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Dilema racial brasileiro e falhas nos procedimentos de heteroidentificação

Subjetividade excessiva e avaliação feita apenas por critérios fenotípicos despreza entendimento do STF no julgamento da ADC-41. Modelo prejudica a ampla defesa e o contraditório em concursos públicos.

14/3/2024

No próximo mês de junho, a lei 12.990, que reserva à população negra 20% das vagas em concursos públicos para cargos efetivos da Administração Federal, empresas públicas e sociedades de economia mista controladas pela União, completa 10 anos. E mesmo após uma década e centenas de concursos realizados nesse período, ainda não há consenso sobre os devidos critérios para definir quem de fato tem direito a essas vagas. 

Em 2017, o STF, no julgamento da ADC-41, proposta pelo Conselho Federal da OAB, declarou a integral constitucionalidade da lei 12.990. Neste mesmo julgamento, contudo, em conjunto com a autodeclaração prevista no art. 2º da lei, o STF admitiu a legitimidade do que chamou de “critérios subsidiários de heteroidentificação”, que se estabeleceram por meio da criação de comissões de avaliação pelas bancas de todos os concursos no país, não apenas os federais.

O principal argumento para defender a adoção dessas comissões é impedir fraude nas autodeclarações, especialmente porque a lei 12.990 restou omissa na definição de critérios objetivos para a validação da declaração dos candidatos, estabelecendo apenas que esta deveria ser feita com base no quesito cor ou raça utilizado pelo IBGE que, por sua vez, não adota nenhum tipo de avaliação: a classificação é feita somente pela autodeclaração dos entrevistados. 

Diante de tanta omissão, certo é que as comissões de heteroidentificação estão se convertendo em verdadeiros tribunais raciais no Brasil, mas sem que haja critérios objetivos, reais, factíveis, para nortear tais julgamentos. Confirmando a afirmação da professora dra. Daniela Ikawa, cujo livro Ações Afirmativas em Universidades (2008) embasou o voto do ministro Ricardo Lewandowski na ADPF 186, que selou a criação de cotas raciais em universidades federais em 2012: “A possibilidade de seleção por comitês é a alternativa mais controversa das apresentadas”. 

E qual o motivo de tanta controvérsia? Justamente pela falta de um instrumento balizador que determine as regras a serem cumpridas por essas comissões em suas avaliações. Regras claras, objetivas e justas, que impeçam distorções, subjetividades e interpretações díspares, como vem acontecendo em todo o país todos os dias, seja em bancas de concursos, seja em bancas de universidades públicas. 

Critério fenotípico

A falta de objetividade, inclusive, foi citada no voto do ministro Luís Roberto Barroso, relator da ADC-41. “É preciso reconhecer que a definição de critérios objetivos para identificar os beneficiários de eventuais programas de cotas de viés racial esbarra em dificuldades variadas”. A reconhecida existência dessas dificuldades fez com que o ministro impusesse condições para a avaliação feita pelas comissões: “o mecanismo escolhido deve sempre ser idealizado e implementado de modo a respeitar a dignidade da pessoa humana dos candidatos. Em segundo lugar, devem ser garantidos os direitos ao contraditório e à ampla defesa, caso se entenda pela exclusão do candidato. Por fim, deve-se ter bastante cautela nos casos que se enquadrem em zonas cinzentas”. 

De que zonas cinzentas se refere Barroso? Ora, evidentemente, dos candidatos pardos. As comissões de heteroidentificação baseiam suas avaliações tão somente em critérios fenotípicos – o que é recomendado, inclusive, pela IN 23 do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos - MGI. Tais critérios levam em conta características físicas dos candidatos que garantiriam sua leitura racial como pretos ou pardos: cor da pele, textura e aparência do cabelo e formato do nariz e da boca, principalmente. 

Ao estabelecer a exclusividade da avaliação por meio de critérios fenotípicos, as bancas impuseram enorme dificuldade para que candidatos pardos obtivessem acesso às cotas a que têm direito. Explica-se: quando se trata de candidatos pretos, as características físicas são evidentes. Não há o que se contestar. O mesmo não se pode dizer quando falamos de candidatos pardos.

É importante dizer que, de acordo com o último censo do IBGE, realizado no ano de 2022, 92,1 milhões de brasileiros (45,3% do total) se declararam pardo, ao passo que 88,3 milhões (43,5%) se declararam brancos, ou seja, a grande maioria dos brasileiros negros que identificam como pardos. Essa grande maioria não pode ser útil apenas para a legitimação de políticas afirmativas, mas também deve ser reconhecida como parte integrante da população negra que faz jus à reserva de vagas. 

Não há nenhum estudo no Brasil que delimite qual o tom correto da pele para classificar alguém como pardo. Tampouco sobre qual o formato adequado do nariz e da boca ou como deve ser o cabelo – principalmente se este teve uso de produtos e tratamentos químicos. A avaliação é visual e profundamente subjetiva. E a aprovação em um concurso ou em uma universidade depende apenas de como os membros daquela comissão enxergam o candidato. 

Também não podemos deixar de lado a questão regional, tão significativa no Brasil. Um candidato pardo tem mais chances de ser lido racialmente como negro por uma comissão de heteroidentificação de concurso realizado no Sul do país que no Nordeste. Minas Gerais é simbólica nesse sentido: as discrepâncias raciais são enormes quando comparadas as populações de cidades do Norte de Minas e do Vale do Jequitinhonha e cidades mais ao Sul do estado. 

Erros das comissões

As bancas têm descumprido, reiteradamente, não apenas todas as diretrizes normativas e interpretativas que podem ser extraídas do julgamento da ADC-41, mas em centenas de outros julgamentos realizados em outros tribunais brasileiros. A começar pelo que restou consignado no voto do ministro Barroso: “Quando houver dúvida razoável sobre o seu fenótipo, deve prevalecer o critério da autodeclaração da identidade racial”. 

Não há sequer um critério estabelecido sobre como deve ser feita a aferição por parte das comissões. Esta ausência de uniformidade configura um flagrante atentado ao princípio da isonomia. Enquanto algumas bancas de concursos determinam que se faça uma verificação presencial, outras se limitam a avaliar a autodeclaração por meio de fotos e vídeos enviados pelos candidatos quando se inscrevem. Em alguns casos, os vídeos são feitos a partir de um modelo fornecido pelo próprio edital, engessado, no qual o candidato se limita a afirmar sua autodeclaração com base em suas características fenotípicas. 

Até mesmo no caso em que é feita uma avaliação presencial, o histórico de vida do candidato não é levado em consideração. Não é uma entrevista de fato, na qual o candidato poderia relatar, por exemplo, episódios em que sofreu com o racismo estrutural da sociedade brasileira. Quando muito, ele tem tempo para se posicionar diante da comissão, ficar de frente e de perfil e participar de uma filmagem, na qual lê uma frase indicada pela banca. 

Se reprovado pela comissão, é permitido que o candidato apresente recurso da decisão. E aí ele se depara com novas dificuldades. A começar pelo prazo, demasiadamente exíguo. Também, via de regra, não é possível anexar nenhum documento que possa endossar sua autodeclaração. Além disso, na maioria das vezes, o recurso é feito com base em um parecer desprovido de fundamentação, o que impede o candidato de defender sua autodeclaração adequadamente. 

Ainda sobre o estudo formulado pela professora dra. Daniela Ikawa, citado anteriormente, há a previsão da realização de entrevistas. Essa previsão foi citada pelo ministro Barroso no relatório da ADC-41: “São exemplos desses mecanismos: (...) a formação de comissões, com composição plural, para entrevista dos candidatos em momento posterior à autodeclaração”. 

Em seu voto na mesma ADC-41, o ministro Alexandre de Moraes entendeu que a prova documental não pode ser descartada pelas bancas dos concursos. “Para preservar a dignidade dos candidatos, o ideal é que o processo de verificação da autenticidade da declaração privilegie, inicialmente, registros documentais capazes de corroborar a afirmação dos candidatos. Isso pode ser providenciado pela apresentação de fotografias ou até mesmo por documentos públicos que assinalem sinais étnico-raciais referentes aos candidatos e, também, a seus respectivos genitores”, votou o ministro, que também considerou a importância da entrevista formal no processo. “Apenas se a análise desses documentos se revelar insuficiente é que deverá ser acionada a alternativa mais invasiva, consistente em convocação para entrevista presencial, em que o candidato poderá ser indagado sobre os elementos que materializam a sua concepção de pertencimento”, completou. 

Provas documentais válidas

Mas de quais provas documentais estamos falando? Ora, até determinada época, a própria certidão de nascimento identificava a raça ou etnia dos brasileiros. Ainda há essa identificação em uma série de documentos militares. Outra possibilidade é a apresentação de formulários cadastrados junto ao Ministério da Previdência Social e suas autarquias, que desde junho/23, após a publicação da Portaria 1.945, determina a inclusão de informações de raça, cor e etnia. 

Mas há dois tipos de provas documentais que deveriam ser incontestáveis para as comissões, mas não são. Um deles é boletim de ocorrência apresentado pelo candidato relatando caso em que foi vítima de crimes resultantes de preconceito de raça ou cor, previstos na lei 7.716/89. Ora, se as cotas raciais foram criadas como forma de reparação histórica, é um absurdo que um candidato comprovadamente vítima de racismo não possa apresentar como prova de sua autodeclaração justamente o documento em que denuncia o preconceito que sofreu. 

Também deveria não ter contestação a apresentação de parecer de outra comissão de heteroidentificação que aferiu como verdadeira a autodeclaração do candidato. Percebam o disparate: um candidato estuda por quatro, cinco, seis anos em uma universidade pública onde foi aprovado nas cotas raciais. Mas é reprovado em um concurso público que não o entende como negro. Parece ficção, mas não são poucos os casos em que isso acontece, com a injustiça sendo reparada somente pela decisão dos tribunais. 

Conclusão

Não se busca, aqui, deslegitimar as comissões de heteroidentificação, tampouco sugerir que elas deixem de existir. Pelo contrário. Elas são essenciais no árduo trabalho de se evitar fraudes em autodeclarações mentirosas. Sua simples existência já é um fator inibidor de tentativas de se burlar a lei por parte daqueles que buscam se beneficiar da política reparadora instituída pela lei 12.990.

O que se pretende é instigar o aprimoramento dessas comissões. A omissão presente na legislação não pode servir como desculpa para novas omissões, desta vez pelos editais. Lembremos: o edital é a lei do concurso. Ele deve, portanto, corrigir as falhas do legislador. Cabe aqui repisar o ensinamento de Rui Barbosa: “Boa é a lei quando executada com retidão. Isto é, boa será, em havendo no executor a virtude, que no legislador não havia”. Mas, ao reduzir a questão racial à mera interpretação de critérios fenotípicos, os editais são piores que a lei: além de omissos, passam a ser, também, injustos. 

O que se busca? A começar, que o edital seja claro quando estabelecer como será feita a avaliação dos critérios fenotípicos. Em segundo lugar, que os documentos citados anteriormente sejam levados em consideração quando a comissão esbarra na “dúvida razoável” e nas “zonas cinzentas” destacadas pelo ministro Barroso. E que a ampla defesa e o contraditório sejam efetivamente respeitados, o que não vem acontecendo. 

O Censo 2022 trouxe uma grande novidade: pela primeira vez, a maioria da população se autodeclarou parda. Enfim, a miscinegação que sempre marcou nosso país foi, de fato, assumida pela população, após décadas de tentativa, por parte de nossas elites, de instituir o embranquecimento do Brasil. São justamente os pardos que necessitam, diariamente, defender sua identidade racial – defesa desnecessária para retintos. São os pardos que sofrem as mazelas impostas pela pigmentocracia. E são justamente os pardos que estão sendo vitimados por decisões injustas, sem os devidos critérios e as devidas fundamentações, em concursos e no processo de entrada em universidades públicas. Do contrário, o que se verá é a perpetuação do racismo estrutural em nossa sociedade. 

Israel Mattozo
Advogado e professor. Sócio fundador do escritório Mattozo & Freitas.

Bruno Roger Ribeiro
Sócio fundador do escritório Mattozo & Freitas.

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