Em 12 de janeiro de 2024 foi promulgada a lei 14.811/24, que instituiu medidas de proteção às crianças e adolescentes nos estabelecimentos educacionais e similares, bem como prever uma política nacional de combate ao abuso e a exploração sexual. Dentre as medidas previstas na Lei está a inclusão do artigo 59-A no Estatuto da Criança e do Adolescente, determinando que quaisquer estabelecimentos que desenvolvem atividades com crianças e adolescentes obtenham certidões de antecedentes criminais de seus funcionários:
“Art. 59-A. As instituições sociais públicas ou privadas que desenvolvam atividades com crianças e adolescentes e que recebam recursos públicos deverão exigir e manter certidões de antecedentes criminais de todos os seus colaboradores, as quais deverão ser atualizadas a cada 6 (seis) meses.
Parágrafo único. Os estabelecimentos educacionais e similares, públicos ou privados, que desenvolvem atividades com crianças e adolescentes, independentemente de recebimento de recursos públicos, deverão manter fichas cadastrais e certidões de antecedentes criminais atualizadas de todos os seus colaboradores.”
A medida suscita algum debate pois a possibilidade de exigência da certidão de antecedentes criminais como condição para a admissão ou permanência do trabalhador no emprego é tema recorrente e controverso no âmbito das relações trabalhistas.
Há quem defenda que a solicitação de certidões de antecedentes criminais nas relações de trabalho violaria os direitos à intimidade e à vida privada dos trabalhadores, traduzindo-se em prática discriminatória por força do que dispõem os artigos 3º, IV, 5º, X e XLI, 7º, XXX , todos da Constituição Federal.
Até a promulgação da lei 14.811/24, a legislação infraconstitucional autorizava a obtenção da certidão de antecedentes criminais em duas situações: para admissão do profissional de serviço comunitário de rua (Lei 12.009/09, artigo 2º, parágrafo único, inciso V) e para o exercício da função de vigilante (Lei 7.102/83, artigo 16, inciso VI).
Por muito tempo, o tema relacionado à exigência de certidão de antecedentes criminais para admissão em emprego foi discutido pelo Tribunal Superior do Trabalho em casos individuais, sem reconhecimento da transcendência do tema ou elaboração de tese pacificada, como se vê da seguinte decisão:
RECURSO DE REVISTA. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. EXIGÊNCIA DE CERTIDÃO NEGATIVA DE ANTECEDENTES CRIMINAIS 1. A exigência em si de certidão negativa de antecedentes criminais de candidato ao emprego em princípio não implica violação da dignidade, da intimidade ou da vida privada da pessoa, passível de caracterizar lesão moral, máxime se houve admissão no emprego. Ressalva-se, todavia, a situação em que a exibição de certidão positiva de antecedentes criminais constitua fator de injustificada discriminação, ao implicar recusa de candidato ao emprego sem que haja qualquer relação do teor da certidão com a função que seria exercida na empresa. Precedentes. 2. Recurso de revista da Reclamante de que se conhece, por divergência jurisprudencial, e a que se nega provimento. (TST - RR: 1849001320135130023, Relator: João Oreste Dalazen, Data de Julgamento: 25/03/2015, 4ª Turma, Data de Publicação: DEJT 31/03/2015)
Esses julgados estavam em linha com a proibição de práticas discriminatórias na relação de trabalho previstas na lei 9.029/95, da qual destacamos o artigo 1º:
Art. 1º É proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros, ressalvadas, nesse caso, as hipóteses de proteção à criança e ao adolescente previstas no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal.
Contudo, em 2017 a Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1) do Tribunal Superior do Trabalho, ao julgar o Incidente de Recursos Repetitivos - Tema n° 1, reconheceu a transcendência política do tema e firmou tese no sentido de que a exigência de certidão de antecedentes criminais de candidato a emprego é legítima e não caracteriza lesão moral quando amparada em expressa previsão legal ou se justificar em razão da natureza do ofício ou do grau especial de fidúcia exigido, a exemplo de empregados domésticos, cuidadores de menores, idosos ou deficientes (em creches, asilos ou intuições afins), motoristas rodoviários de carga, empregados que laboram no setor da agroindústria no manejo de ferramentas de trabalho perfurocortantes, bancários e afins, trabalhadores que atuam com substâncias tóxicas, entorpecentes e armas e trabalhadores que atuam com informações sigilosas.
Portanto, antes mesmo da promulgação da lei 14.811/24, o Tribunal Superior do Trabalho já havia pacificado o entendimento de que a exigência de apresentação de certidões de antecedentes criminais não representa prática discriminatória quando solicitada a candidatos a vagas de emprego de cuidadores de crianças e adolescentes.
A lei 14.811/24 trouxe maior segurança jurídica às organizações que desenvolvem atividades com crianças e adolescentes em qualquer segmento econômico com ou sem finalidade lucrativa. Para tais atividades, a lei autoriza a solicitação das certidões de antecedentes criminais tanto para admissão do trabalhador quanto para a manutenção do emprego, uma vez que as certidões devem ser atualizadas a cada seis meses.
Importante destacar que a obtenção das certidões de antecedentes criminais pelas organizações que desenvolvem atividades com crianças e adolescentes não é uma opção, mas uma obrigação legal, relacionada à guarda e preservação da integridade física dessas pessoas.
Por outro lado, na hipótese de o empregador obter certidão positiva de antecedentes criminais de algum empregado, deve ser feita uma análise criteriosa com relação ao tipo de apontamento a fim de preservar as boas práticas de compliance trabalhista, uma vez que a dispensa por justa causa deve ser atual e só poderá ser efetivada na hipótese de sentença criminal transitada em julgado, nos termos do artigo 482, alínea “d”, da Consolidação das Leis do Trabalho. Nas demais hipóteses, o trabalhador apenas poderá ser dispensado sem justa causa, com o pagamento integral das verbas rescisórias.
Por fim, destacamos ser imprescindível que as certidões fornecidas pelo empregado ou obtidas diretamente pelo empregador sejam tratadas como documentos sigilosos em conformidade com a lei 13.709 – Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), sob pena de violação do direito do trabalho enquanto titular de dado pessoal.