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A necessária modulação no tema repetitivo 677 do STJ

A nova redação do tema repetitivo 677 do STJ representa profunda modificação do entendimento jurisprudencial então vigente. De tão relevante que é esta alteração, os seus efeitos merecem ser modulados.

10/3/2024

A redação original do Tema 677 da jurisprudência repetitiva do STJ previa que, “na fase de execução, o depósito judicial do montante (integral ou parcial) da condenação extingue a obrigação do devedor, nos limites da quantia depositada”.

Com base nesse entendimento, é possível encontrar diversos julgados que, diante de um depósito judicial feito pelo devedor com a finalidade de garantia do juízo para posterior apresentação de impugnação (ou embargos), entenderam que o devedor estaria isento do pagamento dos consectários da sua mora (correção monetária e juros), haja vista que a instituição financeira depositária já arcaria com eles. 

Tal entendimento consagrava a estratégia de se garantir o juízo executório por meio de um depósito judicial e simultaneamente impugnar a execução, condicionando o levantamento desse depósito à decisão final acerca da impugnação, estratégia relativamente comum na prática forense, tendo em conta a difundida crença de que os consectários da mora não incidiriam mais após a garantia do juízo. Ao proceder dessa forma, os devedores exerciam seu direito de defesa e se protegiam contra o crescimento da dívida em razão dos juros de mora incidentes sobre os créditos judicializados.

Como, porém, o acórdão do Tema 677/STJ original teve como foco a responsabilidade da instituição financeira pela remuneração dos valores depositados, a Corte Especial deixou de se debruçar especificamente acerca dos efeitos desse depósito para a mora do devedor.

A ausência de definição desse ponto no acórdão original levou a uma oscilação da jurisprudência do próprio STJ. Com efeito, analisando a questão sob a perspectiva da mora do devedor, alguns julgados do STJ  passaram a entender que o depósito para fins de mera garantia do juízo não teria o efeito de purgar a mora. Afinal, o depósito garantidor não seria dotado de animus solvendi (entre outros pontos), de modo que os juros moratórios continuariam a ser exigíveis do devedor.

Nesse contexto, como a tese original do Tema 677/STJ não foi capaz de pacificar a controvérsia, em 7.10.20 a Corte Especial acolheu Questão de Ordem suscitada pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino no âmbito do REsp 1.820.963/SP, para propor a revisão do Tema.

Dois anos depois, em 19.10.22, o julgamento do mérito finalmente foi concluído. Em uma decisão tomada por sete votos a seis, a Corte Especial decidiu por “esclarece[r] a correta aplicação da tese, atribuindo-lhe nova redação” , segundo a qual “na execução, o depósito efetuado a título de garantia do juízo ou decorrente da penhora de ativos financeiros não isenta o devedor do pagamento dos consectários de sua mora, conforme previstos no título executivo, devendo-se, quando da efetiva entrega do dinheiro ao credor, deduzir do montante final devido o saldo da conta judicial”.

Em que pese a drástica alteração da tese, a Corte Especial optou por não modular os efeitos da decisão, a qual, por força do art. 1.040 do CPC, já está sendo aplicada desde 16.12.22, quando o acórdão foi publicado. A decisão de não modular foi objeto de dois embargos de declaração que estão atualmente pendentes de julgamento. 

Nesse contexto, o presente artigo não pretende analisar os fundamentos adotados pelo acórdão para alterar o mérito da tese, mas tão somente contribuir para o debate acerca da necessidade de nova análise da modulação dos seus efeitos.

Em breve síntese, são quatro motivos pelos quais a decisão de não modular os efeitos foi equivocada: (i) um de ordem formal, pelo modo como se deu o julgamento desse tema; (ii) outro de ordem sistemática, ligado à compatibilidade da nova tese com o Código Civil; (iii) o terceiro de ordem lógica, relacionado a uma contradição entre os argumentos do acórdão e a conclusão de que não haveria mudança de tese, mas mero ajuste na sua redação; e (iv) o último de ordem prática, relativo à necessidade de se conferir segurança jurídica aos jurisdicionados.

O primeiro motivo — muito bem abordado por ambos os embargos de declaração atualmente pendentes de julgamento — diz respeito ao relevante vício formal ocorrido na parte do julgamento que decidiu por não modular os efeitos do acórdão.

Como se observa daquela sessão , a decisão de não modular foi tomada por quatro votos contra três favoráveis à modulação. A decisão de mérito do recurso, por outro lado, foi tomada por sete votos a seis. Isto é, enquanto treze Ministros votaram no mérito da tese , apenas os sete Ministros vencedores foram autorizados a votar sobre a modulação.

O cerceio do direito de voto dos seis Ministros vencidos no mérito foi objeto de imediato protesto por parte de alguns deles. Ao ser impedido de votar, o saudoso Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, por exemplo, lembrou que “a deliberação a respeito da modulação ou não modulação é uma nova etapa do julgamento, que todos participam. Então, consequentemente, não são apenas os votos vencedores que devem deliberar”. 

Tendo em vista que a lei processual não impõe a modulação, apenas a permite (art. 927, §§3º e 4º), a observação do ministro Sanseverino possui fundamentos relevantes. A decisão de modular ou não os efeitos de determinado acórdão é de fato uma nova etapa do julgamento. Afinal, primeiro se decide o mérito e, depois, se analisa a necessidade de programar o início de sua eficácia.

Em se tratando de uma nova etapa do julgamento, o art. 174 do regimento interno do STJ , cumulado com uma aplicação analógica do art. 165 , determina que todos os ministros votem. Enquanto o art. 174 prevê que as decisões serão tomadas pelo voto da maioria, o 165 estipula que, em se tratando de nova etapa do julgamento, todos os ministros — inclusive aqueles vencidos na votação anterior — devem participar, justamente para garantir que o novo ponto submetido a julgamento seja definido por voto da maioria (conforme requerido pelo artigo 174).

No julgamento examinado, contudo, a decisão pela não modulação foi tomada por apenas quatro ministros de um total de treze que participaram do julgamento. Trata-se de relevante decisão tomada por menos de um terço dos integrantes da Corte.

Diante da manutenção do cerceio dos votos dos demais ministros por parte do presidente da sessão, o ministro Raul Araújo chegou a classificar a forma de votação como “açodamento” ; após novas insistências do ministro Sanseverino, a questão foi “resolvida” com a conclusão de que “posteriormente apresentem embargos”. 

A limitação do direito de voto de parte significativa dos membros da Corte Especial é severamente discutível diante do que prevê o regimento interno do STJ (como visto acima); para além disso, esse posicionamento ainda encontra obstáculos na própria jurisprudência daquela Corte, uma vez que os ministros vencidos no mérito também participaram da votação a respeito da modulação dos efeitos no julgamento dos Temas nos 988, 1.003 e 1.088/STJ. Esses argumentos estão contidos nos dois embargos de declaração cujo julgamento está atualmente pendente.

O segundo motivo pelo qual é imprescindível que se faça uma nova análise da modulação está relacionado à necessidade de se adequar a nova tese aos contornos do Código Civil.

Ao votar contra a modulação, a ministra Nancy Andrighi, relatora do acórdão, argumentou que não se tratava de alteração da tese exposta no texto original do Tema 677/STJ, mas mero esclarecimento acerca dos reais efeitos daquele enunciado. Isto é, para a relatora e os demais ministros que a acompanharam, permanece válido o entendimento de que “na fase de execução, o depósito judicial do montante (integral ou parcial) da condenação extingue a obrigação do devedor, nos limites da quantia depositada” (redação original do Tema 677/STJ). Nesse sentido, o julgamento atual apenas esclareceria que se o depósito for com a finalidade de garantia do juízo, em vez de pagamento, a extinção da obrigação do devedor nos limites da quantia depositada não alcançaria os consectários da mora.

Essa interpretação, todavia, pode implicar na violação de um importante princípio do Direito Civil: o da gravitação jurídica, segundo o qual o acessório segue o principal.

Os juros de mora, especialmente aqueles devidos no âmbito de um processo judicial, representam uma obrigação acessória,  enquanto o bem principal perseguido com o processo é a dívida originária. Segundo o art. 92 do Código Civil, acessório é o bem “cuja existência supõe a do principal”; desse modo, o entendimento de que o depósito em garantia extingue a obrigação sem, contudo, afastar a mora do devedor, implica em manter o acessório apesar do desaparecimento do principal.

Considerando a natureza acessória dos juros moratórios, parece inviável sustentar que não houve uma mudança na tese, mas mero “esclarecimento”. A relevante alteração no raciocínio envolvendo os consectários da mora — e as substanciais consequências jurídicas e econômicas então geradas — permitem concluir que houve, sim, efetiva mudança no entendimento.

Veja-se que a tese antiga atendia ao princípio da gravitação jurídica ao dizer que o depósito em garantia extinguia a obrigação, impondo também a purgação da mora (ainda que parcialmente); afinal, a obrigação acessória segue a principal. De acordo com o referido princípio, não se pode admitir a permanência da obrigação de pagar os consectários da mora (obrigação acessória por natureza) se a própria dívida original (obrigação principal) foi extinta.

O terceiro motivo pelo qual é necessário que se faça uma nova análise da modulação diz respeito ao fato de que existe um descompasso entre a conclusão de que a tese original permaneceria válida (convivendo com a obrigação de arcar com os consectários da mora) e a própria fundamentação do voto vencedor da mudança de tese.

Um dos principais fundamentos adotados no acórdão para rever a tese do Tema 677/STJ diz respeito ao fato de que garantia não se confunde com pagamento. Como o depósito em garantia não possui animus solvendi, ele não seria capaz de purgar a mora, o que só ocorre quando há pagamento — ou melhor, com “a efetiva entrega da soma do valor ao credor, ou, ao menos, a entrada da quantia na sua esfera de disponibilidade”. 

Segundo o art. 304 do Código Civil, a extinção da dívida ocorre com o pagamento. O CPC, em seu art. 904, I, por sua vez, prevê que a satisfação do crédito exequendo far-se-á pela entrega do dinheiro. Assim, em se tratando de obrigação de pagar quantia certa, a extinção da obrigação só ocorre com o pagamento. 

Nesse sentido, se garantir não é pagar, o depósito em juízo para fins de garantia jamais seria capaz de extinguir a obrigação principal (que é de pagar), conforme previa a redação original do Tema 677.

A partir do momento em que se entende que garantia não é pagamento e que apenas o pagamento é capaz de extinguir a obrigação (principal), bem como purgar a mora (acessório), constata-se que a redação original do Tema 677 é incompatível com a redação atual. Isso significa que efetivamente houve uma mudança da tese.

Se houve mudança tão relevante como essa, é necessária a modulação de seus efeitos como meio de garantir um mínimo de segurança jurídica aos jurisdicionados que optaram por garantir o juízo amparados pela jurisprudência repetitiva vigente à época.

Compreendido o fato de que efetivamente houve alteração do entendimento do STJ acerca dos efeitos do depósito para fins de garantia em relação à mora do devedor, é preciso considerar o impacto que tamanha mudança no ordenamento jurídico poderá ter sobre os processos atualmente em curso.

Com efeito, o quarto motivo pelo qual se deve modular os efeitos da nova tese está ligado ao direito fundamental de todos os jurisdicionados à segurança jurídica (art. 5º, XXXVI, CRFB).

Como adiantado no início deste artigo, é bastante comum a estratégia forense de se garantir o juízo executório por meio de um depósito judicial e simultaneamente impugnar a execução, condicionando o levantamento desse depósito à decisão final acerca da impugnação.

O difundido entendimento de que os consectários da mora não mais incidiriam após a garantia do juízo — tese essa respaldada pela redação original do Tema Repetitivo 677/STJ — levou milhares de jurisdicionados a depositarem valores em juízo por acreditarem que assim poderiam exercer seu direito ao contraditório sem ver a sua dívida aumentar consideravelmente.

Ao proceder dessa forma, os devedores exerciam seu direito de defesa e se protegiam contra o crescimento da dívida em razão dos juros de mora incidentes sobre os créditos judicializados.

Surpreender os jurisdicionados com um súbito aumento de suas dívidas em razão de uma brusca mudança de entendimento da jurisprudência do STJ, implicaria em punir milhares de devedores que se pautaram no entendimento até então consolidado do STJ acerca das implicações do depósito do valor executado em juízo, impondo-lhes um ônus até então inexistente ao exercício regular do seu direito de defesa.

O direito fundamental à segurança jurídica impede que situações pretéritas, ocorridas em razão da confiança dos jurisdicionados na jurisprudência vinculante, sejam revistas a posteriori para desfazer o passado. 

A necessidade de garantia da segurança jurídica é uma preocupação tão grande do legislador que a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (lei 4.657/42) prevê expressamente que os efeitos da adoção de determinada tese devem ser considerados na tomada de decisão (arts. 20, 21, 23 e 24). O art. 23 daquela lei chega, inclusive, a determinar que a decisão judicial que “estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais”.

O que se observa, portanto, é que o ordenamento jurídico brasileiro impõe que quando haja uma mudança de jurisprudência significativa, sejam adotadas precauções para garantir uma transição tranquila para os jurisdicionados.

Em suma, existem diversos argumentos para defender que seja revista a decisão de não modular os efeitos da nova tese conferida ao Tema Repetitivo 677/STJ, destacando-se (i) o mencionado vício formal no quórum do julgamento da modulação dos efeitos; (ii) a incompatibilidade da justificativa adotada para não modular (a de que não haveria uma mudança de tese, mas mero esclarecimento) com o princípio da gravitação jurídica; (iii) a contradição existente entre o fundamento do acórdão (de que garantia não é pagamento) com a conclusão de que o depósito extinguiria a obrigação principal, mas não extinguiria a obrigação acessória de arcar com os consectários da mora; e (iv) o imperioso respeito ao direito fundamental à segurança jurídica.

O presente artigo não possui a pretensão de exaurir os inúmeros debates ao redor da tese fixada no mencionado Tema Repetitivo, mas tão somente apontar alguns dos motivos pelos quais se espera que a e. Corte Especial do STJ decida por modular os efeitos da nova tese.

A comunidade jurídica permanece atenta ao julgamento dos embargos de declaração pendentes no REsp 1.820.963/SP, ansiando por uma resposta tempestiva do Poder Judiciário acerca da modulação dos efeitos da decisão tomada no dia 19.10.22.

Tomás Nielsen Fragelli Cardoso
Advogado formado pela PUC-RIO e sócio do Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados (RJ).

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