Em 27.2.24, foi publicado despacho do ministro André Mendonça, do STF, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Direito Fundamental, ADPF 1.051/DF, assegurando um prazo de 60 dias para que o Ministério Público Federal - MPF, a Controladoria-Geral da União - CGU, a Advocacia-Geral da União - AGU e as empresas que se habilitaram nos autos da ADPF 1.051/DF tentem chegar a um consenso sobre os acordos de leniência firmados por tais empresas e sua possível renegociação.
A decisão do ministro André Mendonça trata de tema semelhante àquele endereçado pelo ministro Dias Toffoli, do STF, nas decisões que determinaram a suspensão do pagamento das multas definidas em acordos de leniência1 celebrados pela J&F2 e pela Novonor3.
Nesse contexto, tem-se utilizado a terminologia “revisão” de modo genérico para tratar do objeto das discussões no âmbito dos acordos de leniência. Tecnicamente falando, parece-nos necessário diferenciar as hipóteses de “revisão” dos acordos em suas três espécies: (i) anulação, (ii) rescisão e (iii) repactuação. As hipóteses não se confundem, possuem requisitos específicos e consequências também diferenciadas, tanto para autoridades públicas quanto para as empresas que firmaram tais acordos.
A hipótese de (i) anulação ocorrerá quando a celebração do acordo não preencher seus requisitos legais (materiais e formais) e/ou seus princípios basilares, como do devido processo legal, da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa, da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade e da vedação ao bis in idem. 4-5
A anulação diz respeito a um dos elementos basilares e essenciais dos acordos. Não se trata de uma questão de conveniência ou oportunidade da Administração nem de um dos elementos negociais dos acordos.
A anulação de um acordo de leniência pode ocorrer nos casos em que resta provada a inexistência de voluntariedade do agente – por exemplo, na situação em que um colaborador tenha sido coagido a firmar o acordo. Como a voluntariedade do agente é um pressuposto de qualquer acordo, o acordo de leniência poderia ser anulado. Aliás, por analogia, menciona-se a voluntariedade como exigência dos acordos de colaboração premiada, nos termos do caput do artigo 4º da lei 12.850/13. Ainda, entre as formalidades que devem ser observadas no termo de acordo, os artigos 6º e 7º da lei 12.850/13 definem requisitos materiais e formais mínimos que, caso não cumpridos, podem resultar na anulação do acordo.
Caso requisitos legais (materiais e formais) e/ou seus princípios basilares não tenham sido observados, é possível anular o acordo, cuja consequência é a desconsideração de todos os elementos probatórios a ele relacionados. Não é possível, por exemplo, utilizar-se das provas obtidas por meio de acordo que venha a ser anulado, uma vez que essas provas não poderão ser utilizadas para processar os demais coautores da infração (se existentes). Por exemplo, se restar provado que um colaborador foi coagido a firmar um acordo de leniência, a anulação do acordo impedirá, via de regra, que as provas por meio dele obtidas sejam utilizadas para processar terceiros ou sustentar pedidos de apreensão de bens.
Uma questão que se tem colocado é a consequência de uma negociação hostil e do chamado “arm twisting”6. Trata-se do receio de que a autoridade pública imponha sanções ou não conceda benefícios na esperança de encorajamento de adequação “voluntária”. Pode-se argumentar que tal situação seria de hipóteses legítimas para solicitar revisão do Acordo de Leniência. Isso, porque, ao adotar tal postura, a autoridade pública violaria as disposições legais e regulamentares para impor um resultado ao colaborador que, de outro modo, não poderia impor diretamente ou por meio de sua regulamentação. Em uma análise preliminar, parece-nos que essa hipótese estaria próxima a um cenário de anulação de acordos e não necessariamente a situações de rescisão ou repactuação.
Ao menos em tese, a anulação do acordo e a consequente invalidação das provas e dos atos dele decorrentes não impedem, necessariamente, a condução de nova investigação em face dos então colaboradores. Obviamente que, para determinar a possibilidade, ou não, de uma nova investigação, será fundamental a análise do caso concreto até para estabelecer a responsabilidade pelos atos que teriam resultado na anulação do acordo.
Caso não houvesse investigação antes de celebrado o acordo, a nova investigação deve partir de elementos absolutamente distintos das provas obtidas no âmbito do acordo, sob pena de ser eivada de nulidade pela aplicação da teoria das provas ilícitas por derivação (fruits of the poisonous tree), por interpretação analógica do art. 157 do CPC. Por sua vez, caso já houvesse investigação anteriormente à celebração do acordo, sua anulação poderá resultar na retomada do status quo ante, ou seja, deveria retornar-se a um cenário sem acordo, mas com uma investigação em curso em face daqueles então colaboradores.
A hipótese de (ii) rescisão, por sua vez, estaria relacionada à eficácia da colaboração, tanto processual quanto material. Nesse caso não se identifica ilegalidade na formulação do acordo, pois a autoridade pública que formula a proposta e toma as informações do colaborador age com boa-fé e faz a proposta acreditando que o agente, com o tanto de boa-fé que dele se pode esperar em vista dos benefícios que poderá receber, tenha relatado tudo aquilo de que tinha conhecimento. No caso de rescisão, ocorreria o descumprimento de alguma(s) das obrigações assumidas no acordo de leniência.
O descumprimento de obrigações e a consequente rescisão do acordo resulta na não concessão de benefícios à parte colaboradora, caso essa parte tenha dado causa à rescisão. Não há impeditivos, portanto, em princípio, para que as provas aportadas por meio do acordo rescindido sejam utilizadas para a apuração dos crimes relatados (em caso de rescisão por descumprimento do colaborador). Nesse caso, são afastados apenas os benefícios característicos da delação, mas não há impedimento em relação à utilização dos elementos probatórios, mesmo que contrários aos interesses do colaborador. O efeito concreto da rescisão, portanto, é o mais danoso para o colaborador, ainda mais quando se considera que a autoridade pública pode considerar que a confissão se mantém hígida, ainda que os benefícios tenham sido rescindidos.
Registre-se que a discussão sobre a rescisão de acordos tem se concentrado nos cenários de descumprimento por parte do particular (por exemplo, pelo não pagamento das verbas pecuniárias acordadas7). Há que se avançar, porém, para o debate de cabimento de rescisão por descumprimento das autoridades públicas, bem como de suas consequências para o administrado. No limite, em caso de descumprimento pelas autoridades públicas, o administrado poderia deixar de recolher as verbas pecuniárias acordadas, mantendo os benefícios inerentes aos acordos?
Por fim, sobre a (iii) repactuação (também chamada por alguns de “renegociação”), essa objetiva sanar eventuais dificuldades ou fatos surgidos durante a vigência de um acordo de leniência, porém que não resultem em sua rescisão. Tem-se, portanto, um acordo hígido, tanto na legalidade da sua formulação – requisitos materiais e formais e princípios basilares – quanto na sua eficácia processual e material – diante do não descumprimento do pactuado pelo colaborador, mas que diz respeito ao risco de rescisão de acordo já assinado.
A repactuação mantém os benefícios do acordo ao colaborador, pois busca tão somente alterar algumas das suas premissas ou obrigações. Não há, portanto, retorno às investigações, como aconteceria em casos de anulação (sem o uso das provas entregues pelo colaborador) ou de rescisão (com o uso das provas entregues pelo colaborador e com a confissão). Trata-se, assim, da alternativa possivelmente mais benéfica para os colaboradores que queiram rediscutir os termos em sede dos acordos de leniência.
Quanto à possibilidade de repactuação de acordos de leniência por conta da desproporcionalidade das multas, a lei 12.846/13 não dispõe especificamente sobre as hipóteses gerais de repactuação dos acordos de leniência. Apesar disso, há legislações posteriores que poderiam trazer maior clareza para essa rediscussão do cálculo pecuniário. Ou seja, normativos de dosimetria de multa8, de metodologia de cálculo da multa,9 sugestões de escalonamento das circunstâncias agravantes e atenuantes10, etc., poderiam servir como inspiração, oriundas da prática, para que se pudesse recalcular os valores acordados e solicitar uma repactuação conforme seus termos. Argumenta-se que, por exemplo, uma alteração legislativa que traga normas mais benéficas à empresa e que impactem, por exemplo, no cálculo dos valores pactuados, poderia permitir a revisão desses valores. 11
A regulamentação desse tema surgiu apenas em 2022, com o artigo 54 do novo decreto 11.129/22, que previu hipóteses de revisão do ajuste nos acordos de leniência firmados com a CGU. Trata-se de hipótese com o objetivo de alterar ou substituir obrigações pactuadas no acordo de leniência, desde que cumpridos alguns requisitos específicos. A repactuação de acordos de leniência nos termos da nova normativa parece estar restrita a casos em que os acordos, celebrados de boa-fé pelos particulares e com objetivo de devido cumprimento das obrigações, tornou-se inexequível por razões alheias à vontade da empresa signatária ou diante de fatos novos surgidos durante a sua vigência.
De todo modo, parece-nos que seria cabível a formulação de pedidos de repactuação de acordos de leniência caso fosse evidenciada alguma imprevisão da circunstância que dá causa ao pedido de modificação ou à impossibilidade de cumprimento das condições originalmente pactuadas. Essa demanda geral por repactuação poderia decorrer do artigo 65 da lei de processo administrativo (lei 9.784/99), como uma circunstância relevante suscetível de justificar a inadequação da sanção aplicada.
Diante do exposto, quando se está diante de um pedido genérico de “revisão”, deve-se ter clareza se estamos diante de hipóteses de anulação, rescisão e repactuação, conforme apresentado a seguir:
Feitas tais observações, a nosso ver, a decisão do ministro André Mendonça diz respeito a um cenário de repactuação dos acordos de leniência, ao passo que as decisões do ministro Dias Toffoli estão mais relacionadas a discussões sobre rescisão e/ou anulação dos referidos acordos de leniência.
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1 Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/toffoli-suspende-multa-de-mais-de-r-10-bilhoes-do-acordo-de-leniencia-da-jf/
2 O ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), acolheu pedido da Companhia Novonor S.A (nova denominação do então Grupo Odebrecht) e suspendeu o pagamento de multas de R$ 8,5 bilhões impostas à empresa, referente ao acordo de leniência firmado com o Ministério Público Federal (MPF) no âmbito da Operação Lava Jato. https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=525940&ori=1#:~:text=O%20ministro%20Dias%20Toffoli%2C%20do,MPF)%20no%20%C3%A2mbito%20da%20Opera%C3%A7%C3%A3o
3 MACHADO, Renato. La colaboración de personas jurídicas em casos de corrupción: el sistema brasileño de la Ley 12.846/2013. Tesis doctoral. pp. 299-446.
4 De acordo com Wang, Palma e Colombo, há uma tendência de controle judicial dos atos administrativos com base em princípios. WANG, Daniel. PALMA, Juliana. COLOMBO, Daniel. Revisão judicial dos atos das agências reguladoras: uma análise da jurisprudência brasileira. In. SCHAPIRO, Mário Gomes. Direito Econômico Regulatório.
5 NOAH, Lars. Administrative arm-twisting in the shadow of congressional Delegations of authority. Wisconsin Law Review, 873, 1997. Essa tese foi utilizada no pleito de repactuação apresentado pela J&F no Processo nº 36028-88.2017.4.01.3400, em trâmite perante a 10ª Vara Federal no Distrito Federal.
6 No final de 2022, a CGU rescindiu o Acordo de Leniência firmado com as empresas do Grupo UTC, em razão do não pagamento das parcelas pecuniárias definidas no acordo. Por conta da rescisão, as empresas do Grupo UTC: (i) perderam integralmente os benefícios pactuados no Acordo; (ii) tiveram as dívidas e multas executadas antecipadamente; (iii) foram proibidas de contratar e receber incentivos do Poder Público; (iv) foram incluídas no CNEP; (v) foram impossibilitadas de firmar novo acordo três anos e (vi) foram declaradas inidôneas para licitar ou contratar com a Administração Pública. Controladoria Geral da União. Decisão nº 323, de 21.11.2022. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decisao-n-323-de-21-de-novembro-de-2022-449722593. Acesso em 27.12.2022.
7 CGU. Manual Prático de cálculo de sanções da Lei Anticorrupção: cálculo e dosimetria. 2020. Disponível em: https://repositorio.cgu.gov.br/handle/1/46569.
8 CGU. Manual Prático de Cálculo de Multa no Processo Administrativo de Responsabilização. 2019. Disponível em: https://repositorio.cgu.gov.br/handle/1/44486.
9 CGU. Sugestões de escalonamento das circunstâncias agravantes e atenuantes. 2022. Disponível em: https://repositorio.cgu.gov.br/handle/1/68539.
10 “As obrigações financeiras incluídas em acordo de leniência podem ter a natureza de sanção, a multa, ou de ressarcimento, a reparação de danos. Em relação à multa, o regulamento da LAC estabelece parâmetros a serem utilizados para a definição da alíquota a ser aplicada sobre o faturamento anual da empresa.Trata-se de sanção de natureza administrativa, cuja competência originária para aplicação é do órgão público lesado, após processo de responsabilização que garanta o contraditório e a ampla defesa. Mas há também uma outra sanção pecuniária, prevista na Lei de Improbidade Administrativa (LIA), incluída em vários acordos de leniência ainda que, há época, houvesse proibição expressa de transação, acordo ou conciliação nas ações judiciais de improbidade. A exigência cumulativa das sanções da LAC e da LIA nos acordos de leniência, por si só, é motivo para revisão dos valores pactuados, uma vez que alteração legislativa recente veda essa cumulatividade, disposição que, entendo, deve ser aplicada retroativamente por ser benéfica à empresa. A rubrica de maior impacto financeiro, e também de maior subjetividade, é a reparação de danos. A disciplina dos acordos de leniência evoluiu em relação ao método de apuração nesses casos. Somente pode ser incluída na negociação do acordo a parcela incontroversa do dano, admitido pela pessoa jurídica ou decorrente de decisão definitiva no âmbito do devido processo administrativo ou judicial.” SIMÃO, Valdir Moysés. Revisão de acordo da Odebrecht não deve ser vista como tabu. Folha de São Paulo, 5.2.2024. https://www1-folha-uol-com-br.cdn.ampproject.org/c/s/www1.folha.uol.com.br/amp/ilustrissima/2024/02/revisao-de-acordo-da-odebrecht-nao-deve-ser-vista-como-tabu.shtml
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