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Prescrição aplicável às ações de reparação por danos concorrenciais: Direito intertemporal

Lei 14.470/22 altera a lei de defesa da concorrência, fixando prazo prescricional de 5 anos para ações de reparação de danos concorrenciais, com contagem a partir da ciência inequívoca do ilícito, conferida pelo julgamento final do processo administrativo pelo Cade. Anteriormente, aplicava-se a regra geral de prescrição de 3 anos do Código Civil.

9/3/2024

Em vigor desde 17.11.22, a lei 14.470/22 alterou a lei de defesa da concorrência (lei 12.529/11) para estabelecer novas disposições aplicáveis à reparação civil de danos causados por infrações à ordem econômica. 

Entre as principais alterações trazidas pela nova lei, está a fixação do prazo prescricional de 5 (cinco) anos para o exercício da pretensão indenizatória, contado a partir da ciência inequívoca do ilícito (art. 46-A, § 1º). Em complemento, o novo diploma considera ocorrida a ciência inequívoca do ilícito quando da publicação do julgamento final do processo administrativo pelo Cade (art. 46-A, § 2º).

Antes da nova Lei, diante da inexistência de regra específica, aplicava-se às ações de reparação por danos concorrenciais decorrentes de relações civis ou empresariais a regra geral de prescrição para fins de reparação civil extracontratual prevista no art. 206, § 3º, V, do Código Civil – 3 anos.1

Especificamente no que se refere ao termo inicial da contagem do prazo prescricional, parte da jurisprudência já adotava a teoria da actio nata em seu viés subjetivo para determinar que o conhecimento da lesão a direito subjetivo pelo respectivo titular é pressuposto indispensável à deflagração da prescrição2. Para julgamento das ações de reparação por danos concorrenciais do tipo follow-on, isto é, decorrentes de uma investigação iniciada pelo Cade, a mesma lógica era empregada, com a particularidade de que a ciência inequívoca do ilícito era situada na ocasião da decisão final do Cade3.

Quanto à aplicação intertemporal, a lei 14.470/22 não veicula regra de transição, restando à jurisprudência e à doutrina debaterem a respeito de sua aplicação no tempo. Por certo, “[o]s problemas de direito intertemporal surgem em relação às situações pendentes, pois envolvem casos iniciados antes da vigência da nova lei, ainda não concluídos e que sofrerão incidência da nova norma”4.

Nesse contexto, em se tratando do prazo prescricional, já é possível identificar a inclinação jurisprudencial no sentido de que, “[c]aso já operada a prescrição da lei antiga antes da entrada em vigor da nova legislação, inviável a consideração do novo prazo (...). Consequentemente, inviável a rediscussão das demandas cujas decisões acerca da prescrição já se encontrem preclusas, abarcadas pela coisa julgada ou pelo ato jurídico perfeito” (STJ, 3ª turma, REsp 2.095.107/SP, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 3.10.23, DJe 6.10.23)5 - 6.

O posicionamento acima foi acompanhado por acórdão recente proferido pela 12ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP. Por unanimidade, o órgão colegiado decidiu pela não aplicação retroativa dos §§ 1º e 2º do art. 46-A da lei 12.529/11 se o prazo prescricional trienal já houver se consumado antes da entrada em vigor da lei 14.470/22: “[t]al dispositivo legal, inequivocamente, é norma de direito material, pelo que se aplica o princípio tempus regit actum, ou seja, os seus efeitos não podem retroagir para tutelar fatos anteriores à sua vigência, pena de ofensa ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, com grave insegurança à ordem jurídica” (TJ/SP, 12ª Câmara de Direito Privado, apelação 1042501-11.2021.8.26.0100, des. rel. Tasso Duarte de Melo, j. 6.2.24, DJe 8.2.24).

O acervo jurisprudencial que vem se formando, portanto, tende a confirmar que “[o]s casos em que a prescrição se esgotou antes da entrada em vigor da lei 14.470/22 não devem ser afetados. A proteção ao ato jurídico perfeito conduz à conclusão de que essas situações, consumadas durante a vigência da lei anterior, permanecerão por ela regidas. Essa conclusão confere vigência ao princípio da irretroatividade das normas para proteção à segurança jurídica, impedindo que a lei 14.470/22 alcance fatos ocorridos antes da sua vigência”7.

No que diz respeito ao § 2º do art. 46-A da lei 14.470/22 (que considera ocorrida a ciência inequívoca do ilícito quando da publicação do julgamento final do processo administrativo pelo Cade), por se tratar de norma interpretativa, aplica-se com eficácia imediata aos casos pendentes de julgamento. Por isso, supõe-se que a sua retroatividade (aplicação intertemporal) não gerará controvérsias judiciais8, o que não exclui a possibilidade de discussão sobre a existência de marcos anteriores ao julgamento que permitiriam ao autor ter ciência inequívoca da infração8. Na prática, a lei 14.470/22 estabeleceu um momento a partir do qual não é mais possível alegar que não houve ciência da infração, mas nada disse sobre a possibilidade de tal ciência se dar antes mesmo da decisão do Cade.

Para além disso, é importante lembrar que, diferentemente das ações follow-on, as ações stand alone não encontram correspondência legislativa a respeito do que poderia ser assumido como conhecimento do direito violado. Nesses casos, é preciso fazer tal delimitação casuisticamente (p. ex., contratos entre o lesado e o agente causador do dano9).

A propósito, embora tenha se filiado à teoria objetiva da actio nata (art. 189, CC), a 12ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP, no âmbito do julgamento da apelação supracitada, sinalizou que, mesmo se fosse adotado o viés subjetivo da teoria da actio nata, a ampla divulgação midiática do suposto cartel poderia ser considerada como ciência inequívoca do ilícito pela parte que invoca o seu pretenso direito.

Isso demonstra que, apesar de os tribunais já estarem delineando o seu posicionamento, as questões envolvendo prescrição das Ações de Reparação de Danos Concorrenciais - ARDCs, especialmente após a nova lei, ainda demandarão muita discussão doutrinária e interlocução jurisprudencial.

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1 Nesse sentido: STJ, 4ª Turma, REsp nº 1.971.316/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 25.10.2022, DJe 14.12.2022.

2 Nesse sentido: STJ, 3ª Turma, REsp nº 1.622.450/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 16.03.2021, DJe 19.03.2021.

3 Nesse sentido: STJ, AREsp nº 2.094.466, Min. Moura Ribeiro, DJe 25.08.2022.

4 A lei 14.470/22 e a prescrição aplicável à reparação de danos concorrenciais (migalhas.com.br).

5 Não dizendo respeito ao prazo prescricional aplicável às ações de reparação por danos concorrenciais, mas no mesmo sentido: “(...) o prazo definido pelo novo diploma legal não incidirá se o prazo de prescrição aplicável anteriormente já tiver se consumado ou se a ação já tiver sido ajuizada antes da entrada em vigor da lei nova” (STJ, 3ª Turma, REsp nº 2.022.552/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 06.12.2022, DJe 09.12.2022).

6 Por outro lado, tendo em vista “a inexistência de direito adquirido ao regime jurídico aplicável, inclusive à matéria prescricional” (STJ, 3ª Turma, REsp nº 2.095.107/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 03.10.2023, DJe 06.10.2023), o Superior Tribunal de Justiça reconhece a incidência da Lei nº 14.470/2022 para regular os casos em que não houve a configuração da prescrição trienal. Nesse sentido: STJ, 2ª Turma, REsp nº 1.998.098/MG, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 12.12.2023, DJe 21.01.2024.

7 A lei 14.470/22 e a prescrição aplicável à reparação de danos concorrenciais (migalhas.com.br). 

8 Vide STJ, AREsp nº 1.574.132/SP, Min. Marco Buzzi, DJe 11.12.2023.

9 Vide STJ, 4ª Turma, REsp nº 1.971.316/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 25.10.2022, DJe 14.12.2022.

Joyce Honda
Sócia da área de Concorrencial do Cescon, Barrieu, Flesch & Barreto Advogados.

Edison Elias de Freitas
Sócio da área de Contencioso e Arbitragem do Cescon, Barrieu, Flesch & Barreto Advogados.

Thales de Melo e Lemos
Associado de Cescon Barrieu Advogados.

Michel Salemi
Advogado júnior da área de Contencioso e Arbitragem do Cescon, Barrieu, Flesch & Barreto Advogados.

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