O constituinte originário, preocupado em estabelecer direitos e deveres, trouxe expressamente a responsabilização de agentes públicos na prática de atos por improbidade administrativa, conferindo ao legislador ordinário o dever legal de regulamentação (art. 37, §4º, da CFRB), sem, entretanto, ignorar as garantias fundamentais, inscritas em cláusulas pétreas, que todo cidadão possui.
Na exposição de motivos do PL 1.446/91, que originou na lei 8.429/92, o então ministro da Justiça Jarbas Passarinho expressou sua preocupação à prática desenfreada e impune de atos de corrupção, no trato com os recursos públicos, esclarecendo que a finalidade daquela proposta era realmente estabelecer, de forma didática e preventiva, os atos e procedimentos aplicáveis aos agentes protagonistas de atos ímprobos1.
Por sua vez, em consulta às justificativas da propositura do PL 2.505/21 (substituto do PL 10.887/18), de autoria do deputado Roberto Alves de Lucena, percebe-se que o legislador ordinário preocupou-se em estabelecer série de garantias e limitações, tanto do Ministério Público, como do próprio Judiciário, conforme se colhe das inúmeras emendas realizadas ao longo dos debates legislativos, o que, sem dúvidas, encorpou substancialmente o texto originário.
É perceptível a mudança protecionista estabelecida pela lei 14.230/21, enquanto as razões que levaram a edição da lei 8.429/92 voltavam-se muito mais para regulamentar e punir – sem muitos freios – o agente que tenha agido com dolo ou culpa na condução da máquina pública. Isso, a propósito, acendeu um debate acerca da impunidade que supostamente as recentes alterações tenham estabelecido, além de originar várias decisões expressando compreensões distintas sobre a mesma temática.
De toda forma, a proposta reflexiva que propomos não busca adentrar no acerto ou desacerto legislativo, até porque, data máxima vênia, não cabe aqui discutir sobre impunidade e retrocesso que as novas disposições de improbidade administrativa supostamente estabeleceram – que até pode ser objeto de um novo estudo –, mas promover um olhar processual acerca das disposições vigentes, ou melhor, de todo o sistema punitivo previsto.
Nesse trilhar, a jurisprudência de ambas as turmas de Direito Público do STJ sempre se preocupou com o caráter sancionatório da lei 8.429/92, contribuindo significativamente para os debates jurídicos, inclusive legislativo – ao ponto que foram citados julgados específicos proferidos pela Corte Cidadã -, de modo que foi, sem dúvidas, luz e caminho da segurança jurídica para os operadores do direito.
Mesmo antes do advento da lei 14.230/21, inclusive antes da lei 13.105/15 (CPC), era pacífico que às disposições processuais civis eram aplicadas subsidiariamente aos processos de improbidade administrativa, o que contornavam lacunas e possibilitava o cumprimento do devido processo legal, notadamente por trazer garantias às partes envolvidas.
Dentre as inovações vistas no atual diploma, destaca-se o art. 17 e 17-D, estabelecendo o primeiro que a ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa seguirá o rito do procedimento comum previsto na lei 13.105/15, naquilo que não contrarie a lei, enquanto o segundo dispositivo (incluído pelo Senado Federal), prevê que a ação por improbidade administrativa não constitui ação civil, mas sim repressiva e de caráter sancionatório.
Vejamos:
Art. 17. A ação para a aplicação das sanções de que trata esta lei será proposta pelo Ministério Público e seguirá o procedimento comum previsto na lei 13.105, de 16 de março de 2015 (CPC), salvo o disposto nesta lei. (Redação dada pela lei 14.230/21)
Art. 17-D. A ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal previstas nesta lei, e não constitui ação civil, vedado seu ajuizamento para o controle de legalidade de políticas públicas e para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. (Incluído pela lei 14.230/21)
Além disso, outra significativa mudança foi também a previsão de inaplicabilidade da remessa necessária nas sentenças proferidas nas ações por improbidade administrativa (art. 17-C, §3º), demonstrando assim a necessidade de tratar o procedimento com seriedade, velando sempre pela paridade entre as partes.
Porém, permita-me indagar o leitor: a reforma promovida pela lei 14.230/21 foi protagonista da vedação ao excesso, paridade de armas processuais, isonomia e exigência de reprimir atos que realmente são ímprobos. Além disso, o legislador expressamente trouxe que a ação por improbidade administrativa não constitui ação civil, mas um ilícito civil qualificado (ARE 843.989/PR – Tema 1.199/STF), ou seja, não pode ser tratado como uma demanda cível simples. Seria então adequado e sensato aplicar – diante da omissão legislativa – a previsão contida no art. 180 do CPC nesse tipo de demanda?
É de todo importante pontuar que a previsão processual civil de prazo em dobro para o Ministério Público se manifestar nos autos têm escopo no fato do órgão ministerial, além de parte interessada em processos, também atuar como custos legis em determinadas ações judiciais, permitindo, assim, que se desincumba do encargo que lhe é constitucionalmente atribuído.
Entretanto, não nos parece adequado conferir tratamento diferenciado entre as partes, sobretudo pois, com a exclusão da modalidade culposa para configuração do ato de improbidade administrativa e tendo do STF reconhecido a natureza de “ilícito civil qualificado” que, na realidade, acaba por punir as mesmas condutas penalmente previstas, o legislador buscou justamente graduar a ação por improbidade administrativa posto acima de simples procedimento regido, naquilo que couber, pelas regras do processo civil.
De mais a mais, vale lembrar que é extremamente comum deparar com ações por improbidade administrativa que tramitam por vários anos sem desfecho, sendo certo que prazos em dobros para manifestação ministerial acaba por contribuir para tanto, indo em sentido contrário à Meta 4 do CNJ.2
Ademais, ignorar a intenção legislativa quanto à instituição de equilíbrio entre as partes, impondo uma série de limites aos participantes do processo, sem perder de vista o caráter repressivo e sancionador da lei, é desprezar a hermenêutica teleológica de todas as mudanças promovidas, harmonizando muito mais com a realidade conferida pela lei 14.230/21 o tratamento isonômico de prazos iguais para ambas as partes, à luz do devido processo legal.
Entrementes, hora ou outra o STJ terá de manifestar sobre esses avanços legislativos, quem sabe o próprio STF, especialmente diante das previsões constitucionais do devido processo legal (inc. LIV), isonomia processual (inc. LV) e duração razoável do processo (inc. LXXVIII), todos previstos no art. 5º da Constituição Federal, além da clara presença de relevância jurídica e social.
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1 Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=192235. Acesso em 17/01/2024
2 Priorizar o julgamento dos processos relativos aos crimes contra a Administração Pública, à improbidade administrativa e aos ilícitos eleitorais (STJ, Justiça Estadual, Justiça Federal, Justiça Eleitoral e Justiça Militar da União e dos Estados)