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Crimes contra as instituições democráticas e a pedra cantada

Análise, pelo Direito Penal, da situação relativa aos crimes de abolição violenta do estado democrático de direito e golpe de Estado, no governo anterior.

26/3/2024

1. Pedra cantada. O certamente maior1 tratadista historiográfico sobre ditadura & golpe, Elio Gaspari, na Folha, 10/2/24, concluiu: ‘O golpe de Bolsonaro era público’. Haverá quem discorde do óbvio. Mas estudo não se discute, consome-se. Se no plano do Direito Penal há dificuldades com conceitos, como os critérios de tentativa acabada e inacabada; autoria mediata; solução conjunta (Gesamlösung) e solução individual (Einzellösung)2; a autoria de escritório e a realização do tipo pelo homem de trás em simetria ou não com o instrumento; a suficiência para o início da realização do tipo; consumação; iter criminis; teoria subjetiva da tentativa em crime de atentado; autoria e os 4 domínios3, e outros, relativamente aos dois crimes aqui analisados, CP, art. 359-L e M, o conjunto da obra parece não resistir ao encapsulamento das 6 palavras de Gaspari. Resta transformar o óbvio em prova jurídica.

2. Três cenários. No Direito Penal, três cenários relevantes e públicos. Um primeiro, personalista e orgulhosamente exibido ao longo do tempo, com crimes dolosos em ofensas, ameaças e desacreditamentos a ministros do STF, sistemas próprios da democracia, como o eleitoral, o de saúde – vacinal-, e a Poderes, além de envolvimento em delinquências particulares, como tentativa de apropriação de joias, falsificação de atestado de vacina etc. Um segundo, institucional, em chefia de organização delitiva de agentes de primeiro escalão4, e outros, com o flagrado em vídeo da reunião-prova de 5/7/22, revelador da trama criminal5 contra instituições democráticas. Um terceiro, já defensivo e sobrevivencial, não apenas uma idiotizada e crédula ideia de golpe de Estado, mas sua necessidade então casuística e providencial.

3. Os dois crimes. Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito, Código Penal, art. 359-L; e Golpe de Estado, CP, art. 359-M, semelhantes aos velhos arts. 17 e 18 da revogada lei de segurança nacional, em continuidade normativa-típica.

4. Classificação. Considerando-se o único verbo nuclear, ‘tentar’, os dois crimes atrairiam, ainda que por aproximação inexata, classificação genérica6. Mais heterodoxamente, crimes covardes e mentirosos: paridos de liderança política que, enquanto detentora de poder formal, induziria, subliminar e mentirosamente, alguma garantia de impunidade a cúmplices.

Assim, ter-se-iam os dois crimes como: 1) de atentado, a conduta típica é a própria tentativa7. Como tipo de empreendimento – descabe diminuição da pena própria à tentativa-, não se aplica a eximente de desistência voluntária. Sobre a tentativa, Fragoso8 ensina que ‘o fato se considera tentado quando o agente realiza sua decisão de executá-lo’; 2) formais, não se exige resultado naturalístico, os dois núcleos finalísticos do tipo, abolir e depor, devendo-se ter em conta não a inteireza do fato num desdobramento possível, mas a plena correspondência entre o fato in concreto e o descrito in abstrato no molde penal, conforme Hungria9; 3) em concurso formal impróprio, pela soma de dois resultados numa só conduta, tentativa e violência10;  e consumados, vez que, em ambos os casos, o iter criminis se encerra com a consumação.

5. Consumação. Das oito espécies11 de consumação (em crimes materiais, de ação e resultado; culposos; de mera conduta; formais; permanentes; omissivos; omissivos próprios e impróprios; e qualificados pelo resultado), importa mais aqui a que se verifica no crime formal, dando-se a consumação pela simples atividade que independe da produção do resultado descrito na previsão abstrata do legislador criminal. Na expressão de Jalil12, crime de consumação antecipada, ou, com Welzel13, crime de resultado cortado.

6. A tentativa principalizada. Aqui, uma digressão sobre a epistemologia da tentativa, dividindo-a em duas. Uma, comum ou acessória, como incompletude empírica da consumação, na quase totalidade de delitos, cuja tentativa aparece como verdadeira ‘imperfeição’ do crime, ou parcialidade do tipo. Outra, principalizada, na qual a tentativa é o próprio verbo nuclear e a consumação se aperfeiçoa não por um resultado que se supusesse ‘superior’ à forma tentada, comum, ou uma tentativa-imperfeição, mas uma tentativa-fim, prevista e assumida como completude do delito, precisamente os casos dos crimes analisados.

O estudo da tentativa é árduo no Direito Penal, mas não impossível. A casuística tentativa de golpe, também na reunião-prova, em tese, se confirma por 8 critérios e teorias jurídicos, conforme leitura de Herzberg14. 1) Não envolveu ‘espera inútil’, que afasta o início imediato da realização do tipo, no sentido de que apenas preparar-se-iam atos que, depois, se mostrariam inábeis à tentativa efetiva, bem como havia efetiva potestade jurídica e fática ao primeiro escalão mancomunado à consumação, impondo perigo gravíssimo e imediato ao bem jurídico. 2) Não se tratava de ‘ação distante’, no sentido de que não seria precoce a preparação por meio de mera comunicação, mas ação concertada a atos com imediatez ou o ‘dar início’ (ansetzen), segundo Streng, caracterizada pela ausência de ‘postergação do fato’, conforme Schlehofer. Havia atos anunciados já em operação, como os revelados por Augusto Heleno, na Abin; o que não configura a impunível, pelo direito brasileiro, tentativa inidônea. 3) No estudo do perigo de crime, não se tratava de ‘preparação através de mera comunicação’, situação ainda impunível, vez que se admitia e impunha, na reunião-prova, marco limítrofe ao início das ações efetivas, novamente atraindo perigo gravíssimo ao bem jurídico. 4) A situação de crime planejado com envolvimento de terceiros (inclusive por ‘instrumento’ humano/inumano, com ou sem autoria de escritório), desde que sob perigo agudo provocado, o que ocorreu, arrosta a integral responsabilidade por crime tentado, o que nos crimes analisados representa consumação. 5) No critério da ‘liberação do âmbito do domínio’, possivelmente o mais decisivo para a configuração da tentativa, conquanto graus dicotômicos dificultem a situação epistemológica do critério, o fato é que o momento anterior à liberação é que deve ser considerado como preparação irrelevante, vez que a tentativa se ultima com a própria liberação; aí, na reunião-prova vendo-se o chefe do grupo em total liberação do domínio, legitimando integrantes da organização a atos voltados ao empecilho da eleição, posse etc., em declarado atentado democrático. Ainda, no critério, não há ‘equívoco’ na liberação do domínio, mas dolo assumidamente público ‘à provocação do resultado’, in casu crime consumativamente tentado. 6) A ação típica necessária ao ‘começo da tentativa’ é o comportamento15, com liberação total de domínio, que já gera grave risco para o bem jurídico tutelado, vendo-se desde a já ilegal reunião-prova com finalidade totalmente espúria, em assunção dolosa e declarada à finalidade criminal típica. 7) Verificou-se declarada e assumida expectativa de curso de perigo imediato para o bem jurídico, situação que consubstancia crime tentado comissivamente, sendo a intensidade do perigo o fator que decide sobre a atração da desaprovação jurídica, tendo-se por obviamente incomensurável o perigo nas modalidades criminais analisadas, todavia, confirmado pela existência da própria reunião-prova. 8) Até na análise de um ‘resultado da tentativa’, firma-se a situação episódica como tipicamente golpista, vez que sua caracterização se dá pelo perigo imediato da realização do tipo.  

Fora a configuração acima, Zaffaroni e Pierangeli16, após enfrentarem 6 critérios17 sobre a tentativa concluem com teorética incisiva: "Por nossa parte, entendemos que é imprescindível levar em conta o plano concreto do autor para poder configurar uma aproximação à distinção entre execução e preparação.” Plano concreto, visível, público, anunciado e culminado com a violência de 8/1/23 foi o que não faltou.

Roxin18, por seu turno, ensina que em atos preparatórios inexiste qualquer perigo imediato, e o autor detém o acontecimento em suas mãos. Apresenta dois critérios para a configuração da tentativa, a inacabada, pois que há perigo imediato, mas o autor ainda tem o acontecimento em suas mãos; e a acabada, em que o autor liberou o curso causal de sua guarda. Ora, a reunião-prova, descoberta, se encaixa em tentativa acabada quando o chefe, dentre outras coisas, resolve comunicar e considerar aquela data como marco temporal para o início das ações efetivas, e asseclas aderem expressamente ao plano criminal, com incremento e revelação de atos e enredos que já estavam em andamento.

7. Iter criminis. O instituto, com seus quatro graus de realização, em Hungria19, cogitação; preparação de meios; execução; e consumação, dar-se-ia, nos dois crimes analisados – pela consumação se bastar na tentativa teleologicamente legiferada-, com fronteiras epistemológicas difíceis. Na expressão de Fragoso20, ‘problemas dificílimos’, se, todavia, pela teoria realística adotada pelo Código Penal, não se conseguisse vislumbrar uma atuação voluntária que acarreta, pelo menos, situação de perigo e probabilidade de dano21 a um bem jurídico penalmente protegido22. No preciso dizer de Hungria, ‘esse minimum de atuação objetiva, a vontade criminosa’, no caso, assumido em várias situações públicas espontâneas. 

João Mestieri23 após examinar seis teorias que buscam diferençar atos de preparação e de execução24, conclui que se o agente iniciou a prática de ato correspondente à realização de uma parte do tipo, não resta dúvida acerca da existência de crime. Por seu turno, Bento de Faria25 mostra que nos crimes formais é suficiente a vontade da ação subordinada a certo fim não conseguido, ratificando que a lei, muitas vezes, considera crime consumado um fato que, normalmente, só poderia constituir tentativa. Porém, por atos internos, tomem-se as meras cogitações, passadas no foro íntimo, não revestindo manifestações exteriores, ou seja, atos de consciência. Já para atos de execução, cita Caieiro da Mata no sentido de que se a causalidade criminosa é posta em movimento para se conseguir o fim delituoso, tem-se atos de execução. E Welzel26 aponta como início de execução o plano do agente que precede a ação correspondente ao tipo, assim, põe-se em relação imediata com a ação de matar, o agente que não apenas atira, mas também o que aponta a arma e mira a vítima.

Pelo que se vê da reunião-prova, oficialmente (!) agendada, para fim criminoso (!) revelado, com pessoal selecionado para início imediato (!) dos atos, ficam claros: 1) situação de perigo e probabilidade de dano a um bem jurídico (Fragoso); 2) vontade criminosa (Hungria); 3) início da prática de ato correspondente à realização de uma parte do tipo (Mestieri); 4) vontade da ação subordinada a certo fim (Bento de Faria); 5) causalidade criminosa posta em movimento para se conseguir o fim delituoso, como atos de execução (Caieiro da Mata).

Bento de Faria conclui, citando Vicenzo Cavallo: ‘Dal punto di vista scientifico tutti gli atti dopo la decisione sono atti esecutivi’27. O que se vê e ouve no ato da reunião-prova são, nada mais nada menos que exclusivamente ordens, coordenações, atos, planos e decisões anunciados em marco temporal de um início, cuja sucessão de fatos aposterísticos – inclusive com violência- só confirmou o enredo golpista anunciado na reunião.

Ainda, às fronteiras jurídicas dos graus de realização, interage um histórico notório do envolvido-em-chefe, e parte de sua entourage, com condutas inteiramente voltadas à ideia de ambos os crimes analisados, como, por exemplo, a advertência semanal de um idiotizado, e doloso, ‘respeito às quatro linhas’, mensagem subliminar ameaçativa de possível virada de mesa28; bem como a declaração, ameaça e instigação popular, em palanque de 7/9/21, de que não ia mais respeitar as decisões do STF, efetivo atentado ideológico a um Poder da República. Aqui, por exemplo, há fatores múltiplos, administrativos, constitucionais e penais, como uma assumida falta de decoro e violação ética; atingindo princípios constitucionais da legalidade e da moralidade administrativa, e crime de responsabilidade, Constituição da República, art. 85, incisos II, V e VII, além de incitação pública de crime, CP, art. 286. 

8. A ciência. Já há muito que o saber penal se exterioriza pelo método da dogmática penal29. Valorativamente, Hegel30 tem no centro do conceito de Direito a liberdade, a ponto do considerá-la uma segunda natureza. Some-se a isso a presunção de inocência, e qualquer intervenção penal do Estado não plenamente justificada, sem provas lícitas e devido processo legal, será mera sanha punitivista. Do mesmo modo, e ao revés, qualquer perdão atávico ou ideologicamente obnubilado a qualquer pessoa, com erráticas ou superficiais noções de direito, a justificar uma inocência pré-concebida, carece de valor. Esta antitética categorização é uma tentativa de uso da lógica, como em Perelman31, que invoca Schopenhauer e J. S. Mill, para condução do pensamento, no sentido de não se defender uma tese, mas procurar reunir todos os argumentos que apresentem algum valor, para ao final sopesá-los. 

Por seu turno, Juarez Tavares32, com a teoria do injusto, negando a automaticidade de o tipo desempenhar papel de indício de antijuridicidade, ensina que só haverá ilicitude se esgotados os recursos em favor da liberdade, apontando equívoco da doutrina que perquire a existência de uma causa excludente da antijuridicidade, desde que o tipo já a considera antijurídica, em vez de se operar inversamente, no sentido de só se autorizar a intervenção estatal se inexistir em favor do sujeito uma causa permissiva de sua conduta.

9. Instigação de instigação. Consideradas as três ‘garantias’ da ciência, acima, teoreticamente em prol de qualquer investigado, mas aqui sopesadas pela gravidade cavalar dos dois delitos em questão, nada indica qualquer ideia de ‘permissão’ para um agir golpista. Efetivamente, pelo catastrófico impacto social destes crimes, qualquer fala pública de chefe de Poder incentivando ou ‘desconfiando’ (...) que o ‘caldo possa entornar’, não será somente uma atitude vil e denotadora de gravíssima violação ao decoro do cargo, mas situação que comporá, integrativa e probatoriamente eventual discussão efetivacional dos crimes.

Hungria, op. cit. p. 75, mostra que, no iter criminis, não haverá delito se não se for além da expressão inócua de um pensamento, mas haverá incriminação se manifestações orais ou escritas de ideias, em si mesmas, criem uma situação de lesividade ou periclitação de um bem público, precisamente a paz pública. Noutra passagem, analisando o CP, art. 27, p. 419, mostra que a participação de participação (por exemplo, instigação de instigação do executor) será mediata, mas punível em pé de igualdade com a participação imediata. 

10. Violência. Aqui, um questionamento sobre os elementos objetivos do tipo, a violência33 e a grave ameaça. Considerando, 1) uma necessária condição multitudinária para estes crimes; 2) a efetiva potência instigatória polarizada de um líder34 conteste com seus seguidores publicamente radicais; 3) a caraterística dos crimes que necessitam violência; e 4) os culminantes episódios recentes de terrorismo com tentativa de explosão de caminhão tanque, e o fatídico 8/1/23; pergunta-se: a instigação ideológica a esta violência, que, efetivamente ocorreu, em crime de atentado, é violência? 

Os cenários, plúrimos, assimetricamente díspares, mas nada avulsos ou estanques, de violência efetivamente ocorridos e dirigidos a dois únicos e exclusivos fins, precisamente os crimes analisados – 1) tentativa de explosão de caminhão-tanque (ato); 2) bloqueio-atentado ambulatorial em 500 falsas fiscalizações da PRF35 a eleitores (ato); 3) 321 bloqueios em 25 estados e Distrito Federal em estradas do país, tendo gerado procedimentos do Ministério Público federal, nas 5 regiões do país,  por crime contra o Estado Democrático de Direito, ante uma percebida omissão36 da mesma PRF (ato); 4) o uso ilegal da ABIN, conforme inquérito do Departamento da Polícia Federal (ato); 5) o delinquente 8/1/23 (ato) etc.-, parecem não deixar dúvida jurídica acerca de uma única e totalmente única concertação criminosa, tipicamente violenta, então em prática. Reitere-se expressamente aqui a nota de rodapé 15.

Assim, relativamente aos dois crimes centrais, CP arts. 359-L e M, não se aplicando o CP, art. 14, está-se inserido na expressa exceção do caput, ‘salvo disposição em contrário’, situação que Fragoso37 teorizava como de ‘gravidade excepcional’ para a aplicação da mesma pena prevista para o crime consumado. Como os dois crimes principalizam a tentativa como consumação, e dão penas gravíssimas e próprias à tentativa, vê-se a gravidade excepcional também principalizada.

11. Questões probatórias. Como se sabe, o tempo no direito altera a natureza jurídica de institutos38. Assim ocorre com a reunião-prova de 5/7/22. Sua descoberta adquire dois contornos gravosos, precisamente pela descoberta tardia. O primeiro é exatamente este, a aposteristicidade da descoberta, em que a revelação tarda da reunião-prova conclui e explica, retroativamente, um sistema ou cenário que poderiam estar ‘aberto’, em até ali desconexa lógica do quebra-cabeça golpista, dando homogeneidade sistêmica a uma sucessão de atos, movimentos, ordens e acontecimentos, com a eclosão do atentado de 8/1/23. Sem o ‘atraso’ fenomênico da descoberta, os atos e fatos estariam mais soltos, compondo conjecturas mais abertas. O segundo, a inquestionável descoberta da reunião-prova como resultado de medida estritamente legal, medida cautelar judicial de busca, consubstanciando materialidade autêntica no campo da prova.

Em raras vezes da história do Direito Penal, arrisca-se dizer, viu-se tamanha composição pública, espontânea, sedimentada e autêntica de suficiência probatória de índole criminal, totalmente hábil a uma possível configuração jurídica punível, vez que filmada e flagrada dos próprios investigados39. O mesmo dir-se-á dos delinquentes de 8/1/23 que, igualmente em orgulho-burrice, filmaram-se, em formidável constituição de prova contra si.

O conjunto da obra criminal produzido pela chefia ideológica, descredibilizando semanalmente, por palavra pública, com alguma natureza jurídica de ato administrativo exaurido40, os sistemas eleitoral, vacinal, judiciário, e órgãos de Poder, visou, mais ainda, a um dolosamente descrédito popular, buscando densificado e eficacial levante criminoso multitudinário que, todavia, ocorreu em 8.1.23, com cepa autônoma de outros crimes e delinquentes. Ou seja, uma confirmação bastante típica dos crimes analisados, com invocação pública a uma estapafúrdia ‘intervenção militar’, cerne antropofágico da destruição do Estado Democrático de Direito. E crime.

É cartesianismo querer um iter criminis contorcionista a impedir a inteireza de um contexto visível. Não se há hipertrofiar o óbvio com atos preparatórios externos ao agente não atraindo a aplicação da lei penal. Nalguns delitos, é a própria lei que altera o modelo comum de iter criminis e reclassifica os atos preparatórios como tipos penais especiais, como, por exemplo, o CP, arts. 291, 238, 253. E os dois aqui estudados. Estes não têm no tipo o ato preparatório como compositivo da consumação, entretanto sendo a tentativa a própria ultimação consumatória, e não uma realização incompleta do tipo, os elementos preparatórios porventura hábeis à configuração, que têm na tentativa sua consumação, e serão analisados pelo juiz já como compositivos de uma então consumação na forma tentada, dando-se esta como perfectibilização integral do tipo.

Uma conclusão que se mostra inescapável é a que, para o Direito Penal, há envolvimento dos suspeitos. E a aleivosia-moda de ‘perseguição’ não é argumento jurídico. Pode alimentar churrascos barulhentos, não a penalística. O mesmo, ou muito menos se diga de perdões, misericórdias e esquecimentos aos delinquentes do 8/1, pois que meros crimes consumados. Nada juridicamente o autoriza. 

Como piada pronta da reunião-prova, a garantia-jura anunciada ao vivo de que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil assinaria algum troço parido daquela mancomunação. 

A OAB? Com certeza! 

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1 Considere-se a magnífica obra em 5 volumes, Coleção Ditadura, sobre a matéria.

2 HERZBERG, Rolf Dietrich, A tentativa na autoria mediata, in GRECO, Luís; LOBATO, Danilo. Temas de direito penal – parte geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 345.

3 Da ação; da vontade; por força de conhecimento especial; funcional do fato; conforme Juarez Tavares, in www.juareztavares.com/Textosd/apontamentos_autoria.pdf.

4 ‘Eu vou romper aqui e iniciar minha operação... para que a gente não fique sozinho no processo’, fala do ex-ministro da Defesa referindo-se à candidatura adversária como ‘o inimigo’, depois alvo de busca e apreensão e proibição de deixar o país. Já o chefe impôs, sob ameaça, a divulgação oficial de fraude no sistema eleitoral: “Daqui para frente, quero que todo ministro fale o que eu vou falar aqui”.

5 Mauro Viveiros (https://www.conjur.com.br/2024-fev-19/quanto-de-conspiracoes-e-necessario-para-caracterizar-o-crime-de-tentativa-de-golpe-de-estado/) pesquisou os autos da delinquência coletiva de 8/1/23, APs 1.060, 1.067, 1.065, 1.090, 1.091, 1.109, 1.172, 1.183, 1.413, 1.416, 1.502 e 1.498, e confirma o  encadeamento lógico e cronológico das etapas do processo que conduziu aos crimes de 8/1/23.

6 Crimes: comissivos; comuns; consumados; continuados; de ação única; de ação violenta; de atentado; de ensaio/instigação; de forma livre; de lesa pátria; dolosos; formais/ de consumação antecipada; imprescritíveis; inafiançáveis; instantâneos de efeitos permanentes; não transeuntes; organizados; plurilocais; pluriofensivos; plurissubjetivos; plurissubsistentes; principais; simples; vagos; e incondicionados.

7 CUNHA, Rogério Sanches; SILVARES, Ricardo. Crimes contra o estado democrático de direito. 2 ed. São Paulo: Podium, 2022, p. 133. Fernando Capez, em artigo no Conjur, 21/9/2023, nega a qualificação de crime de atentado.

8 HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal. V. I, T. II, 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, art. 12, p. 529.

9 HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. cit., art. 12, p. 74.

10 CUNHA, Rogério Sanches; SILVARES, Ricardo. Op. cit. p. 130.

11 JESUS, Damásio de; ESTEFAM, André. Direito Penal 1. 37 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 359.

12 JALIL, Mauricio Schaun; GRECO FILHO, Vicente (coord.). Código Penal – doutrina e jurisprudência. 4 ed. Santana de Parnaíba: Manole, 2021, p. 50

13 WELZEL, Hans. Derecho penal aleman. 11 ed. Santiago: Editorial Juridica de Chile, 1976, p. 160.

14 HERZBERG, Rolf Dietrich, A tentativa na autoria mediata, in GRECO, Luís; LOBATO, Danilo, op. cit., nota 2, p. 345

15 Em nenhum momento tenta-se qualquer construção de responsabilização penal objetiva, ainda que ambos os crimes pressuponham um cenário plúrimo de fatos sucessivos no tempo, e de diversos agentes envolvidos.

16 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal – parte geral. 2 ed. São Paulo: RT, 1999, p. 704.

17 Negativas; critério subjetivo; univocidade; formal-objetiva; material-objetiva e critério objetivo-individual. Op. cit. p. 702-704.

18 Apud HERZBERG, Rolf Dietrich, A tentativa na autoria mediata, in GRECO, Luís; LOBATO, Danilo, op. cit., p. 347.

19 HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio, Op. cit. p. 75.

20 HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio, Op. cit. p. 529, reproduzindo didática nota deixada por Nelson Hungria, além de diversos julgados do STF, p. 530.

21 Na distinção entre atos preparatórios e executórios, basicamente 2 critérios usualmente aceitos há: o critério material, de ataque ao bem jurídico, se se verifica ter havido perigo ao bem jurídico; e o critério formal, que trata do início da realização do tipo, este último adotado pelo CP, conforme BITENCOURT, Cezar Roberto. Teoria geral do delito. Coimbra: Almedina, 2007, p. 418.

22 Conforme César Dario Mariano da Silva, os bens jurídicos tutelados aí seriam: a integridade territorial e a soberania nacional, o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado democrático de Direito, a segurança nacional e a lisura do processo eleitoral. https://www.conjur.com.br/2022-nov-13/cesar-dario-sao-tais-crimes-estado-direito/

23 MESTIERI, João. Teoria elementar do direito criminal – parte geral. Rio de Janeiro: J. Mestieri, 1990, p. 269.

24 Teorias cronológica; da univocidade ou pragmática; do ataque à esfera jurídica do sujeito passivo; a de Rossi; a de Binding; da hostilidade ao bem jurídico.

25 FARIA, A. Bento de. Código penal brasileiro comentado. Vol. II. Rio de Janeiro: Récord Editora, 1959, art. 168, p. 131 e ss.

26 Strafrecht, apud HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio, op. cit. p. 528, rodapé.

27 Em tradução livre: do ponto de vista científico, todos os atos após a decisão são atos executivos.

28 Publiquei em 20/1/2021 artigo intitulado “Jarilene podia estar torturando e matando, mas está na democracia”, https://observatoriogeral.com/2021/01/20/jarilene-podia-estar-torturando-e-matando-mas-esta-na-democracia/, explicando a ameaça subliminar do “sentido teratológico aí: ‘só há democracia porque nós militares e por enquanto, estamos deixando haver, já que a qualquer momento podemos virar o jogo’.

29 O método dogmático é uma análise da letra do texto, em sua decomposição analítica em elementos inalteráveis, e na reconstrução destes elementos em forma coerente, conforme ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal – parte geral. 2 ed. São Paulo: RT, 1999, p. 164.

30 Hegels Rechtsphilosophie, apud DONNA, Edgardo A.; STYMA, Dirk. La legítima defensa. Buenos Aires: Rubinzal – Culzoni, 2022, p. 18., bem como HEGEL, Georg Friedrich Wilhelm. Linhas fundamentais da filosofia do direito. São Paulo: Editora 34, 2022, p. 210.

31 PERELMAN, Chaïm. Tratado da argumentação – a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 45.

32 TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4 ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019, p. 179.

33 Há se reparar que, diferentemente de outros tipos penais, aqui a ‘violência’ não consta como elementar ou circunstância do delito, mas como elemento objetivo do tipo.

34 Pelos crimes analisados, os envolvidos guardam, naturalmente, nítida vocação ditatorial, desde o pensamento base do chefe: “Através do voto você não vai mudar nada nesse país. Só ... fazendo o trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil, começando com FHC...” (1999); https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-em-25-frases-polemicas/ .

35 https://www.brasildefato.com.br/2023/08/09/sob-comando-de-vasques-prf-fez-500-operacoes-com-bloqueio-de-estradas-no-2-turno-apesar-de-proibicao-do-tse .

36 https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/10/caminhoneiros-bolsonaristas-bloqueiam-estradas-em-ao-menos-11-estados.shtml .

37 HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. cit., art. 12, p. 531.

38 Um exemplo é o cheque. Ainda encartado no talão sem preenchimento, seria contrato com o banco. Entregue, torna-se extinção de obrigação ou pagamento. Devolvido por falta de fundos, transforma-se em título executivo extrajudicial. Vencido o prazo de 6 meses para execução, transforma-se em prova em ação de cobrança. Ultrapassados os 5 anos da prescrição, tornar-se-ia mera oponibilidade, CC, art. 190.

39 Nunca se viu qualquer reunião burramente filmada do crime organizado, por todos, o PCC ou o CV.

40 Na larga teorização de Celso Antônio Bandeira de Mello, conforme referência de DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 35 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 208.

Jean Menezes de Aguiar
Advogado. Professor da Pós-Graduação da FGV e do IPOG. Parecerista da Coordenação de Publicações Impressas da FGV e da RDA - Revista de Direito Administrativo, FGV.

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