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O PL 10/24 propõe mudanças no art.310 do CPP para ampliar a possibilidade de prisão preventiva, visando reduzir solturas após audiência de custódia. A medida deve respeitar a presunção de inocência (art. 5º, LVII).

25/3/2024

O PL 10/24 do Senado Federal tem por objetivo, segundo a proposta do autor (senador Sergio Moro), estipular proposições objetivas para melhor subsidiar ao juiz na hora de avaliar o auto de prisão em flagrante, na audiência de custódia, pois que, continua o autor, os parâmetros existentes são insuficientes. Portanto, o PL 10/24 intenta alterar o art. 310 do CPP. 

Contudo, na proposta em apreço o que realmente se faz é alterar a dinâmica da conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, ou melhor, aumentar o rol de possibilidades do decreto de prisão. Tanto que o próprio autor do PL cita sua indignação com o número de pessoas que são soltas a partir da audiência de custódia, com base em dados fornecidos do CNJ.  A estatística aponta para a soltura de 45% das pessoas autuadas em flagrante, desde o início de 2015 até 19/1/23, no parecer do Senador Moro. 

Uma medida cautelar para ser imposta necessita respeitar a garantia da presunção de inocência expressa no texto constitucional (art. 5º, LVII), garantia esta que já tratamos em artigo anterior. 

A prisão em flagrante é precária e não basta por si só para manter alguém preso. Trata-se, em verdade, de medida precautelar. Tanto é assim que o auto de flagrante deve ser submetido ao juiz, bem como a realização da audiência de custódia. Sobre a prisão em flagrante, assim dispõe o mestre Aury Lopes Jr: 

A prisão em flagrante é uma medida precautelar, de natureza pessoal, cuja precariedade vem marcada pela possibilidade de ser adotada por particulares ou autoridade policial, e que somente está justificada pela brevidade de sua duração e o imperioso dever de análise judicial em até 24 horas, nas quais cumprirá ao juiz analisar sua legalidade e decidir sobre a manutenção da prisão (agora como preventiva) ou não.  

A prisão preventiva deve obedecer os princípios da proporcionalidade, excepcionalidade e taxatividade, além do que a presença do fumus commissi deliciti e o periculum libertatis. O CPP expressa que a prisão preventiva é cabível para garantir a ordem pública, a ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal (art. 312, caput). As duas primeiras hipóteses são abertas, abstratas, servindo de fáceis manipulações, com pesadas críticas sobre elas. As duas últimas são realmente medidas cautelares, pois buscam tutelar o processo e garantir a execução de eventual condenação. Também será cabível a prisão preventiva em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (periculum libertatis). O fumus commissi deliciti se satisfaz com a materialidade do crime e indícios de autoria. 

Como pode ser observado, as medidas cautelares são instrumentos do instrumento processo, tendo a prisão como medida extrema, aplicável em última medida. De fato precisa-se de uma reformulação no periculum libertatis, mormente para se retirar as hipóteses abstratas. Portanto, o que se precisa é de uma lei melhor, com critérios objetivos e sobretudo sob uma leitura constitucional e convencional. 

No entanto, a visão do autor do PL 10/24 é apenas prender mais, pois, segundo ele, solta-se muito nas audiências de custódia. Olvida-se que o próprio CPP veda a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia (art. 313, § 2º). 

A alteração do CPP é para incluir um parágrafo quinto ao art. 310, de modo a prever circunstâncias que, sem prejuízo de outras, sempre recomendam a conversão da prisão em flagrante em preventiva quando: haver provas que indiquem a prática reiterada de infrações penais pelo agente; ter a infração penal sido praticada com violência ou grave ameaça contra pessoa; ter o agente já sido liberado em prévia audiência de custódia por outra infração penal, salvo se por ela tiver sido absolvido posteriormente; ou ter o agente praticado a infração penal na pendência de inquérito ou ação penal.  A inclusão de um parágrafo sexto com a redação que lhe deu é desnecessária, pois que a CR/88 exige que toda decisão judicial seja fundamentada (art. 93, IX), além do que seria engraçado se não fosse trágico exigir que o juiz obedeça a lei, isto é, cumpra-a, desde que, é claro, passe por um filtro constitucional e convencional. 

Assim como na inclusão da hipótese de prisão preventiva pela Lei Maria da Penha, para tutela de vítima mulher de violência doméstica e familiar, posteriormente alargada para compreender outras vítimas, ou seja, que não só a mulher (lei 12.403/11, art. 313, III), que não criou um novo periculum libertatis, o PL 10 em apreço segue a mesma linha, sendo imperativo ter como parâmetros os casos expressos no art. 312, uma vez que eles apontam o risco a ser protegido. Essa colcha de retalhos reitera o princípio inquisitivo do nosso CPP. 

Lastimável ver o relatório do senador Mourão, relator do PL na comissão de segurança pública, ao não compreender o cerne da audiência de custódia, e mais, que ela é uma obrigação decorrente de tratados internacionais aos quais o Brasil aderiu (convenção americana de direitos humanos, art. 7.5 e pacto internacional sobre direitos civis e políticos, art. 9.3). 

Entende-se pela ausência de justificação nas hipóteses do PL 10, que na verdade, quando cabíveis, já estão englobadas nas já existentes, com farta doutrina e jurisprudência. A gravidade abstrata da conduta já está prevista no tipo, logo fora avaliada e sopesada pelo legislador. Ela isoladamente considerada não tem o condão de fundamentar um decreto prisional.  O autor da proposta fala em crimes graves, expressamente. A reiteração delituosa só pode ser nesse contexto. No que toca os demais casos, há inidoneidade para o decreto da prisão preventiva. Da forma com redigido o PL vai caber as cortes superiores, apoiada na doutrina, definir os casos concretos, ou seja, muda para ficar do jeito que está. A prisão antes do processo transitar em julgado é medida excepcional. Dias presos são irreparáveis, justiça (conceito vago) não se cumpre apenas quando alguém estiver preso, principalmente quando inocentes.  

A audiência de custódia, primeiro prevista na resolução 213 do CNJ, depois inserta no CPP, art. 310, pela lei 13.964/19, tem seus limites bem delimitados, que são conferir a legalidade da prisão e eventuais maus tratos ao autuado em flagrante, como agressão, tortura, etc., além de verificar a necessidade de aplicar medidas cautelares outras que não a prisão, em sendo insuficiente, decreta-se a prisão. Cumpre os comandos das legislações internacionais que o Brasil é signatário.  

Michel França
Advogado Criminalista. Especialista em Direito Processual Penal. Professor e Palestrante.

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