Muito se tem discutido a respeito de se iniciar uma reengenharia constitucional a fim de resgatar o real sentido de promulgar uma Carta Magna de representação democrática. Nesse contexto, sabe-se que o Brasil vem perpassando por sete Constituições, ao longo de sua trajetória conturbada, entre crises sociais e lutas políticas. Destarte, a grande questão a ser enfrentada nesse artigo transpassa pela atual CF/88, que contém 250 artigos no processo ordinário e 105 Atos de Disposições Transitórias - ADCT. Isto posto, percebe-se que pode ser considerada um tanto detalhista, ambiciosa e prolixa, sendo destaque pela inclusão de direitos sociais e liberais, ora tendendo para o corporativismo, ora o para o contratualismo liberal. De acordo com site Conjur, a CF/88 é a terceira lei suprema em extensibilidade, perdendo em amplitude somente para as Constituições da Índia e Nigéria – fato que coaduna com a possibilidade de interpretação ambígua e problemas com inconstitucionalidades constantes (neoinconstitucionalismo).
A priori, é mister contextualizar sobre o período da criação da CF/88 que foi posterior a duas décadas de regime ditatorial, atuando em uma era de desconfiança e fragmentação política. Nesse diapasão, muitos doutrinadores, políticos e autoridades acreditavam que deveriam ser positivados direitos sociais, políticos, econômicos, tributários, entre outros, sem se atentar para a dificuldade de reversão por Emendas Constitucionais posteriores. Explicando melhor, a espinha dorsal da CF/88 é positiva, coadunando com direitos fundamentais, separação de poderes, no entanto, extensos artigos referentes ao direito tributário, por exemplo, deveriam constar de leis ordinárias evitando-se a petrificação constitucional. Nessa toada, quando ocorrem crises orçamentarias dos entes públicos, a única medida de reestruturação adaptativa seria a Emenda Constitucional, cujo quórum de 3/5 dos parlamentares remonta a uma dificílima aprovação. Segundo o atual presidente do STF Luis Roberto Barroso,
"A chegada de uma Constituição à sua terceira década, na América Latina, é um evento digno de comemoração efusiva. Sobretudo se ela, apesar de muitos percalços, tiver conseguido ser uma Carta verdadeiramente normativa, derrotando o passado de textos puramente semânticos ou nominais”
Após toda a argumentação inicial, faz-se necessário colocar em pauta a possibilidade de “lipoaspiração” constitucional (reduzicionismo) ou a reengenharia da Carta Magna (reconstrutivismo), para dirimir crises institucionais de compliance normativo. Nessa perspectiva, sabe-se que ambos os institutos não podem ser complementares, mas excludentes na medida que não há compatibilidade para recriar e reduzir, ao mesmo tempo. Para esclarecer a ideia de reescritura constitucional discorre o deputado federal Ricardo Barros,
"Portanto, não há nada de errado em desejar para o Brasil uma Constituição mais enxuta, menos engessada, que equilibre melhor as competências do Estado e da iniciativa privada, que dê ferramentas para um combate mais efetivo ao crime e à corrupção, que compreenda a necessidade do equilíbrio fiscal — este é um desejo legítimo e até meritório. Mas pelo menos algumas dessas mudanças podem ocorrer por emendas ao texto atual, e elas vêm sendo feitas, ainda que em ritmo mais lento que o necessário. Restam as limitações mais profundas, que realmente só poderiam ser sanadas com uma nova lei maior; mas isso exigiria um outro momento, de absoluta tranquilidade e serenidade, bastante diferente daquele que vivemos hoje, de turbulência e polarização".
Outrossim, para alguns, a reconstitucionalização teria que ser aprovada por plebiscito da população e, posteriormente, a criação de uma nova Assembleia Constituinte originaria com representatividade equânime. Nesse tipo de instituto, partir-se-ia de uma folha em branco ou estaca zero, de forma a perfazer uma reengenharia de ideais políticos, sociais e culturais. Um exemplo disso, está ocorrendo com a Constituição Chilena, todavia, o Brasil tem diversidade de demandas e necessidades estruturais que não podem ser comparadas às chilenas.
Nessa discussão sobre recriação da Carta Magna, pontos de consenso entre os juristas que merecem mudança foram se formando como: 1- uma nova Constituição sem extensos artigos sobre direito tributário, trabalhistas, cíveis, uma vez que deveriam ser positivados infraconstitucionalmente; 2- reforma política imediata com permissão para fidelidade partidária e restrição ao multipartidarismo e 3- reforma administrativa com o intuito de contenção do inchaço da máquina estatal.
No entanto, não há concordância entre os doutrinadores se seria melhor reescrever ou reduzir, uma vez que a retirada de alguns artigos constitucionais prejudiciais, por meio de revisão, poderia ser menos custoso e produzir com celeridade os efeitos necessários. Ademais, existem propostas de se tentar delegar para os Estados competências da União afim de gerar uma espécie de “competição saudável” e fomentar ideias liberalistas compatíveis com a supremacia dos contratos. Nesses projetos iniciais de reduzicionismo, alguns preconizam a relocação das competências trabalhistas, cíveis e penais para cada Estado da federação de acordo com a própria autonomia, como nos EUA. Nesse prisma, para completar o raciocínio, faz-se mister destacar que a Constituição Americana possui 7 artigos e teve 27 Emendas Constitucionais em 20 anos e a CRFB/88 possui 250 artigos e 140 Emendas Constitucionais em 36 anos. Diante disso, infere-se que a grande quantidade de mudanças nos artigos constitucionais brasileiros remonta a grande necessidade de remodelagem institucional, além de trazer à tona a problemática do neoinconstitucionalismo brasileiro.
Para se adentrar a situação do neoinconstitucionalismo, deve-se descrever que a CRFB/88 tem uma temática dicotômica com direitos sociais e liberais, ora primando pelo corporativismo, ora para o contratualismo. Assim, no Brasil, convive-se com o controle misto de inconstitucionalidade (difuso e coletivo), no qual um magistrado de primeira instância pode julgar uma lei inconstitucional, gerando recursos em massa e demandas repetitivas com decorrente abarrotamento do judiciário. Além disso, o rol de legitimação para impetração de controle de constitucionalidade foi ampliado para melhor representar os entes públicos e a população, todavia decorreu a problemática da judicialização prejudicial e ostensiva. Portanto, tanto os doutrinadores reduzicionistas com os reengenheiros preconizam a competência dos Estados para legislar sobre determinados assuntos locais, em detrimento da União, para evitar inconstitucionalidades, além da maior vinculação aos precedentes, súmulas e jurisprudências.
Para finalizar, apesar de toda a explanação sobre a reconstitucionalização, a lipoaspiração da CRFB/88 e o neoinconstitucionalismo, ostenta-se que a nossa lei suprema está sobrevivendo há 36 anos, mesmo diante de impeachments de presidentes, atos institucionais, intervenções, crises sanitárias da COVID-19 e graves atentados a democracia. De acordo com o ministro do STF Gilmar Mendes,
“Essa é, pelo menos, a Constituição mais estável que tivemos. E foi aquela que evitou golpes, não ensejou tentativa de tomada de poder, por isso ela tem um valor em si mesmo, um valor intrínseco, que precisa ser cultuado.
Por isso que, também por outras razões, me repugna qualquer ideia de constituinte, miniconstituinte (sic). Até porque, embora seja relativamente difícil o processo de reforma, ele não é impossível. As reformas foram feitas dentro de um ambiente democrático. As pessoas discutiram, tudo mais. Portanto me parece que temos que continuar nessa tarefa, nessa fase de reforma".
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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, DF: Senado federal: Centro Gráfico, 1988.
BARROSO, Luis Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2016.
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. São Paulo: Saraiva, 2014