º da lei). Não se dispôs sobre sua incidência em processos em curso. Incide, aqui, a doutrina do isolamento dos atos processuais (tempus regit actum)? A resposta, a meu ver, é negativa. É que o autor da ação poderia ter optado por outra estratégia processual, sem apresentar pedido de reparação por perdas e danos, caso já existisse regra como a agora prevista no parágrafo único do art. 499 do CPC. A meu ver, esta é uma situação jurídica que deve ser protegida, incidindo, aqui, o art. 14, in fine, do CPC. 

Como se vê, o novo texto traz consigo muitos desafios. São essas as minhas reflexões iniciais a respeito, que submeto à consideração de colegas que, como eu, são apaixonados pelo tema e veem o grande impacto que a reforma terá, no dia a dia.

José Miguel Garcia Medina
Doutor e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para a elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015.

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