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Contrato de seguro entra na pauta dos juristas que compõe a comissão de modernização do Código Civil - Apontamentos iniciais

Comissão presidida por Luis Felipe Salomão revisa Código Civil, destacando avaliação do contrato de seguro. O objetivo é modernizar e adequar às necessidades da sociedade e padrões internacionais.

29/2/2024

Em setembro de 2023, por iniciativa do presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, foi criada a comissão de juristas para trabalhar na atualização e modernização do Código Civil. A comissão é presidida pelo ministro do STJ, Luis Felipe Salomão, tendo como relatores gerais do projeto, a professora Rosa Maria de Andrade Nery e o professor Flávio Tartuce.

Ao todo, são 38 integrantes, divididos em oito subcomissões temáticas. 

Entre as subcomissões encontra-se aquela que avaliou o Capítulo XV do Código Civil, que dispõe sobre o contrato de seguro e cujo relatório com as proposições foi publicado no site do Senado Federal no último dia 26/2/24.

Ao que se vê, a comissão de juristas, se debruçou sobre o contrato de seguro certamente porque considerou o regramento atual, com algumas alterações, suficiente para atender as necessidades da sociedade, se alinhar aos países desenvolvidos e, nesse contexto, ser capaz de levar esse importante meio de proteção cada vez mais próximo das pessoas e com isso fomentar o desenvolvimento do mercado segurador e consequentemente do próprio país. 

No calor da divulgação dos trabalhos e sem prejuízo de uma reflexão mais aprofundada ao longo do tempo, compartilho com os leitores as principais proposições da comissão e que, a maior parte delas, penso ter o pleno condão de aperfeiçoar as disposições à realidade atual do mercado e da sociedade.

A primeira proposta da relatoria geral, inclui o §2º no art. 757 do Código Civil, para estabelecer que toda a entidade organizada que queira garantir riscos de pessoas a ela vinculada, deve se submeter as regras do órgão regulador, da mesma forma que as entidades seguradoras. 

A previsão claramente busca corrigir uma falha de mercado surgida há alguns anos, em que associações e cooperativas, sem nenhum lastro ou supervisão financeira estatal, exercem atividade própria de seguradora, colocando em risco o patrimônio das pessoas e a própria economia popular, ao não oferecerem garantia de que de fato tem (ou terão) capacidade financeira para pagar as indenizações.

Na sequência, foi proposta a inserção do art. 757-A ao Código Civil, sendo esta, na minha visão, a mais importante inovação, porque estabelece um regime jurídico próprio para os seguros de grandes riscos, cujas proposições se alinham com a lei de liberdade econômica e a regulação, a exemplo do que dispõe a Resolução CNSP 407/21.  

Diferentemente dos seguros mais massificados, considera presumido como paritário e simétrico, o contrato de seguro de grandes riscos, conferindo aos contratantes ampla liberdade para estabelecer as cláusulas contratuais que melhor aproveitam aquele negócio específico, condição essa que, na prática, influenciará na interpretação do contrato por ocasião de eventuais situações para dirimir conflitos.

Outra proposta de alteração, pertinente e alinhada com a realidade atual, sobretudo, mas não só, após o período pandêmico, foi o de prever a contratação do seguro por meios digitais, cada vez mais presente no seio da sociedade e, portanto, nas relações jurídicas dela originária.

Exemplo disso é a previsão de alteração na redação do art. 759 do Código Civil. 

É mantida a necessidade de proposta escrita como elemento antecedente da emissão da apólice, porém, deixa-se claro que o meio de contratação pode ir além da forma física, abarcando a digital, inclusive, validando a possibilidade de levar ao proponente o conhecimento das condições gerais do seguro por meio dessa última forma, desde que haja plena possibilidade de arquivamento e impressão do documento por parte do segurado, o que, na prática, já é em grande parte observado pelos seguradores em geral.  

Por sua vez, no art. 762 foi proposta a instituição de parágrafo único para, dentro do regime jurídico próprio dos seguros de grandes riscos, equiparar a culpa grave do segurado ao próprio dolo, levando essa condição a nulidade do contrato na forma prevista no “caput”. A disposição, a meu ver, se alinha com a prática de mercado e com as previsões contratuais existentes nesse sentido.

Com relação ao prêmio do seguro e seu pagamento, foi observada na redação do “caput” do art. 763 a importância dessa principal obrigação do segurado na constituição do fundo mutual, mantendo-se a ideia do legislador originário de não pagamento da indenização se o segurado estiver em mora por ocasião do sinistro. Abre-se uma exceção na hipótese de adimplemento substancial, em alinhamento, portanto, a preponderância da função social do contrato e do princípio da boa-fé objetiva. 

Nesse contexto, pelos termos propostos não haveria a necessidade de constituição em mora do segurado para efeitos de suspensão da cobertura durante o período de inadimplência, reservando tal providência apenas para fins de resolução do contrato, conforme previsto no sugerido parágrafo único do art. 763.

Para o art. 765 do Código Civil, onde se fala da mais estrita boa-fé, a proposta vai além da redação atual, para igualmente conferir importância ao que chama de “tratativas iniciais” e “eficácia pós contratual”. A ideia parece estender a necessidade de observar a boa-fé objetiva para além da conclusão e execução do contrato, incluindo a fase pré-contratual, assim como o momento posterior ao encerramento do vínculo contratual. 

No que diz respeito as declarações prestadas pelo segurado por ocasião da contratação e levadas em conta pelo segurador na aceitação do risco ou na taxa do prêmio, a comissão não propõe alteração ao “caput” do art. 766. No entanto, suprime o parágrafo único existente e em seu lugar insere dois parágrafos. O primeiro para consignar que se o segurado não agir de má-fé, caberá ao segurador resolver o contrato ou pagar a indenização, cobrando a diferença do prêmio. O segundo, aplicável aos contratos de grandes riscos, impõe ao segurado, sob pena de perder o direito à garantia, o dever não apenas de informar as circunstâncias e fatos que ele sabe a respeito do potencial de agravar o risco, mas também aquilo que ele “deveria saber”, aproximando tal previsão do regime relacionado aos defeitos dos negócios jurídicos, sobretudo das previsões dos art. 148 e 154 do Código Civil.

Com relação ao agravamento do risco, o “caput” do artigo 768 do Código Civil sofreria alteração para, além da intencionalidade do ato que leva a agravação do risco, incluir outro requisito, qual seja, a necessidade de o ato ser “relevante” que, nos termos do §1º, seria entendido como o ato “que aumente de forma significativa a probabilidade de realização do risco ou a severidade de seus efeitos”. 

Para os contratos paritários e simétricos, de acordo com o §2º, passaria a ser possível desconsiderar para fins de perda da garantia a intencionalidade, sobrevivendo apenas o requisito da relevância do ato para inquinar a cobertura.

No artigo 769 a comissão de juristas propõe alteração do “caput” para estabelecer um prazo objeto ao segurado para comunicar o segurador a respeito de algum incidente suscetível de agravar considerável e gravemente o risco (15 dias), contado “da data de sua ciência inequívoca”, deixando ainda claro, no §1º, que o incidente a ser informado é aquele ocorrido após a contratação, já que fatos anteriores se presume do conhecimento à época e que por isso mesmo deveria ter sido informado no questionário de avaliação de risco.

O art. 771, entre as proposições, é aquele que gerou o maior número de desdobramentos. Enquanto o texto atual possui apenas o “caput” e seu parágrafo único, no relatório entregue, além de modificações no próprio “caput” e criação de dois parágrafos, são incluídas disposições a ele vinculadas que vão desde a letra “A” até a “D”.

A referida disposição legal passaria a ter um prazo objetivo para o segurado avisar o sinistro ao segurador, qual seja, 15 dias, sob pena de perda do direito à indenização. Porém, essa regra é relativizada se o segurado, no prazo máximo de 60 dias, a contar da ciência inequívoca do sinistro, provar que “não tinha razoáveis condições” de ter avisado antes. De qualquer sorte, superado o próprio prazo de 60 dias, sem comunicação e/ou esclarecimentos, o segurado perderia o direito à indenização, evidenciando de forma clara a natureza jurídica de um prazo decadencial. 

Parece-me que a proposta visa eliminar a subjetividade presente no atual art. 771 do Código Civil, substituindo a expressão “logo que o saiba”, por um prazo objetivo e sem necessidade de se perquirir sobre dolo ou intencionalidade na demora do aviso, muito menos se avaliar as consequências causadas pela inércia do segurado.

No mesmo art. 771, deste feita no parágrafo 4º, as despesas de salvamento e contenção, que correm à conta do segurador, passa a ter disposição clara de que estão elas limitadas aos valores constantes das coberturas contratadas para tal fim. 

Por outro lado, para os contratos paritários e simétricos, é enaltecido o dever de cooperação do segurado para com o segurador durante as medidas de salvamento e mitigação dos danos; deixa-se claro que as medidas de prevenção ordinária e de manutenção dos bens, não estão compreendidas nas despesas de salvamento; e, por fim, se do ponto de vista técnico, entender-se que as medidas são inadequadas, a seguradora não está obrigada ao pagamento.

No art. 771-A são trazidas disposições sobre o objeto e alcance da regulação de sinistro e ao próprio trabalho do regulador, sendo ele terceirizado ou não pelo segurador.

Na sequência, o art. 771-B trata da fraude como circunstância que faz o segurado perder o direito à garantia, ficar obrigado ao pagamento do prêmio vencido, além de indenizar o segurador das despesas incorridas em função do evento avisado.

Já o art. 771-C confere ao segurado o direito de obter da seguradora o relatório final de regulação do sinistro, ressalvando, contudo, os contratos paritários e simétricos, ao estipular que para estes, os documentos que compõe o processo de regulação são para todos os efeitos confidenciais.

Finalmente, o art. 771-D, impõe ao regulador o dever de agir de boa-fé e imparcialidade, buscando sempre finalizar seu trabalho com a maior celeridade possível.

Ademais, é proposta a inclusão ao parágrafo único do art. 778, desta feita para deixar claro que o chamado seguro prestamista, atrelado a um contrato principal e envolvendo direito patrimonial de terceiro, tem natureza de seguro de dano, mesmo as coberturas sendo de morte ou ligada a integridade física do segurado. É previsto, ainda, que adimplido o contrato principal, remanescendo saldo, ele deverá ser pago aos beneficiários do segurado.

O art. 779, em linha com o proposto no §4º do art. 771, limita as despesas de salvamento e contenção de sinistro ao limite da garantia contratada pelo tomador ou pelo segurado.

No art. 786, que trata do direito de sub-rogação do segurador em face do causador do dano, consigna-se que nos contratos paritários e simétricos, o segurado tem o dever de cooperar com o segurador no exercício da pretensão, inclusive respondendo por eventuais prejuízos se agir de forma diversa. 

Nessa mesma modalidade, há disposição no §3º, no sentido de que a cláusula de eleição de foro, inclusive cláusula compromissória de arbitragem, vincula o segurador apenas e tão somente quando houver sua ciência, na linha do que vem sendo construído pela jurisprudência do STJ.

Para o regime do seguro de responsabilidade civil previsto no artigo 787, a comissão para buscar deixar claro que a natureza primeira dessa modalidade é a de garantir o patrimônio do segurado e, somente a partir desse referencial, indenizar terceiros prejudicados.

Considerando o interesse econômico da seguradora no sinistro, o §2º proposto estabelece como vedado ao segurado “reconhecer a procedência do pedido, transigir com terceiro ou indenizá-lo diretamente, sem a anuência expressa do segurador, sob pena de perda do direito à indenização”. 

É ressalvado, contudo, que se a postura do segurado for tomada de forma a mitigar o prejuízo comum, o direito à cobertura não estará prejudicado. Nesse contexto, no §3º vem prevendo que o descumprimento ao §2º não retira do segurado automaticamente o direito à garantia, mas, qualquer ajuste realizado à revelia da seguradora, é ineficaz perante ela. 

No parágrafo 4º é estabelecida como proposta, a obrigatoriedade de o segurado informar a seguradora assim que souber de eventual ação indenizatória ajuizada pelo terceiro em face de si e a tomar as medidas processuais pertinentes, sempre observadas as condições estipuladas no contrato de seguro.

Por fim, no §5º é prestigiado o enunciado da súmula 529 do STJ, para admitir a ação direta do terceiro em face da seguradora, desde que o segurado esteja igualmente no polo passivo, limitando a responsabilidade solidária da seguradora aos termos previstos na apólice.

Em relação ao seguro de pessoa, no art. 791, admite-se a alteração do beneficiário por ato entre vivos e disposição testamentária, porém, se o segurador não for cientificado a tempo, ele ficaria desobrigado da obrigação pagando a indenização ao antigo beneficiário, em claro prestígio ao instituto do pagamento putativo.

A proposição resolve, ainda, os problemas relacionados a premoriência e comoriência, estipulando regra específica para o pagamento da indenização em situação como estas.

No que tange a forma de pagamento da indenização, aproveita-se a atual redação do art. 792, mas lança como preferencial à ordem de vocação hereditária, o pagamento da indenização na forma prevista em testamento. Além disso, o pagamento somente poderia ser pago a quem demonstrar que se privou dos meios necessários à subsistência em razão da morte do segurado, na falta de sucessores legítimo e de testamentários, estes últimos, previsão não existente na atualidade.

No artigo 793, pela proposta, passa a ser considerada válida a instituição do convivente se ao tempo da designação ele se encontrava separado, diferentemente da redação atual que considera ao tempo do contrato. Ao “tempo da designação” tem o condão de acompanhar toda a execução do contrato, ao passo que ao “tempo do contrato”, traz a ideia restrita de indicação apenas por ocasião da contratação.

Para o art. 794 é proposta a inclusão de dois parágrafos, o primeiro, para estabelecer como exceção a previsão de o capital segurado não está sujeito às dívidas do segurado e nem se considerar herança, quando se estiver falando de “valores transferidos a terceiros beneficiários, quando resultantes de aportes feitos em razão de planos de benefícios contratados com entidade de previdência privada complementar aberta” e, o segundo, para excepcionar o §1º, “quando os planos de benefícios mencionados consistirem em rendas mensais vitalícias, sem a faculdade de outro levantamento do montante acumulado”.

A proposta de alteração do parágrafo único do artigo 797 do Código Civil, por sua vez, corrige problema de ordem prática e de difícil entendimento no Judiciário, sobretudo, mas não só, diante do enunciado da súmula 610 do STJ, quando em sua parte final obriga o segurador a devolver a reserva matemática. 

Contudo, sabe-se que nem todos os produtos são estruturados com reserva matemática, sobretudo aqueles no regime de repartição simples, por isso, a proposta mantém em favor do segurado o direito de ter a devolução da reserva matemática formada, porém, apenas “nas modalidades de seguro em que houver”.

No art. 799, mais precisamente no parágrafo único, é proposta a possibilidade de não existir cobertura para sinistros de morte ou incapacidade em decorrência da prática de esportes arriscados, apenas caso o segurado deixe de descrever a modalidade no momento oportuno, dando, portanto, ciência prévia ao segurador quanto ao risco por ele assumido.

Na parte final, no art. 801, é proposto no §2º que a exigência de anuência de ¾ do grupo somente se faz necessária para modificações que imponham ônus aos segurados ou restrinjam seus direitos, alinhando-se, portanto, com o enunciado 375 do Conselho da Justiça Federal.

Por fim, o § 3º consolidaria em lei o Tema 1.112 do STJ, no sentido de ser do estipulante o dever de informar sobre cláusulas de seguro de vida coletivo.

Em linhas gerais, essas são as primeiras impressões sobre o trabalho da comissão de juristas encarregada de atualizar o Código Civil, no caso, em relação ao contrato de seguro. 

Por meio de tais proposições, em grande parte razoáveis e muito equilibradas, que podem ainda sofrer alterações no âmbito da própria comissão e sobretudo em futuro processo legislativo, observa-se um enorme prestígio ao Código Civil na parte de seguros pela comunidade acadêmica.

O trabalho apresentado traz, ainda, serenidade ao mercado para as eventuais mudanças nas regras do jogo, porque, às claras, se mostra lastreado em estudos técnicos-jurídicos e sem qualquer viés ideológico, além de considerar as consequências das disposições na sociedade e no país.

Victor Augusto Benes Senhora
Mestre em Direito (IDP/SP). Especialista em Direito do Seguro e Resseguro pela FGV-Law e Universidade Nova de Lisboa. Sócio do escritório J. Armando Batista e Benes Advogados.

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