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Telemedicina e consentimento informado

O Conselho Federal de Medicina e a lei 14.510/22 regulam a telemedicina e a telessaúde, priorizando a atuação de médicos em atendimentos telepresenciais.

18/3/2024

Diante do crescimento da utilização da telemedicina pela comunidade médica1, o Conselho Federal de Medicina editou a resolução 2.314/22 com o fim de definir e regular o uso desta tecnologia. Nesse sentido, a telemedicina foi conceituada como “o exercício da medicina mediado por Tecnologias Digitais, de Informação e de Comunicação - TDICs, para fins de assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças e lesões, gestão e promoção de saúde.”

Logo após a edição Resolução CFM 2.314/22, foi promulgada a lei 14.510/22, a qual alterou a lei 8.080/90 (lei orgânica da saúde), para autorizar e disciplinar a prática da telessaúde no país. Para melhor compreensão do assunto, cabe salientar que o termo telessaúde diferencia-se da telemedicina no que se refere à competência dos profissionais da saúde. Enquanto o termo telemedicina é específico para a atividade exercida por médicos, a telessaúde abarca diversos profissionais da saúde. Assim sendo, a lei 14.510/22 (telessaúde) também regula a telemedicina, devendo ser prioritariamente observada nos casos de utilização do atendimento telepresencial realizado por médicos. 

Ainda sobre a lei da telessaúde, importa destacar um grande avanço relacionado ao estabelecimento do princípio do consentimento livre e informado do paciente no texto legal (art. 26-G, I), já que até então não havia uma legislação específica sobre o assunto, mas somente normas deontológicas2. A importância deste tema em sede de telemedicina, especialmente na teleconsulta, se verifica numa recente pesquisa realizada pelo Centro de Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), na qual foi constatado que, em 2022, a teleconsulta foi realizada por 33% dos médicos em todo o país3, o que demonstra o desenvolvimento e a expansão do uso desta tecnologia.

Com efeito, nesse novo ambiente de atendimento médico, o consentimento informado do paciente traz uma preocupação peculiar, especialmente no que toca ao diálogo entre os envolvidos, uma vez que clareza da informação pode ser coberta por uma penumbra de dúvida, fazendo com que a transmissão da mensagem pelo médico e a compreensão do assunto pelo paciente sofram algum prejuízo, notadamente em virtude da ausência do exame físico presencial, bem como em razão dos próprios obstáculos criados pelo ambiente virtual (latência da rede, câmeras inadequadas, som com ruído, dificuldade de manuseio de instrumentos pelo paciente, rotina familiar etc). 

Nessa ordem de ideias, deve ser lembrado que os princípios bioéticos da beneficência, não-maleficência, autonomia e justiça devem nortear a atividade médica4, o que decerto reforça a necessidade de adequação da atividade médica ao ambiente telepresencial (telemedicina) de maneira a preservar a boa-fé objetiva5 e a resguardar a confiança, um dos pilares da relação médico-paciente.

Nesse rumo, algumas questões podem intrigar os médicos quando do exercício da telemedicina, dentre as quais, cumpre citar as seguintes: i) como respeitar o consentimento informado do paciente na telemedicina? (ii) como deve ser efetivado o termo de consentimento livre e esclarecido - TCLE na telemedicina? iii) como evitar ser responsabilizado civilmente pela utilização inadequada da telemedicina?

Nesse contexto, importa mencionar que o Superior Tribunal de Justiça vem consolidando o entendimento de que a violação do consentimento informado do paciente trata-se de um dano autônomo6, ou seja, que pode haver condenação do médico apenas por este motivo, mesmo que não ocorra uma falha na prestação de serviço de saúde7. Apesar de não haver nenhuma decisão no STJ sobre o consentimento informado do paciente na seara da telemedicina, ao que tudo indica, o entendimento citado deverá ser o mesmo nessa hipótese. 

Ao tratar do tema, a obra “A responsabilidade civil pela ausência do consentimento informado do paciente no âmbito da telemedicina”8 destaca que “o processo para obtenção do consentimento deve se pautar numa informação clara e adequada, com destaque às vantagens e desvantagens do tratamento, numa linguagem de fácil entendimento e capaz de produzir o conhecimento necessário ao paciente para manifestar o consentimento em conformidade com a sua autonomia.”9

Sobre o TCLE no campo da telemedicina, especificamente na teleconsulta, a referida literatura jurídica, dentre outras questões, recomenda que deve constar no termo “b. A informação sobre as vantagens e desvantagens da teleconsulta; c. A informação sobre as limitações relativas ao uso da teleconsulta (art. 6º, §4º da resolução CFM 2.314/22), notadamente em virtude da ausência de exame físico completo do paciente;”10 

É certo que a relação médico-paciente se trata de um processo dialógico e contínuo, sendo difícil que um documento escrito comporte tudo que foi tratado entre as partes, mas, de outro lado, especialmente no âmbito da telemedicina, sem sombra de dúvidas, o termo de consentimento livre e esclarecido adequado ao ambiente virtual é um poderoso instrumento para comprovar a ausência de responsabilidade civil do médico pela falta de informação e obtenção do consentimento informado do paciente.11 

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1 Entre 2020 e 2021, mais de 7,5 milhões de consultas foram realizadas por telemedicina, segundo a Associação Brasileira de Empresas de Telemedicina e Saúde Digital. (Disponível em https://www.medicina.ufmg.br/mais-de-75-milhoes-de-consultas-foram-realizadas-por-telemedicina-no-brasil/. Acesso realizado em 12/03/2024)

2 Até então, a legislação ordinária possuía apenas, de forma confusa e insuficiente, o art. 15 do Código Civil, o qual versa que “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.”

3 Disponível em https://medicinasa.com.br/aprimorar-telemedicina/. Acesso realizado em 14/03/2024. 

4 “Presentes em todo e qualquer procedimento médico devem estar os princípios da Bioética: beneficência, não- maleficência, autonomia e justiça. Além disso, de todo indispensável se reconheça que a relação médico-paciente, mesmo de natureza contratual e com sensíveis envolvimentos financeiros, não se limita a uma questão patrimonial, compreendendo aspectos não patrimoniais, orientados por diferentes princípios, os quais devem ser privilegiados. As ações de atenção à saúde humana não podem reduzir-se a um negócio. Outra não pode ser a orientação de um ordenamento voltado para o desenvolvimento e preservação do ser humano, tomando como base o princípio da dignidade humana.” (BARBOZA, Heloisa Barboza. “Responsabilidade Civil Médica no Brasil”. Revista Trimestral de Direito Civil - RTDC, Rio de Janeiro, v. 5, n. 19, jul./set. 2004, p. 64.)

5 Código Civil - Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

6 REsp 1540580/DF, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Des. Convocado do TRF 5ª Região), Rel. p/ Acórdão Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 02/08/2018, DJe 04/09/2018.

7 Em janeiro de 2024, o Conselho Nacional de Justiça eliminou a categoria “erro médico” do sistema de classificação de processos, pelo que este artigo seguiu a nomenclatura proposta nesta recente modificação. (Disponível em https://www.cnj.jus.br/sgt/consulta_publica_assuntos.php)

8 CAMPOS, Alan Sampaio. A responsabilidade civil pela ausência do consentimento informado do paciente no âmbito da telemedicina. Rio de Janeiro: Ed. Processo, 2024.

9 Idem, p. 119.

10 Idem, p. 190/191.

11 Idem, p. 178/179.

Alan Sampaio Campos
Mestre em direito civil-constitucional pela PUC-Rio. Pós-graduado em direito civil-constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Advogado.

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