1. O caso META vs. META
Em 2023, a empresa Meta Serviços em Informática, sediada em São Paulo e constituída na década de 90, que presta serviços de consultoria em tecnologia de informação, ajuizou ação judicial em face da gigante multinacional Meta Platforms, Inc., conhecida por ser a proprietária das redes sociais Facebook® e Instagram®, além dos serviços de mensagens WhatsApp®.
O motivo da ação chama atenção: a empresa brasileira alega que a empresa americana viola algumas de suas marcas registradas META, registros estes concedidos pelo INPI - Instituto Nacional da Propriedade Industrial entre 2008 e 2009, sendo que a empresa americana não detinha qualquer registro marcário para a marca META à época da propositura da ação.
Quando do ajuizamento da ação, como é de costume em casos como o em espécie, a parte autora requereu a concessão de tutela antecipada de urgência, a qual foi indeferida em primeiro grau e objeto de agravo de instrumento, o qual, recentemente, foi provido unanimemente pelo TJ/SP, cujo resultado foi amplamente divulgado pela mídia local e internacional.
Antes de o relator apresentar a fundamentação pela qual entendia que deveria ser concedida a tutela provisória pretendia, teceu alguns parágrafos para estabelecer a premissa de que a Justiça Estadual poderia impor a um titular de registro marcário ordem de abstenção. Isso porque, considerando-se que competiria à Justiça Estadual o julgamento de ações judiciais atinentes à concorrência desleal, “ainda que ambas as partes gozem do registro de suas marcas perante o INPI”, bem como que, por analogia, o parágrafo único, do artigo 56 da lei 9.279/96 (LPI - Lei da Propriedade Industrial), possibilita a arguição, como matéria de defesa na esfera estadual, de nulidade de patente, não haveria óbice, de igual modo, a Justiça Estadual analisar a nulidade de um registro marcário.
Uma vez demonstrada a possível competência da Justiça Estadual, o Relator, reconhecendo ser “inegável que a convivência de ambas as marcas revela-se inviável, mormente por se tratar de empresas atuantes no segmento de tecnologia em âmbito nacional ou internacional”, aplicou o princípio da anterioridade, dando preferência ao registro anterior da empresa brasileira em detrimento do registro posterior da empresa americana e, assim, concedeu a tutela provisória antecipada requerida pela Meta brasileira, impondo à Meta americana o dever de deixar de utilizar a marca META.
A despeito de no voto do relator o Tema/STJ 950 não ser mencionado, os demais Desembargadores que integraram a turma julgadora, o mencionaram. Para o segundo juiz, o fato de a Meta [americana] ter obtido o deferimento de seu pedido de registro marcário “no mesmo dia em que outros registros similares foram-lhe negados para designação de produtos e serviços afins aos abarcados pela antiga marca da agravante” legitimaria a solução jurídica proposta pelo Relator. Por fim, no entendimento do terceiro juiz, por mais que não seja possível a aplicação analógica do art. 56 da LPI, seria necessário “modular a eficácia deste novo registro, o qual não é apto a implicar na supressão dos direitos de titularidade da recorrente”.
Após a publicação do acórdão, como esperado, a Meta [americana] interpôs recurso especial aduzindo a violação do art. 300 do CPC e arts. 56, §1º, e 129, da LPI, eis que a decisão colegiada teria deixado de observar a tese jurídica firmada pelo Tema/STJ 950.
2. O Tema/STJ 950
No final de 2017, sob o regime de julgamento de recursos repetitivos, o STJ julgou o Tema 950, o qual buscava responder duas questões: (i) é possível à justiça estadual impor abstenção de uso de marca registrada pelo INPI?; e (ii) é cabível, em reconhecimento de concorrência desleal, que a justiça estadual determine a abstenção de uso de elementos que não são registrados no INPI, caracterizados pelo "conjunto imagem" ("trade dress") de produtos e/ou serviços?
Ao final do julgamento, o STJ fixou a seguinte tese:
As questões acerca do trade dress (conjunto-imagem) dos produtos, concorrência desleal, e outras demandas afins, por não envolver registro no INPI e cuidando de ação judicial entre particulares, é inequivocamente de competência da justiça estadual, já que não afeta interesse institucional da autarquia federal. No entanto, compete à Justiça Federal, em ação de nulidade de registro de marca, com a participação do INPI, impor ao titular a abstenção do uso, inclusive no tocante à tutela provisória.
Observa-se, então, que a Corte Superior entendeu ser de competência exclusiva da Justiça Federal a imposição de ordem de abstenção de marca registrada, não podendo, então, a Justiça Estadual, mesmo em sede de ações judiciais que a prática de concorrência desleal tangencie a lide, impor a determinado titular ordem de deixar de explorar sua marca quando concedida pelo INPI.
Ora, como sabido, se os atos administrativos são dotados de presunção de legalidade, legitimidade e veracidade, até que a Justiça Federal – repisa-se: competente para analisar a legalidade e validade de um ato administrativo que concede título de propriedade industrial – desconstitua o título de propriedade industrial que sirva como embasamento para a ação judicial, na esfera estadual, atinente à sua violação, não pode a Justiça Estadual negar vigência ao referido título. Para esta compreensão, basta a leitura atenta do voto do min. Luís Felipe Salomão que ensejou a fixação da tese jurídica:
[...] conforme a remansosa jurisprudência desta Corte, a Justiça Federal, e não a Justiça estadual, tem competência para, em ação de nulidade de registro de marca, com a participação do INPI, impor ao titular a abstenção do uso, inclusive no tocante à tutela provisória.
A partir desta compreensão, nos parece que, sempre com o devido acatamento, que a decisão colegiada da Corte Paulista no “Caso Meta” encontra-se pautada em premissas frágeis, sobretudo por três principais razões: (i) a própria ação na qual foi definida a tese jurídica do Tema/STJ 950 tratava de conflito entre dois registros marcários; (ii) o STJ, ao fixar o referido Tema, expressamente consignou que a Justiça Estadual não detém competência para impor ordem de abstenção ao titular de registro marcário; e (iii) além de haver calorosas discussões, no âmbito doutrinário e jurisprudencial, acerca da nulidade incidental em ações de violação de registro patentário, há, isto sim, pacificidade de não ser possível aplicar o instituto para ações judiciais relativas a marcas.
3. A importância dos precedentes judiciais para a propriedade industrial
Ao contrário de muitas outras áreas do direito, na propriedade industrial não há variadas teses jurídicas firmadas pelo STJ, existindo, salvo melhor juízo, além do Tema/STJ 950, apenas um outro, atinente às patentes mailbox [Tema/STJ 1065]. E, nesse cenário, não podemos ignorar aquelas decisões que, independentemente do motivo, deixaram de levar em consideração os precedentes atinentes à propriedade industrial, afinal a força normativa do precedente é precisamente a força da analogia entre os casos.
Como é de fácil percepção, o atual CPC conta com incontestável preocupação de manter não apenas íntegra a jurisprudência, mas, de igual modo, uniforme, estável e coerente, como pode ser extraído de seu art. 926. Assim sendo, a atividade jurisdicional dos Tribunais brasileiros, é óbvio, deve guiar-se por uma orientação estável e previsível, sob pena de colocar em risco o Estado Democrático de Direito, que se verá diante de uma inadmissível insegurança jurídica. Isso porque a inércia ou a admissão de tratamento distinto para casos juridicamente iguais ou muito similares, nos parece claro, afronta aos princípios constitucionais da segurança jurídica e isonomia.
A razão, então, para se adotar um sistema de precedentes, no Brasil, é precisamente para se colocar como premissa de que casos iguais ou similares devem contar com a mesma solução jurídica. Dito de outra maneira: o modelo de precedentes faz com que a solução trazida por um precedente, formado a partir de um julgamento em concreto, não se destine à resolução de apenas uma única situação, mas de todos os casos iguais ou similares que chegarão à apreciação do Poder Judiciário. Tanto é assim que o CPC impõe aos juízes e tribunais a observância, dentre outros, dos acórdãos proferidos em sede de julgamento de recurso especial repetitivo (CPC, art. 927, III).
Bem assim, para se deixar de aplicar um precedente, este deve ser superado (overruling) ou distinguido do caso que se está a julgar (distinguishing), inclusive observando o padrão decisório estabelecido pelo art. 489, §1º, do CPC.
Nesse contexto, se o STJ se propôs a analisar se é possível à justiça estadual impor abstenção de uso de marca registrada pelo INPI e, a partir da tese jurídica firmada no Tema/STJ 950, a resposta foi que compete à Justiça Federal, em ação de nulidade de registro de marca, com a participação do INPI, impor ao titular a abstenção do uso, inclusive no tocante à tutela provisória, nos parece que a solução jurídica dada pelo TJ/SP no “Caso Meta” somente poderia ser aceitável caso o Tema/STJ 950 tivesse sido minuciosamente enfrentado e restassem cabalmente demonstradas as peculiaridades do caso que culminassem na inaplicabilidade do Tema ao caso concreto – o que não nos parece ter ocorrido.
Com efeito, desde a fixação da tese jurídica pela Corte Superior, os jurisdicionados têm a segurança jurídica que, uma vez obtido um registro marcário, não poderá a Justiça Estadual impedir a livre fruição dos direitos oriundos de tal registro. Contudo, ao agir de tal modo, em nosso entender, a Corte Paulista acabou por instaurar um cenário de insegurança jurídica, especialmente sem expor na fundamentação do acórdão eventual distinção do caso-precedente [Tema/STJ 950] com o caso-atual [“Caso Meta”].
Cumpre ressaltar que não estamos a defender que a tese jurídica fixada pelo STJ é livre de críticas ou mesmo acertada, mas o que se pretende lançar é que os Tribunais Ordinários devem ser ater ao sistema de precedentes preconizado por nosso ordenamento jurídico processual, sem prejuízo de que, por meio do caminho adequado para a superação ou distinção do precedente, venham a justificar a inaplicabilidade do precedente ao caso concreto julgado.
Por tudo isso, caso a discussão seja levada ao STJ, esperamos que este, enquanto responsável por zelar pela observância do direito federal e dada sua função de uniformizar a interpretação e a aplicação do direito federal, dê a melhor interpretação jurídica que a questão de direito em discussão merece receber, considerando, é claro, os seus próprios precedentes.