Migalhas de Peso

Tropeços na descriminalização das drogas

A lei de drogas e a política proibicionista têm se mostrado ineficientes, desastrosas e racistas, institucionalizando um combate com violência contra o que deve ser tratado com inteligência, na acepção técnica do termo.

6/3/2024

No dia 6, o STF pode voltar a julgar o RE 635.659, que discute a constitucionalidade do crime de porte de drogas (art. 28 da Lei de Drogas). Em 2015, o ministro Gilmar Mendes votou pela inconstitucionalidade do crime por porte de qualquer droga.  Desde então, o STF tem a chance de abrir caminho para a construção de políticas públicas consistentes de saúde, educação e redução de danos para o que vem sendo tratado há décadas como problema de polícia.

Ano passado, quase oito anos depois, Mendes mudou seu entendimento para aderir à maioria e o voto do ministro Alexandre de Moraes contabilizou o placar de cinco votos a um a favor da descriminalização apenas da maconha. Houve alvoroço em torno do voto de Moraes que caracterizou como porte de drogas a posse de até 60 gramas de maconha. Apesar da aparente ousadia na quantidade, além de não incluir outras drogas, suas considerações ainda abrem espaço para aprofundar ainda mais o encarceramento em massa de pessoas em decorrência do crime de tráfico de drogas, algo que aumentou tremendamente desde 2006, quando a lei foi sancionada. 

A lei de drogas e a política proibicionista têm se mostrado ineficientes, desastrosas e racistas, institucionalizando um combate com violência contra o que deve ser tratado com inteligência, na acepção técnica do termo. O Brasil tem hoje 832 mil presos/as, terceira população carcerária do mundo, segundo dados publicados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública em julho de 2023, e 27% respondem por tráfico de drogas. 

Diagnóstico levantado pelo Instituto Igarapé indica que a maioria dos presos provisórios e condenados por tráfico de drogas no Brasil é composta de réus primários, flagrados em operações de policiamento de ostensivo, desarmados, sem provas de envolvimento com a criminalidade organizada e com pequenas quantidades de substância ilícita. 

Em vigor há quase vinte anos, a atual lei de drogas, que já prevê não punir com pena privativa de liberdade o usuário, não traz critérios de distinção entre o porte de usuário e o tráfico no que concerne à quantidade e a natureza da substância apreendida. Na prática, tal ausência legitima uma subjetividade que tem levado ao aumento expressivo do encarceramento por tráfico. A diferenciação entre traficante e usuário, de modo geral, vem sendo definida da seguinte forma: se a pessoa é branca e de classe média é classificada como usuária; se é negra e vive na periferia, traficante. 

É fundamental que a Corte fixe standard probatório para caracterizar tráfico em consonância  com a garantia da presunção de inocência, que impõe ao Estado o dever de provar a acusação. A pessoa flagrada com drogas deve ser sempre presumida usuária e só quando houver prova concreta de traficância pode se falar no artigo 33 da lei de drogas. 

A partir de pontos objetivos, a polícia e o Ministério Público teriam dados concretos para classificar a conduta. Ao Judiciário caberia analisar a legalidade da prisão e a justa causa  para acusação, respeitando o espírito despenalizador da lei. 

A visão recorrente de advogados criminalistas e juristas é de que a intervenção penal deve ser proporcional ao mal causado pela própria pena: a privação de liberdade deve suceder infração muito grave, o que certamente não é o caso dos jovens negros presos por tráfico, como mostram as pesquisas. 

Segundo outra pesquisa divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), se um critério objetivo fosse adotado, mesmo em quantidade conservadora (25 gramas), cerca de 31% dos processos por tráfico de drogas com apreensão de maconha poderiam ser reclassificados como porte pessoal no País. 

Por outra perspectiva, essas condutas nem ao menos feririam o princípio de lesividade, já que não há lesão nem perigo de lesão a um bem jurídico penalmente relevante alguém portar consigo quantidade mínima de droga. É fundamental que se garanta a cada indivíduo o direito de dispor de seu corpo e de sua vida do jeito que lhe aprouver, desde que não cause danos ao próximo.

Do ponto de vista institucional, os votos já proferidos da Corte não explicam o porquê a regra constitucional que veda incriminar a autolesão serve só para maconha e não para outras drogas. Afinal, do ponto de vista jurídico, não existe coerência em restringir a declaração de inconstitucionalidade à maconha , especialmente diante da generalidade do direito constitucional violado com a criminalização. O controle de constitucionalidade de norma jurídica não admite casuísmos: o artigo 28 fala em “drogas”, cujo complemento extralegal é a portaria SVS 344, que descreve a lista de substâncias sujeitas a controle especial no Brasil, como entorpecentes e psicotrópicas. Quem mais necessita da descriminalização e de políticas públicas consistentes são as pessoas vulneráveis, especialmente usuárias de crack. Trata-se de um problema de saúde pública e como tal deve ser tratado. 

Do modo como vem sendo desenhado o julgamento, na prática não muda muita coisa, pois há uma validação do tirocínio policial ao permitir a elasticidade dos critérios, sempre submetidos à avaliação dos encarregados do policiamento ostensivo.

A votação do STF ainda não acabou, as discussões foram interrompidas com um novo pedido de vista do Ministro André Mendonça. Temos a chance de seguir atrás de nossos vizinhos, como Argentina e Colômbia que já descriminalizaram o porte de drogas. Ou seguiremos apostando numa política elitista, racista e perversa de jogar jovens pretos periféricos no cárcere.

Djeff Amadeus
Diretor de Advocacy do IDPN.

Joel Luiz Costa
Diretor executivo do IDPN.

Guilherme Ziliani Carnelós
Presidente do IDDD.

Marina Dias Werneck de Souza
Diretora-executiva do IDDD e do conselho político do IDPN.

Priscila Pâmela dos Santos
Advogada Criminal. Sócia do escritório Araujo Recchia Santos Sociedade de Advogadas. Vice-presidente do IDDD.

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