O Direito avançou significativamente nas últimas décadas e sua estética atual exige paridade e simetria nas relações negociais em geral.
Nada mais antiestético, portanto, do que o instrumento que formaliza o contrato internacional de transporte marítimo de carga, o Bill of Lading.
As cláusulas e condições que figuram no seu anverso são impostas pelo contratado, o transportador, ao contratante, o embarcador.
Tipicamente de adesão, esse contrato não permite a livre manifestação de vontade do contratante.
Pouco importa se esse contratante é, tal e qual o contratado, empresa de grande porte. A assimetria e a paridade praticamente não existem.
Raros são os contratos em que o contratante (embarcador) expõe prévia e livremente sua vontade. A rigor, ele adere a um combo clausular, do qual não consegue negociar.
A ciência prévia dessa situação não muda em nada o cenário da terrível pintura, pois ao embarcador interessa ver que a mercadoria que vendeu chegue aos cuidados do comprador, sendo imprescindível o transporte marítimo internacional.
Discutir previamente cláusulas e condições com quem tem o poder de domínio da atividade é incogitável, até porque o contratado (transportador) não oferece espaço para tanto.
Como a ninguém interessa obstaculizar as relações de comércio exterior, aceita-se os termos impostos e segue-se adiante, torcendo-se para que não ocorra situações de crise ou se existirem, que a justiça corrija os vícios e abusos clausulares.
A bem da verdade sempre foi assim. A justiça corrigia aquilo que no mundo dos fatos era errado e contrariava a boa ortodoxia do direito a serviço do bem comum.
De um tempo para cá, sem entrar no mérito, aqui, das razões fundamentais de tanto, a situação mudou em parte e a cláusula de imposição de foro e/ou de compromisso arbitral (no exterior), que antes era reiteradamente considerada abusiva, ilegal (e até inconstitucional ) ganhou alguma simpatia e tem é considerada válida por órgãos monocráticos e colegiados.
O tema é polêmico e ainda consumirá muito debate, rios de tintas, num modo mais antigo de se expressar. Parece-nos longe de pacificação, até porque seu apelo vai além do Direito das Obrigações e atinge outros campos, como o da Responsabilidade Civil, o dos Contratos e Danos e o do Direito dos Seguros.
A preocupação que aqui se externa é pertinente, porém. Isso porque o assunto nem deveria ser tema de debate e o prestígio que o Código de Processo Civil dá, agora, ao foro exclusivo estrangeiro de eleição (ou ao compromisso arbitral no exterior) não pode ser estendido ao Bill of Lading.
Mudou o CPC, é verdade, mas não o Bill of Lading. Seus defeitos anatômico-jurídicos são os mesmos de mais de cem anos atrás. Nenhum foro pode ser eleito se apenas uma das partes o dispôs e a adesão ao instrumento contratual não implica automática anuência às cláusulas todas.
O contratante – ao contrário do que nos faz pensar recentes decisões – não tem a liberdade de se opor ao que o transportador impõe, ao foro de seu exclusivo arbítrio. Cabe-lhe apenas aderir, como o cordeiro a ser imolado em sacrifício, sob pena de não ver executado o transporte do seu interesse.
Há um tanto de ingenuidade em acreditar que o fato dele, contratante, ser empresa de grande porte, abrirá as portas da negociação. Não, não abre. Damos testemunho e testemunho fiel, ancorados que somos pelo exercício profissional diário.
Ao contratante interessa mais o transporte do bem que vendeu, exportou, não o debate jurídico que mesmo que fosse realizado seria de todo inócuo; e em sendo assim, a adesão é quase que guiada pelo estado de necessidade.
E o casuísmo é tanto que o contratado, dono do negócio jurídico, emitente do instrumento contratual impõe o foro que quer e, ao mesmo tempo, reserva para si o que nega ao usuário do seu serviço: o foro de sua sede.
Escreveremos de outro modo para que a mensagem não seja perdida por preciosismo retórico: o transportador, aquele que emite o Bill of Lading, não só impõe ao seu gosto o foro de eleição (ou o compromisso arbitral no exterior) como ainda dispõe, a depender da sua exclusiva vontade, a possibilidade de usar o foro de seu domicílio.
Muito oportuno lembrar do velho ditado popular do “faça o que eu falo, mas não faça o que eu faço”. Nada mais emblemático do poder de controle que o transportador tem sobre o negócio jurídico do que essa cláusula que, com maior ou menor adernamento, se faz notar em praticamente todos os instrumentos contratuais.
- Confira aqui a íntegra do artigo.
-----------------------------------
1 NOTA DOS AUTORES: consideramos inconstitucional porque essa cláusula inibe o pleno exercício da garantia fundamental de acesso à jurisdição nacional, prejudicando o interessado que não renunciou prévia, formal e livremente a isso. Não existe renúncia tácita ao acesso à própria jurisdição, de tal modo que não convém validar aquilo que em essência atinge o que há de mais importante no Direito: o rol exemplificativo de suas garantias maiores.